A indústria automóvel tem passado um mau bocado nos últimos três anos. Depois da pandemia e da crise dos chips, agora é a guerra na Ucrânia a afectar a indústria automóvel, com fábricas paradas e exportações suspensas.
Em 2020, as fábricas fecharam e adaptaram-se para dar resposta à pandemia da Covid-19, porque escasseavam ventiladores e meios de assistência às vítimas. Numa época em que as vacinas ainda estavam nos tubos de ensaio, os construtores de automóveis não faltaram à chamada e ajudaram das mais diferentes formas, apesar do negócio estar a ser prejudicado pelo fecho dos stands e, mais tarde, pela retracção na procura. Uma situação a que nem a assistência obedecendo às normas sanitárias, então em vigor, ou as vendas online conseguiram colmatar, face ao que era o “normal” do negócio.
Em 2021, uma outra crise. A dos semicondutores, os célebres chips sem os quais a maioria dos automóveis mais sofisticados não consegue passar, porque deles dependem funções de que os clientes já não estão dispostos a abdicar – do ar condicionado ao infoentretenimento, passando pela electrónica que gere o sistema eléctrico dos veículos a bateria, entre muitas outras funcionalidades. Entre a escassez de matérias-primas e o aumento da procura, a oferta minguou e os grandes grupos de fabricantes de automóveis tiveram de passar a fazer uma gestão quase diária da produção, o que acabou estrategicamente por favorecer os construtores de luxo, ou não fossem eles quem garante maiores margens de lucros. E daí os resultados de marcas como a Bentley, Lamborghini e Rolls-Royce no ano passado, enquanto fabricantes generalistas como a Peugeot, por exemplo, não tiveram outra alternativa se não a de trocar o digital pelo analógico.
Em 2022, a guerra na Ucrânia. Isto ainda a braços com a pandemia e com as falhas no fornecimento de semicondutores, situação que muitos especialistas antecipam que só será sanada em 2023. Pelo meio, não há que esquecer que as normas antipoluição europeias não só se mantêm como se vão agravar, o que obriga os construtores a maiores investimentos, seja para cumprir a norma Euro 7 nos motores a combustão (que deverá entrar em vigor em 2025), seja para electrificar a gama. Opção esta que implica investir em fábricas e plataformas dedicadas para mais rapidamente obter o retorno do investimento e, simultaneamente, conseguir colocar no mercado veículos eléctricos competitivos e eficientes.
Neste timeline de dificuldades inesperadas, a invasão da Ucrânia pelas tropas da Rússia veio colocar vários fabricantes de automóveis numa situação ainda mais complicada. Em particular, o Grupo Renault. E, tal como no futebol e na Fórmula 1, as reacções não se fizeram esperar. Entre silêncios comprometidos, decisões com compromisso e doações de milhões, confira abaixo como um conflito a leste toca outros pontos cardeais, porque enquanto nas ruas da Ucrânia se brandem armas, às fábricas de automóveis não chegam “chicotes”, agudizam-se as falhas na cadeia de fornecimento e os problemas no sistema de pagamentos. Pára (quase) tudo…
Produção suspensa
São muitas as marcas de automóveis que optaram por esta via, por falhas no fornecimento de componentes decorrentes do conflito na Ucrânia. O Grupo Volkswagen, por exemplo, está a ver a sua aposta nos veículos eléctricos ser condicionada pela guerra. Isto porque às fábricas alemãs de Zwickau e Dresden, especificamente voltadas para a produção dos modelos a bateria do conglomerado germânico, não chegam as necessárias cablagens.
Injecção, transmissão, controlo de tracção, central multimédia, carregador wireless… Para tudo isto funcionar, de preferência sem dar chatices, há que garantir que a informação é bem recebida e encaminhada. E isso passa por metros e metros de cabos, a que alguns chamam de “chicote” eléctrico: nem mais nem menos que um conjunto de cabos de cobre condutores e de conexão – que podem ultrapassar 50 kg e 1,5 km de comprimento, se colocados em linha – que são responsáveis por gerir o fornecimento de energia eléctrica e por fazer “correr” os dados entre os diferentes sistemas de um automóvel moderno. Para se ter uma ideia, num automóvel mais sofisticado – cada vez mais a tendência, à medida que a electrificação progride e os sistemas de assistência à condução vão robustecendo os automatismos/a autonomia dos veículos – facilmente se atinge o milhar de cabos. Ora, há uma série de eléctricos assentes na arquitectura MEB da Volkswagen que eram, até agora, equipados com cablagens provenientes da Ucrânia. Os ID.3, 4 e 5, bem como os Audi Q4 e-tron e Q4 e-tron Sportback e o Cupra Born estão, por isso, em stand-by. De recordar que, há um ano, as contas apontavam para a produção diária de 1400 carros por dia só em Zwickau, ou seja, uma meta de 40 mil veículos por mês e mais de 510 mil unidades/ano, só para os ID.3 e ID.4. Agora são seis os modelos a sair das duas linhas de produção desta fábrica em cuja reconversão a Volkswagen investiu 1,2 mil milhões de euros.
