Quando se entra no laboratório 222, de Inês Gonçalves, no segundo andar do edifício do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, no Porto, há um ruído que chama a atenção, parecido a um dedo a deslizar num vidro molhado.
A líder do grupo Advanced Graphene Biomaterials justifica o que se passa: a estudante de mestrado Margarida Ferreira está pacientemente a polir a extremidade desse pequeno tubo que se parece a uma palha finíssima, transparente, revestida por um nanomaterial chamado grafeno.
O tubo faz parte do protótipo do projeto de transferência de tecnologia Smartcap for Cateters Sterilization, coordenado por Inês Gonçalves e financiado em 70 mil euros pela Fundação “la Caixa”, para testar e validar a inovação da tecnologia e definir um plano de valorização. Começou em 2021 e termina em 2023.
A ideia é desenvolver uma tampa antibacteriana e reutilizável para cateteres — e que poderá vir a beneficiar inicialmente doentes de hemodiálise —, “utilizando o grafeno como biomaterial ativado por radiação no infravermelho-próximo” (NIR – Near Infrared Radiation), reforça a investigadora, e assim combater o problema das infeções nos cuidados de saúde.
O novo dispositivo médico, já com pedido de patente, permite um sistema de esterilização inteligente ativada por luz, unindo áreas como microbiologia, medicina, química, ótica, eletrotécnica e bioengenharia. A equipa tem evidências de que poderá fazer frente a esse grave problema de saúde pública. E, por isso, Inês e a investigadora Patrícia Henriques criaram também a startup GO Antimicrobial Technologies.
“A Patrícia foi minha aluna e foi no fim do trabalho de doutoramento dela que descobrimos que a irradiação do grafeno com NIR tinha estas propriedades antimicrobianas tão surpreendentes. Ela tem sido um grande pilar nesta desafiante jornada do desenvolvimento e transferência de tecnologia da SmartCap.”
Só na Europa, as infeções associadas aos cuidados de saúde causam cerca de 25 mil mortes anualmente. Para doentes de hemodiálise, além do sofrimento atroz e da perda de qualidade de vida, essas complicações chegam a custar cerca de quarenta mil euros, com internamento hospitalar em média de dez dias, sublinha a coordenadora científica do SmartCap, reportando-se a dados de um estudo norte-americano publicado na JAMA Network Se essas infeções forem causadas por bactérias resistentes a antibióticos, os custos podem ultrapassar os cinquenta mil euros, com internamento em média de duas semanas.
Os tratamentos atuais são ineficazes na prevenção da infeção”, diz Inês Gonçalves. “E contribuem para o desenvolvimento da resistência bacteriana porque usam antibióticos.”
A relação da cientista com a ciência começa precisamente com “a história de uma palhinha”. Em 2002, durante a Licenciatura em Microbiologia, na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, o professor de Estatística desafiou os estudantes a colaborar na sua tese de doutoramento.
O docente investigava a hidrólise de uma enzima isolada da flor do cardo — usada no queijo da Serra da Estrela —, para ajudar no processo digestivo de pessoas intolerantes à lactose. Inês, hoje investigadora principal no i3S, e mais duas amigas entusiasmaram-se. Havia apenas duas vagas. Tiraram à sorte, cortando uma palha: quem ficasse com a parte maior voluntariar-se-ia. Foi afortunada.
Quando escolheu o curso, já sabia que queria seguir “a parte laboratorial em saúde”. Esse estágio extracurricular foi o primeiro contacto com a investigação, que viria a ser decisivo para decidir o caminho profissional.“Foi uma decisão difícil porque tinha de trabalhar nos tempos livres”, recorda. Até porque a agenda da então jovem estudante com 20 anos estava preenchida com os treinos de ténis e as competições nacionais. Teve de abandonar a modalidade, optando pela investigação.
Hoje, com 40 anos e três filhos, voltou ao ténis duas vezes por semana. Nascida e criada (e estudante) no Porto, durante o percurso académico jogou praticamente em casa, embora com ligação à Universidade de Washington, nos EUA, onde esteve seis meses (Seattle) para investigação doutoral.
Doutorou-se em 2009 em Engenharia Biomédica na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), “com uma tese sobre biomateriais em contacto com o sangue, investigando o desenvolvimento molecular de monocamadas e polímeros para ligar à albumina e reduzir a formação de coágulos em dispositivos cardiovasculares”.
Entre 2010 e 2013 fez o pós-doutoramento. “Comecei a desenvolver umas microesferas que ligavam a uma bactéria que existe no nosso estômago, a Helicobacter pylori, que se persistir durante muito tempo pode induzir a formação de cancro gástrico. A ideia era desenvolvê-las para administração oral. Quando chegam ao estômago, ligam a bactéria e removem-na pelo trato gastrointestinal.”
Inês já participou em cerca de vinte projetos científicos, é autora de cerca de quarenta artigos científicos internacionais com revisão entre pares e membro da direção da Sociedade Ibérica de Biomecânica e Biomateriais. É também uma das cientistas do projeto municipal “Porto de Crianças”, que leva a Ciência às escolas primárias da cidade.
Entre 2010 e 2021 foi professora assistente convidada no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e na FEUP, onde começa a relação com o grafeno. “Estava a dar aulas e fazíamos umas experiências com sangue e biomateriais e tive um aluno do programa doutoral, o Artur Pinto, que me veio perguntar se poderíamos colaborar para fazer uns ensaios com grafeno.”
