Dos 6 aos 18 anos, a investigadora indiana Guna Bavithra cresceu no meio da natureza no sul da Índia. Estudou no colégio interno Laidlaw Memorial School of St. George’s Homes, em Ketti, integrado numa área florestal no vale perto dos montes Nilguiri, uma cordilheira na parte mais ocidental do estado de Tâmil Nadu.

Se procurarmos a região no mapa, vemos uma extensa mancha verde, parte dela classificada como Património da Humanidade pela UNESCO, desde 2012, com a inscrição de Gates Ocidentais. É considerado um paraíso de biodiversidade.

Aos 25 anos, Guna Bavithra trabalha entre a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e o Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR), em Matosinhos, para encontrar uma solução para limpar a água de rios e lagos utilizada na irrigação agrícola

Por isso, sempre que ia de visita até à cidade natal, cerca de 400 quilómetros mais a sul, em Sivakasi, a cientista ficava chocada. “Era um contraste muito grande que me entristecia: um lugar sujo, poluído, que fez com que crescesse dentro de mim a convicção de que a ciência tem as soluções para combater os problemas mundiais.” Guna acreditava que poderia contribuir para fazer essa diferença, ao mesmo tempo que promoveria a literacia ambiental, até porque sonha também um dia poder dar aulas.

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Hoje, aos 25 anos, trabalha entre a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) e o Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR), em Matosinhos, perto do Porto, para encontrar uma solução para limpar a água de rios e lagos utilizada na irrigação agrícola. Para isso vai utilizar plantas aquáticas, como caniços, e desperdícios agrícolas, especificamente casca de arroz, cortiça e bagaço de azeitona.

O nome da investigação doutoral é “Eco-Technologies for Treatment of Water Contaminated with Cyanotoxins” e o objetivo é “encontrar modelos de zonas húmidas construídas [ZHC] para remoção de cianobactérias tóxicas e cianotoxinas em águas brutas eutróficas”.

E o que são cianobactérias e cianotoxinas? Guna devolve a resposta com uma pergunta: “Já alguma vez viram uma floração de algas num lago? É uma massa esverdeada normalmente em lugares onde o ar é mais quente, basicamente água eutrófica, onde há muitos nutrientes e que surgem com o súbito aumento das temperaturas. Por vezes é apenas uma floração normal de algas, outras vezes é tóxica quando há cianobactérias a florescer.” Este fenómeno, também se encontra em zonas húmidas mais lisas, como em pedras.

A investigação da cientista é particularmente relevante num contexto atual em que não só persiste uma extrema atividade humana, como também a água doce limpa se tornou um bem escasso a nível mundial

Guna mostra no telemóvel uma ilustração de como se poderá fazer uma ZHC para combater essa toxicidade. “No fundo temos uma camada de gravilha para fazer a drenagem”, depois temos outra camada com materiais porosos — como o exemplo da rocha vulcânica na imagem que a cientista revela — e, por cima, raízes e substrato da planta”, nomeadamente Phragmites australis, o caniço que encontramos em regiões pantanosas.

Ou seja: ela quer encontrar o modelo eco-tecnológico mais eficiente a partir da conjugação de propriedades bioquímicas de plantas — ecologicamente favoráveis — que consiga remover organismos tóxicos e toxinas de algumas espécies presentes no ecossistema aquático, como lagos, lagoas, reservatórios e sistemas de irrigação, devolvendo a saúde à água.

A pesquisa de doutoramento de Guna — sob orientação do biólogo Alexandre Campos e coorientação da investigadora Marisa Almeida , especialista em ZHC— é financiada em cerca de 115 mil euros, por três anos, pela Fundação “la Caixa” e integra o projeto de investigação da União Europeia TOXICROP, que se concentra na avaliação do risco da utilização de águas eutróficas na agricultura.

Trata-se de um consórcio internacional que reúne instituições de Portugal (CIIMAR e NOSTOC – Laboratório de Investigação Biológica Lda.), Espanha (Universidad de Sevilla e Laboratorio CIFGA S.A., em Lugo), Dinamarca (Universidade de Aarhus), Marrocos  (Universidade Cádi Ayyad, Marraquexe), Egito (Universidade de Sohag), Colômbia (Universidade Tecnológica de Pereira), Peru (Universidade Nacional de Santo Agostinho, Arequipa) e Eslovénia (LIMNOS Company).

