Nem mesmo Vladimir Putin sabe muito sobre o próprio pai, Vladimir Spiridonovich Putin. Era um homem silencioso e não costumava falar sobre o passado. “Ninguém costumava naquela altura”, recordou o Presidente da Rússia numa entrevista que surge no livro Na Primeira Pessoa, publicado em 2000: “Os meus pais nunca me contavam nada sobre eles mesmos, especialmente o meu pai“.
Foi com uma fotografia de Putin pai nas mãos que o líder do Kremlin se juntou ao Regimento dos Imortais esta segunda-feira, uma celebração em que milhares de russos passeiam na Praça Vermelha, em Moscovo, no Dia da Vitória, assinalado a 9 de maio na Rússia, em homenagem aos veteranos que sofreram na pele as atrocidades da II Guerra Mundial.
Vladimir Spiridonovich Putin, nascido em São Petersburgo a 23 de fevereiro de 1911, fez parte de um batalhão de destruição do Comissariado do Povo de Assuntos Internos — o equivalente a um ministério da administração interna da União Soviética — nos primeiros tempos da II Guerra Mundial. Putin pai era um dos soldados responsáveis por proteger a retaguarda do Exército Vermelho durante a Operação Barbarossa.
Os relatos que chegam dessa altura, em 1941, é que os batalhões de destruição era uma unidade paralimitar que juntava criminosos soviéticos e voluntários, alegadamente extremistas, que tinham de matar a sangue frio qualquer pessoa que representasse uma ameaça aos soldados. Putin pai voluntariou-se para o batalhão como tripulante de submarinos. E por lá ficou antes de ir para as unidades regulares do Exército.
“Esses batalhões estavam envolvidos na sabotagem atrás das linhas alemãs e o meu pai participou numa dessas operações”, descreveu Vladimir Putin: “Foram mandados para Kingisepp”, no distrito russo de Leningrado. “Deram uma olhadela em redor, estabeleceram uma posição na floresta e até conseguiram explodir um depósito de munições antes de ficarem sem comida”.
Segundo os relatos de Putin filho, o pai encontrou moradores estónios que lhes deram comida, mas que depois lhes denunciaram aos alemães. “Eles quase não tinham hipótese de sobreviver. Os alemães cercaram-nos por todos os lados e apenas algumas pessoas conseguiram escapar”, contou o Presidente da Rússia.
O seu pai foi um deles, mas continuou a ser perseguido enquanto corria para a linha da frente. Lutando pela vida, Vladimir Spiridonovich Putin saltou para dentro de pântano e por lá ficou até despistar as tropas alemãs. Ia respirando por uma cana oca. Após a passagem dos cães que acompanhavam os soldados alemães, veio à tona. Dos 28 homens que compunham a sua unidade, só quatro sobreviveram.
Logo depois, o pai de Vladimir Putin foi enviado novamente para o combate, desta vez junto ao rio Neva. Havia por lá uma pequena área circular que resistia ao domínio das forças alemães — o Neva Níquel — e os soviéticos tinham a missão de a defender. “Um número incrível de bombas foi lançada em cada metro quadrado daquele pedaço de relva, mesmo para os padrões daquela guerra. Foi um massacre monstruoso”, classificou Putin. No fim, os soviéticos resistiram.
Mas Putin pai ficou gravemente ferido no Níquel. Foi durante um interrogatório, contou o Presidente da Rússia: Vladimir Spiridonovich Putin estava a interrogar um prisioneiro com um companheiro de combate quando foi surpreendido por um alemão que irrompeu acidentalmente pela sala. Surpreendido, o inimigo atirou uma granada contra os soviéticos e saiu.
As pernas de Putin pai ficaram gravemente castigadas pelos estilhaços. Um dos companheiros — um vizinho da família que também tinha sido enviado para a guerra — arrastou-o ao longo da linha da frente, em que “todos os centímetros estavam a ser atravessados por balas“, até ao centro e Neva.
“Toda a gente sabia que isto era suicida”, contou Putin filho: “Nenhum comandante teria emitido tal ordem, é claro. E ninguém se voluntariou. O meu pai já havia perdido tanto sangue que estava claro que morreria rapidamente se o deixassem lá”. Quando o soldado (e vizinho) o deixou no hospital, despediu-se e voltou para a frente de batalha. Achava que não veria Vladimir Spiridonovich Putin outra vez. Mas “a vida é uma coisinha tão simples, na verdade“, desabafa Putin na entrevista em que conta este episódio: os dois reencontraram-se por acaso em Leninegrado duas décadas depois.
A mãe de Vladimir Putin, Maria Ivanovna Shelomova, acabou por encontrar o marido. Visitou-o todos os dias durante a estadia de vários meses no hospital. Mas “a própria mamã já estava meio morta“, contou o Presidente da Rússia. Tinha ficado extremamente magra desde que a guerra tinha começado.
O meu pai viu a forma em que ela estava e começou a dar-lhe a comida às escondidas das enfermeiras. Elas apanharam-no rapidamente, notaram que ele estava a desmaiar de fome. Deram-lhe um sermão severo e não deixaram vê-lo durante um tempo”, recorda Putin.
Quando a guerra terminou, o pai de Vladimir Putin foi desmobilizado e começou a trabalhar como operário especializado numa fábrica que fazia comboios em Yegorov.
Nesses tempos, a família Putin viveu num quarto inserido apartamento dividido com outras famílias no centro de São Petersburgo. Quem cozinhava era Putin pai, que já tinha trabalhado como chef antes de ir para a guerra — uma profissão que aprendeu com o seu próprio progenitor, avô do Presidente da Rússia. Spiridon Ivanovich Putin, assim se chamava ele, chegou a trabalhar para Lenine e Estaline.
Em São Petersburgo, Putin pai regressava assim à terra natal depois de se ter mudado com a mulher — com quem casou aos 17 anos por amor, mas também para ter mais “garantias” quando foi para a guerra —, para Tver, terra da avó do Presidente da Rússia. Foi aí que Vladimir Putin foi concebido: Maria Ivanovna Shelomova e Vladimir Spiridonovich Putin já tinham tido dois filhos, mas ambos morreram antes do nascimento de Vladimir. Alberto, nascido nos anos 30, morreu em criança. Viktor, que veio ao mundo na década seguinte, morreu de difteria em 1942 — já o pai estava a batalhar na II Guerra Mundial.
O regresso à cidade que o viu nascer não foi pacífico: era uma regressão na qualidade de vida. Antes da guerra, viviam num apartamento em Peterhof: “[Os pais] tinham muito orgulho da qualidade de vida que tinham atingido. Não era grande coisa, mas parecia o sonho da vida deles”.
O apartamento também era habitat para ninhadas de ratos, com quem Putin filho diz ter aprendido o que era estar “encurralado”. É que, um dia, estava o líder do Kremlin a brincar com um amigo a perseguir os roedores quando conseguiu encurralar um enorme rato num canto da casa. “De repente, virou-se contra mim. Fiquei surpreso e assustado. Agora o rato estava a perseguir-me“, recorda Putin: “Por sorte, fui um pouco mais rápido e consegui fechar a porta com força”.
A história da passagem de Vladimir Spiridonovich Putin é das poucas que o pai do Presidente da Rússia lhe contou diretamente. Os outros detalhes foram captados pelo pequeno Vladimir, nascido sete anos após o fim da II Guerra Mundial, nas grandes reuniões familiares, quando os adultos se juntavam à mesa e partilhavam histórias do passado. Vladimir Spiridonovich Putin morreu a 2 de agosto de 1999.