Foi em 2012 e Inês acabaria por coorientá-lo, em colaboração com o Professor Fernão Magalhães, do Laboratório de Engenharia de Processos, Ambiente, Biotecnologia e Energia da FEUP.
No seguimento dessa nova área de investigação que viria a fundar no Instituto de Engenharia Biomédica (INEB) — hoje uma das instituições que fazem parte do i3S —, começou a utilizar biomateriais biocompatíveis e antimicrobianos baseados em grafeno para encontrar várias aplicações biomédicas. Para melhor elucidar do que se trata, Inês volta-se para o computador e abre uma apresentação, apontando para uma imagem que parece um favo de mel.
“Nós conseguimos obter o grafeno por esfoliação da grafite, que no fundo corresponde a uma camada única, muito fina, de átomos de carbono.”
Considerado o material do futuro por muitos especialistas, apesar de inspirar curiosidade desde o final dos anos 40 do século XX, só em 2004 os cientistas russos da Universidade de Manchester, no Reino Unido, Andre Geim e Konstantin Novoselov, conseguiram isolá-lo, demonstrando que “o carbono numa forma tão plana, a partir da grafite” — o mesmo material de um lápis comum —, “tem propriedades excecionais com origem no mundo da física quântica”. Com isso, venceram o prémio Nobel da Física em 2010, cujo comité considera ser “a malha atómica perfeita”.
“Em primeiro lugar é leve, é o material mais forte do mundo, é um condutor térmico, tem capacidade de absorção de radiação e, além disso, na sua forma oxidada fica biocompatível com a componente biológica, e isto é muito interessante para nós que trabalhamos com materiais com aplicações biomédicas.”
Nas investigações da equipa de Inês, este material tem duas aplicações principais: na área cardiovascular desenvolvem vasos sanguíneos sintéticos; na área antimicrobiana, na qual se insere a Smartcap, o grafeno é usado para melhorar as propriedades antimicrobianas dos materiais. Nesta linha, atuam em três campos.
Primeiro: “Utilização de compósitos e revestimentos antimicrobianos, em que começamos na área dos cateteres de hemodiálise, colocados nos vasos sanguíneos, na veia jugular, fazendo o revestimento interno dos tubos para não haver infeção, porque o grafeno evita a adesão e proliferação de bactérias. No caso de hemodiálise, por exemplo, são especialmente relevantes para prevenir infeções, porque os cateteres têm acesso direto ao sistema circulatório e ao coração.”
Os pacientes com falência renal que não têm a possibilidade de transplante, têm de fazer diálise em média três vezes por semana, entre 3 a 5 horas, “onde é ligado um cateter a uma máquina para purificar o sangue”. Ou seja, há uma exposição constante do sistema circulatório a possíveis infeções bacterianas que podem desenvolver-se em complicações severas. Ou morte.
“Uma segunda área de aplicação é a engenharia de tecidos. E a outra é o desenvolvimento de superfícies antibacterianas, mas ativadas pela luz. O grafeno é capaz de absorver radiação em vários comprimentos de onda e há um que é especial para nós, o infravermelho-próximo, por não ser nocivo, ao contrário dos raios ultravioleta.”
Em suma: usam “radiação NIR de baixa intensidade para potenciar ainda mais as propriedades antimicrobianas do grafeno”, cuja junção dá a esse material superpoderes de exterminação das bactérias, mesmo as resistentes a antibióticos.
O resultado, ainda em protótipo, é uma tampa inteligente, com tecnologia combinada. Um dos componentes da tampa é revestido com grafeno, aproveitando as propriedades antibacterianas, com uma fonte interna de NIR, provida de uma pequena bateria e um LED, que irradia grafeno. “Quando colocamos a tampa, o grafeno vai ter ação no líquido que fica no cateter entre sessões de diálise, para onde podem ter entrado bactérias, e vai matá-las”.
O projeto é desenvolvido em parceria com Orlando Frazão, especialista em ótica do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência, e Manuel Pestana, diretor do Serviço de Nefrologia do Centro Hospitalar Universitário de São João, professor catedrático da Faculdade de Medicina da UP e líder do grupo de investigação do i3S em “Nephrology & Infectious Diseases R&D”.
Estamos a ver maneiras de produzir isto numa escala piloto, para depois fazer os testes em humanos. Se tudo correr bem, a tampa inteligente poderá reduzir o sofrimento de cerca de três milhões de pessoas da população mundial com falência renal que faz hemodiálise, evitando infeções sem causar resistência bacteriana, assim como a morte por formas severas de infeção.”
Além disso, enfatiza, “vai permitir também poupar cerca de 562 milhões de euros [por ano] em cuidados de saúde no mundo inteiro”, na medida em que permite “a prevenção da infeção, e por isso não serem necessários os tratamentos associados nem a substituição dos cateteres, diminuindo o número e tempo de hospitalizações”.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Smartcap for Cateters Sterilization, liderado por Inês Gonçalves, do i3S, foi um dos 17 selecionados (três em Portugal) – entre 97 candidaturas internacionais – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do programa Caixa Impulse. O investigador recebeu setenta mil euros. O programa, que se chama agora CaixaResearch Validate, promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade e as candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 10 de fevereiro. Os prazos para a edição de 2023 deverão abrir em novembro.