“Na China usa-se o carvão vegetal. Na Índia, casca de coco, porque é abundante e tem muitas propriedades de absorção de toxinas. Em Portugal, há muitas plantas e resíduos agrícolas que encontramos com propriedades de adsorção, nomeadamente cortiça, casca de arroz e bagaço de azeitona”

A investigação da cientista ambiental é particularmente relevante num contexto atual em que não só persiste uma extrema atividade humana, como também a água doce limpa se tornou um bem escasso a nível mundial.

“Isso tem levado à utilização de água eutrófica, ou de baixa qualidade, contaminada com cianobactérias e cianotoxinas, especialmente para irrigação que, por sua vez, contamina as plantações”, enquadra a jovem cientista. Essa contaminação tem consequências para a saúde humana, “causando insegurança alimentar e ameaça a saúde pública.”

Atualmente, as soluções tradicionais de tratamento de água são caras, exigem equipamento e profissionais especializados, além da construção de infraestruturas específicas que funcionam com energia. Isso torna insustentável a instalação de sistemas de tratamento em áreas rurais. Pelo contrário, as ZHC são tecnologias de tratamento de água amigas do ambiente e economicamente viáveis e sustentáveis.

A ação dos microrganismos e plantas e as capacidades de sedimentação, precipitação e adsorção [adesão de moléculas a uma superfície] das zonas húmidas construídas [ZHC] permitem criar esta tecnologia para remover compostos orgânicos e vários poluentes da água.”

Guna Bavithra chegou a Portugal em novembro de 2021. Nos tempos livres, dedica-se a fazer jardinagem hidropónica e gosta de jogar xadrez. Licenciou-se em Biologia no Vellore Institute of Technology (VIT), em Vellore, onde enveredou pelo Mestrado Integrado em Biotecnologia.

No terceiro ano, a cientista estava na dúvida sobre qual a linha de investigação seguir, até que frequentou um curso sobre nanoecotoxicologia. “Era basicamente sobre nanopartículas no ambiente que são muito tóxicas, como aquelas que se encontram em todos os produtos comerciais que usamos, como protetores solares, detergentes, etc., e como acabam no ambiente em quantidades super pequenas, mas que não estão realmente a ser tratados. Depois de ter feito esse workshop foquei-me nas tecnologias de tratamento de água e na ecotoxicologia em geral.”

Se tudo correr bem, a cientista ambiental poderá encontrar uma tecnologia da natureza que poderá ser escalada para ser utilizada na vida prática e contribuir para combater, também, as alterações climáticas

Em 2018, no penúltimo ano de mestrado, obteve a resposta que precisava para tomar uma decisão sobre o caminho a seguir. Assistiu a uma aula do diretor do CIIMAR, o biólogo Vítor Vasconcelos, que estava no VIT como professor visitante.

“Ele apresentou a sua linha de trabalho em cianobactérias e fiquei muito motivada para vir para o CIIMAR fazer o meu último ano de dissertação.” Entre 2018 e 2019 viveu pela primeira vez em Portugal, onde iniciou o trabalho de investigação. “Potencial das zonas húmidas construídas para a remoção de cianobactérias e microcistos da água doce contaminada” foi o tópico da tese de mestrado.

Apesar de o CIIMAR já ter trabalhado com zonas húmidas construídas, nunca tinha trabalhado com as cianotoxinas como um poluente, mas mais com poluentes petrolíferos e antibióticos e outros efluentes. Portanto, era um conceito novo na altura, e eu ia verificar o potencial das zonas húmidas conservadas para as cianotoxinas remotas.”

Em 2019, depois do mestrado, Guna voltou à Índia. Trabalhou numa empresa farmacêutica em Bangalore, contribuindo para o estudo de um medicamento usado para combater o cancro da mama. A área médica inteessa-lhe, mas o caminho não era por aí. Saiu um ano depois.

Como gosta de escrever e não queria ficar parada, trabalhou como copywriter numa agência de marketing de conteúdos, enquanto pensava como poderia seguir a carreira de investigadora. “Eu adorei escrever a minha tese. Quando terminei já sabia que queria fazer doutoramento, mas a área de investigação científica na Índia é muito concorrida, só muito raramente se consegue seguir o próprio projeto investigativo e a progressão de carreira é muito lenta.”

“Queremos uma eco-tecnologia sustentável em que haja desperdício zero, limpando a água que é usada para a agricultura, de forma acessível, e contribuindo para a segurança alimentar, ao mesmo tempo que ajudamos a despoluir ecossistemas aquáticos”

Em 2020, em plena pandemia, dedicou-se a encontrar uma solução para fazer o doutoramento que queria, na linha de estudos em ecotoxicologia. Manteve contacto com os orientadores e, quando soube do projeto TOXICROP e das vagas para doutoramento nas diferentes geografias, começou a preparar a candidatura. Entrou na vaga do CIIMAR.

De momento, Guna está na fase inicial. “Estou a testar as plantas e o substrato separadamente. Assim que conhecermos o material mais eficiente e a planta com melhor desempenho, vamos juntá-los num sistema inteiro de zonas húmidas construídas e testá-los, para ver que materiais funcionam melhor.”

Por exemplo? “Basicamente tudo o que sejam produtos de desperdício agrícola. Na China, usa-se o carvão vegetal, na Índia casca de coco, porque é abundante e tem muitas propriedades de adsorção de toxinas. Em Portugal, há muitas plantas e resíduos agrícolas indígenas que encontramos com propriedades de adsorção, nomeadamente cortiça, casca de arroz e bagaço de azeitona.”

Outras plantas são as macrófitas aquáticas, como os juncos e os caniços, que estão os estuários: são muito resistentes, apesar dos poluentes presentes na água, e têm muitas propriedades de adsorção e mecanismos de defesa.

“Sabemos que as plantas também ajudam a degradar os poluentes, através das suas propriedades e secreções, por isso estou a tentar encontrar o equilíbrio perfeito para desenvolver uma tecnologia ecológica simples e de baixo custo para a limpeza de diferentes biomassas de cianobactérias e cianotoxinas em águas contaminadas.”

A partir desta otimização de um modelo de limpeza — adaptado a diferentes tipos de cianotoxinas e cianobactérias —, que permitirá também compreender os mecanismos de remoção envolvidos, serão feitos ensaios de campo. Além disso, Guna quer explorar a aplicação de ZHC “para remover níveis excessivos de nutrientes, de forma a evitar a eutrofização  [excesso de vida vegetal por fertilização e respetiva perda de oxigénio na água] dos corpos de água utilizados para fins de irrigação”.

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Guna tem o trabalho dividido entre o CIIMAR, onde cultiva as bactérias, e a FCUP, onde vai analisar os resultados. “Agora, além de estar a fazer a revisão de literatura científica, estou também a cultivar diferentes culturas de cianobactérias, entre 20 a 40 litros. Demoram cerca de mês e meio a crescer, para depois colhê-las, obter toxinas e começar as minhas experiências laboratoriais.”

Nesse processo, vai ainda contribuir quer para “sequenciação de alto rendimento e nova geração de genes para investigar a atividade microbiana e a dinâmica das comunidades microbianas em ZHC durante operação experimental”, quer para o estudo de grupos de bactérias associadas à eliminação/degradação de toxinas de cianobactérias.

Se tudo der certo, a cientista ambiental terá encontrado uma tecnologia da natureza que poderá ser escalada para ser utilizada na vida prática e contribuir para combater, também, as alterações climáticas.

“Queremos uma eco-tecnologia sustentável em que haja desperdício zero, limpando a água que é usada para a agricultura, de forma acessível, e contribuindo para a segurança alimentar, ao mesmo tempo que ajudamos a despoluir ecossistemas aquáticos.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. Guna Bavithra, atualmente a desenvolver investigação no CIMAR, foi uma das 65 selecionados (sete em Portugal) – entre 1308 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do programa de bolsas de doutoramento INPhINIT. A investigadora recebeu 115 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 já encerraram. Os prazos para a edição de 2023 arrancam em novembro.