A Porsche, que vai deixar de pertencer ao conglomerado alemão, também está a enfrentar dificuldades. Nomeadamente no fabrico do Panamera e, mais relevante ainda do ponto de vista comercial, do bestseller Macan. A produção parou em Leipzig, na Alemanha, por falhas de fornecimento. Há uma task-force a avaliar a situação continuamente, até porque dos 301.915 veículos entregues a clientes em todo o mundo em 2021, foi o Macan a liderar a procura, com 88.362 novas matrículas.
As fábricas europeias do Grupo BMW também não escapam aos estilhaços deste conflito. Enquanto nos EUA, China e México, as instalações fabris do grupo bávaro continuam a laborar normalmente, o mesmo não acontece no Velho Continente. E a explicação radica, mais uma vez, na origem distinta dos fornecedores. Por cá, na Europa, há falta de componentes para abastecer a fábrica da Mini (Oxford, Inglaterra) e as fábricas alemãs de Munique e de Dingolfing. Esta última emprega 17 mil pessoas, sendo a maior unidade de produção do BMW Group na Europa, daí saindo os Séries 4, 5, 6, 7 e 8, além do novo eléctrico BMW iX. Em 2021, foram fabricados em Dingolfing 232 mil BMW. A marca está ainda a braços com dificuldades na fábrica que possui na Áustria, em Steyr, responsável por quase metade dos motores que equipam os novos modelos do grupo – 1 milhão de motores/ano e 10,1 milhões de peças, de bielas a cabeçotes, entre outros. Os complexos fabris de Munique, Dingolfing, Oxford e Steyr vão parar na próxima semana.
Já a Mercedes, por enquanto, não prevê a suspensão da produção, pois decidiu-se avançar com um abrandamento do ritmo produtivo, justamente para atenuar o impacto das paragens. Tal como as outras, também a marca da estrela está a lidar com falhas de fornecedores, mas em nota de imprensa realçou que está a tirar partido da flexibilidade do seu aparelho produtivo para “evitar tanto quanto possível” a suspensão da produção.
Rússia STOP: não se vende, não se fabrica, nem se repõe
Jaguar Land Rover, General Motors e a Daimler Truck juntaram-se a um movimento liderado pela Volvo. O construtor sueco encabeçou a decisão de suspender as vendas dos seus modelos na Rússia, mercado onde entregou 9000 veículos o ano passado. Uma “gota de água” face às 698.693 unidades entregues em 2021, mas a decisão tem um significado mais amplo, na medida em que a Volvo sentiu necessidade de realçar que esta medida se devia aos “potenciais riscos associados à troca de mercadorias com a Rússia”. A Honda e a BMW deixaram igualmente de exportar carros para a Federação Russa. Estas decisões decorrem, naturalmente, do facto de o país de Vladimir Putin ter sido expulso da Sociedade para as Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais (SWIFT, na sigla em inglês). Com os pagamentos SWIFT, Visa, Mastercard, ApplePay e PayPal bloqueados, fazer negócios com os russos passa a ser outra batalha.
A Mazda também tomou posição, ainda que mais titubeante. O construtor nipónico tem uma joint-venture com um construtor russo com fábrica na cidade de Vladivostok, para onde expede uma série de componentes a partir do Japão. Ora isso vai acabar “o mais rapidamente possível”, informou a marca. Porém, fontes do próprio construtor revelaram que tal não impedirá a fábrica russa de continuar a laborar por vários meses, até que se sinta efectivamente o corte na reposição de componentes.
Por seu lado, a Stellantis tinha planos para ampliar a fábrica russa de Kaluga, onde produz veículos comerciais. Tinha, ou seja, não é evidente que esse investimento se venha a realizar, pois o grupo liderado pelo português Carlos Tavares assume que está a equacionar o assunto e a explorar alternativas, devido aos “riscos geopolíticos”.
