É supreendente, pela estranheza que provoca, este romance da dinamarquesa Olga Ravn. E a premissa, por si só, rouba a atenção. Aqui, estamos longe e no futuro. A milhões de quilómetros, humanos e humanoides são irmãos, dando a sua mão-de-obra na nave Seis-Mil. Uns e outros são apenas o que dão: trabalho. Uns nascem e morrem, outros são criados e vivem para sempre.
O romance compõe-se quase na sua totalidade por depoimentos desta tripulação, em que vão sendo dadas pistas do que é a vida na nave e também da relação estabelecida entre máquinas e humanos. Os depoimentos surgem no seguimento da descoberta de uns objectos no planeta Nova Descoberta. O comportamento da tripulação muda e os habitantes dão a sua percepção da vida, mesmo quando vida significa bateria.
Título: Os Funcionários
Autora: Olga Ravn
Editora: Elsinore
Páginas: 144
Ravn vai tentando trabalhar no limbo entre inteligência e inteligência artificial e entre emoção e emoção programada. Por vezes, os humanos parecem maquinados, os humanoides cumprem a imitação da humanidade e sabem a coisa humana. Por todo o lado, aparece a questão da produtividade, da instrumentalização da força de trabalho para um fim que não atenta aos meios, sendo a existência, tanto para humanos como para humanoides, reduzida à capacidade de trabalho. A emoção artificial também aparece como ponto primordial, já que define o quadro de relações entre as máquinas, programadas para pensarem como um humano sente:
“É-me difícil compreender que os objetos nas salas não têm sentimentos, embora vocês já me tenham dito que não têm. Se, por exemplo, me esquçeo de pendurar um deles conforme as instruções e ele passa várias horas sozinho, e, quando regresso, o encontro a zumbir no chão, fico com a impressão de que está a sofrer, de que está inquieto por ter passado todo aquele tempo numa posição anómala. Tenho a forte impressão de ter abandonado o objeto, de o ter sujeitado fisicamente à dor, e envergonho-me de mim mesmo.” (p. 27)
Se tudo isto terá o seu interesse, o alcance do romance parece parco. A opção por mostrar a história de vários pontos de vista poderá parecer caleidoscópica, mas acaba por significar que não passamos tempo com nenhuma personagem – ou quase que nem há personagens. A opção narrativa é, por isso, fácil, comprometendo-se cada fragmento, que muitas vezes dura uma página ou menos, apenas consigo mesmo. Desta forma, a autora dinamarquesa põe de lado o mais difícil da execução de um romance, que passa por montar uma estrutura e manipulá-la para um leitor, entrelaçando-a e compondo um todo orgânico. E não é que esse todo não possa existir num romance com estes contornos, mas nunca se foge à ideia de que se está perante um conjunto de mosaicos cuja disposição não é um elemento interno da narrativa.
Com isto, o livro sabe mais a exercício do que a romance. Percebe-se que o intuito, através dos depoimentos, é avaliar a interacção da tripulação com os objectos descobertos, mas falta a ligação entre os elementos, havendo antes informação atirada para se chegar a uma conclusão óbvia: o humano foi reduzido a máquina para que a sua força laboral fosse explorada. E a máquina, por sua vez, apareceu como um humano mais resistente e eficiente, sendo, assim, uma forma de fazer crescer o lucro. Ravn pôs-se no futuro a milhões de quilómetros da Terra para dizer ao leitor mais incauto que o capitalismo é cego, mas seria escusado ter ido tão longe.
O vocabulário parece frio e desinteressado, o que corresponderá à ideia de um cérebro comido pelas máquinas – ou de uma máquina cerebral ao serviço de outras máquinas. Contudo, como o corte da frase é a direito, como pouco mais de 100 páginas bastam para dezenas de depoimentos, tudo sabe a margem e a superfície, o leitor não tem tempo para ter empatia com ninguém, nem humanos nem máquinas conseguem ganhar corpo. À frieza da relação entre humanos e humanoides, faltou a capacidade de se chegar a um coração humano. As personagens vivem pela caracterização e tensão psicológicas. Faltando-lhes isso, podem ser bonecos com interesse, mas não passam de bonecos.
A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico