Quem vai poder votar, quem tem de votar e como pode votar. A decisão do Tribunal Constitucional, que decidiu anular os resultados apurados e mandou repetir votos dos emigrantes portugueses no Círculo da Europa, deixou mais dúvidas do que certezas sobre os passos que se seguem. Com eleições agendadas para 27 de fevereiro, como estipula a lei, não há sequer certezas sobre de que forma é que se vai proceder a nova votação.

À cabeça, não é seguro que uma operação desta magnitude, que implica a impressão dos boletins de voto, o envio, receção e a contagem dos mesmos, seja possível de executar em apenas duas semanas. O Observador procurou esclarecimentos junto do Ministério da Administração Interna (MAI) e da Comissão Nacional de Eleições (CNE), que remeteram para depois respostas sobre como se vai repetir esta eleição. O PCP, de resto, foi um dos partidos a apontar para esse mesmo problema.

“É um prazo que tem cabimento do ponto de vista nacional, mas no que respeita aos votos da emigração não vemos, salvo melhor opinião, como é que é exequível a materialização da repetição das eleições no prazo que o artigo [da lei eleitoral] estipulou e aguardaremos algum aclaramento desta situação”, sublinhou Rui Fernandes, da Comissão Política do PCP, em declarações à Agência Lusa.

A solução mais simples passaria por optar pela votação presencial. Ainda que a questão não esteja de todo fechada, esta hipótese foi assumida como um dado adquirido por todos os partidos que se pronunciaram sobre a decisão do TC — precisamente, porque todos reconhecem a dificuldade de colocar em prática uma votação via postal.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Para lá da injustiça da medida — eleitores houve que tiveram oportunidade de votar via postal e outros que não terão –, há outra consequência evidente: a abstenção vai disparar e muitos emigrantes ficarão na prática impedidos de votar, uma vez que o voto presencial implica deslocações por vezes exigentes.

“Se daqui a 10 dias tivermos o voto unicamente presencial, sem a possibilidade de votarmos por via postal, isso irá implicar uma redução muito significativa da participação eleitoral das comunidades portuguesas na Europa e, no melhor dos casos, poderemos atingir níveis de participação similares às das presidenciais de 2021″, concedeu Pedro Rupio, presidente do Conselho Regional das Comunidades Portuguesas na Europa, em declarações à Agência Lusa.

Há outro obstáculo no horizonte: de acordo com as regras da CNE, o método padrão de votação é por via postal; quem quiser fazê-lo de forma presencial deve “fazer essa opção junto da respetiva comissão recenseadora no estrangeiro, até à data da marcação da eleição“.

Assim sendo, a CNE terá também de explicar esta questão: quem não tenha pedido para votar presencialmente até ao dia em que foram marcadas das eleições legislativas, terá ou não possibilidade de votar agora a 27 de fevereiro?

Mais de 80% dos votos dos emigrantes no círculo da Europa foram considerados nulos, após protestos do PSD. Segundo o edital publicado esta quinta-feira sobre o apuramento geral da eleição do círculo da Europa, de um total de 195.701 votos recebidos, 157.205 foram considerados nulos.

Posto isto, há outra questão de difícil resolução: quem está de facto ‘obrigado’ a repetir o voto? No acórdão do Tribunal Constitucional, os juízes declaram a nulidade da eleição de 151 assembleias de voto do círculo eleitoral da Europa e exigem “a repetição dos atos eleitorais nas assembleias de voto correspondentes”.

Ou seja: em teoria, dependendo da assembleia de voto em que exerceram o seu direito, há uma minoria de eleitores que não estará ‘obrigada‘ a repetir a votação e uma grande maioria que o terá de fazer — o que torna todo o processo muito mais complexo.

O pecado original

A 18 de janeiro, houve uma reunião na secretaria-geral do MAI que juntou os representantes de todos os partidos. Nesse encontro, houve um “consenso” para permitir que todos os votos fossem contados – mesmo que sem a cópia do Cartão de Cidadão em anexo.

Nesse dia, o PSD fez-se representar por Lélio Raimundo Lourenço, ex-autarca e funcionário na sede do PSD, e por Maria Emília Preto Galego, funcionária do grupo parlamentar, que deram a sua bênção à solução encontrada — o tal acordo de cavalheiros que é agora destruído pelo Palácio Ratton.

Ora, na grande generalidade dos casos, os votos válidos (aqueles que eram acompanhados por cópia de cartão de cidadão) foram misturados em urna com os votos inválidos, o que determinaria mais tarde a ilegalidade de todos.

A 11 de fevereiro, Maló de Abreu, cabeça de lista do PSD pelo círculo Fora da Europa e membro da direção de Rio, contestou a decisão de contar todos os votos com base num parecer jurídico interno e decidiu recusar a contagem de votos sem todos os documentos.

Agora, depois de desafiado a avaliar o caso, o Tribunal Constitucional não poupa adjetivos para classificar o tal “acordo informal” inicial que tinha como objetivo contar todos os votos, fossem eles acompanhados por cartão de cidadão ou não.

“Qualquer ‘deliberação’ − ou, melhor dizendo, acordo informal − que tenha sido tomada pelos partidos políticos no sentido de se dispensar a junção da fotocópia do documento de identificação ao boletim de voto é grosseiramente ilegal – ultra vires –, não produzindo os efeitos jurídicos conformes ao respetivo conteúdo”, pode ler-se no acórdão dos juízes do Ratton.

De acordo com o mesmo acórdão, só uma alteração à lei poderia alterar as regras de votação e, em momento algum, os partidos podiam julgar-se na “faculdade de deliberar sobre os requisitos de validade dos votos”. “Seria manifestamente ilegal [considerar válidos todos os votos]”, conclui o Tribunal Constitucional.

Além disso, houve outro fator determinante a sustentar a decisão do Palácio Ratton: “Quando o número total de votos anulados sobreleva o número total de votos considerados validamente expressos em cerca do quádruplo, é mais do que plausível conceber cenários em que o número de votos válidos, mas que acabaram anulados e desconsiderados em razão da sua confusão com votos inválidos, pudesse constituir uma grande parte dos votos considerados validamente expressos.”

“Não é possível concluir que a decisão de declaração de nulidade foi neutra do ponto de vista da distribuição de mandatos, uma vez que está longe de ser certo ou necessário que o padrão de distribuição dos mesmos fosse substancialmente idêntico ao que se veio a verificar no apuramento geral”, remata-se.