Toyota e Hyundai são outros dos actores da indústria automóvel com fábricas em território russo, mais concretamente na cidade portuária de São Petersburgo. A produção do gigante japonês foi hoje suspensa na fábrica que a Toyota tem em actividade na Rússia desde 2007, em Shushary. De notar que a Toyota Motor Manufacturing Russia (TMMR) é uma das principais bases europeias de produção da marca, de onde anualmente saem 100 mil veículos – o Camry, desde 2007, e o RAV4, desde 2016. Já a Hyundai, que é o terceiro maior fabricante de automóveis na Rússia, depois da russa AvtoVAZ e da “mana” sul-coreana Kia, optou por fechar a fábrica que tem virada para o Báltico mais cedo. O encerramento ocorreu na passada segunda-feira, prevendo-se que a actividade seja retomada a 9 de Março, até porque a produção da fábrica russa representa à volta de 6% (230 mil carros) dos cerca de 3,9 milhões de veículos que a Hyundai vendeu globalmente em 2021. Tal como a Toyota, também a suspensão da produção na Rússia por parte da Hyundai não se deve à invasão da Ucrânia, nem às sanções impostas à Federação Russa, sendo antes o reflexo da “escassez global de componentes”.
A falta de chips é igualmente a explicação avançada pela Renault para justificar a paragem temporária da fábrica de Togliatti, localizada nas margens do rio Volga, a um milhar de quilómetros de Moscovo. Esta unidade fabril, de onde saem quer os Lada quer os modelos da Renault, é uma das maiores do mundo, com uma capacidade de produção anual de 650 mil veículos. Para se ter uma ideia, as linhas de produção perfazem 300 km e será essa distância que explica o distanciamento do Grupo Renault em relação ao conflito na Ucrânia. O silêncio francês tem imperado, muito possivelmente porque a Rússia é o segundo maior mercado da marca do losango, representando 12% das suas receitas, qualquer coisa como 5000 milhões de euros por ano. Mas já se ouve qualquer coisa, pois a actividade da AvtoVAZ voltou a ser reposta.
A Ford é que não está com meias medidas e já disse que vai parar as operações que tem na Rússia, em regime de joint-venture, por estar “preocupada com a invasão da Ucrânia”. Significa isto que a colaboração dos norte-americanos com os russos da Sollers está, indefinidamente, suspensa.
Muita preocupação e alguns milhões a caminho
A Toyota, o maior construtor mundial de automóveis, diz-se apreensiva com o impacto da invasão russa na Ucrânia: “Como outras empresas em todo o mundo, estamos a assistir a este conflito com grande preocupação em relação à segurança dos envolvidos e esperamos que a paz regresse o mais rapidamente possível.” No entanto, a acção do gigante japonês fica-se pelas preces e pelas palavras.
Outros decidiram ir mais além. A Stellantis, por exemplo, não hesita em condenar a acção russa e em ajudar os ucranianos. “A Stellantis condena toda a violência e agressão e, neste momento de dor sem precedentes, a nossa prioridade é a saúde e a segurança dos nossos funcionários ucranianos e respectivas famílias”, disse Carlos Tavares, CEO da Stellantis. “Foi lançada uma agressão que abanou a ordem mundial, já de si perturbada pelas incertezas. Composta por 170 nacionalidades, a comunidade Stellantis assiste com consternação à fuga dos civis do país. Mesmo que a escala de baixas ainda não seja visível, o custo humano será insuportável”, atirou o português à frente do 4.º maior grupo automóvel a nível mundial, em termos de produção. Daí que, além de montar uma equipa para apoiar continuamente os 71 funcionários baseados na Ucrânia, o grupo tenha decidido dar o seu contributo para amenizar as feridas de guerra, doando 1 milhão de euros – verba que se destina a financiar a necessária ajuda humanitária para apoiar os refugiados e civis ucranianos deslocados pela actual crise.
Igual quantia alocou a Mercedes à Cruz Vermelha para auxiliar a população ucraniana, enquanto o Grupo Volkswagen doou 1 milhão de dólares à Agência das Nações Unidas para os Refugiados. O cheque da solidariedade em tempos de guerra foi ainda assinado pela Ford, tendo como destinatário o Fundo de Auxílio à Ucrânia, que receberá 100 mil dólares da oval azul.
Se nos concentramos exclusivamente nos cifrões, há ainda que ter presente que, a longo prazo e de acordo com a Associação da Indústria Automóvel alemã (VDA), o sector vai ter de enfrentar a escassez e a subida dos preços das matérias-primas. Sendo a Rússia um dos grandes fornecedores de níquel, sem o qual não há baterias para os carros eléctricos, perspectiva-se a… incerteza.