A primeira ameaça está ultrapassada, mas os próximos episódios adivinham-se complicados. Por agora, a Comissão Europeia interveio na tensão latente entre Espanha e Argélia e conseguiu impedir que a situação chegasse ao cenário mais dramático de um bloqueio comercial. Mas fatores como a dependência energética que Espanha tem face à Argélia, com as complicações que a guerra na Ucrânia veio trazer a esse dossiê, a somar aos problemas históricos que envolvem os dois países e uma decisão histórica — e polémica — de Espanha sobre o controlo do território do Saara Ocidental estão a deixar o Governo espanhol à beira de um ataque de nervos (e a oposição a agarrar o tema).
Os últimos episódios do drama diplomático entre Espanha e Argélia precipitaram-se esta semana, quando, como conta a imprensa espanhola, o governo espanhol foi surpreendido na quarta-feira pela notícia de que a Associação de Bancos e Entidades Financeiras da Argélia tinha instruído os bancos argelinos a congelar os débitos diretos de bens e serviços comprados ou vendidos a Espanha a partir de quinta-feira — uma forma de bloqueio de comércio entre os dois países.
No mesmo dia, nova prova de tensão: o Ministério das Minas e Energia argelino avisava Espanha sobre qualquer desvio do gás exportado “cujo destino seja outro que não o previsto no contrato”. Uma provável referência a Marrocos, ou não tivesse Espanha assinado um acordo para ajudar a “regaseificar” o gás natural liquefeito e reenviá-lo para Marrocos, usando o gasoduto Magrebe-Europa.
E prosseguia: “Quanto às entregas de gás a Espanha, a Argélia já fez saber por uma voz mais do que autorizada, a do Presidente da República [Abdelmajud Tebboune], que continuará a cumprir todos os compromissos assumidos neste contexto” e que todas as empresas estão “interessadas em assumir todos os seus compromissos contratuais”.
Argélia faz marcha-atrás (mas tem vantagem negocial)
Mesmo assim, depois do pico de tensão de quarta-feira, que fez com que a Comissão Europeia se colocasse do lado de Espanha e avisasse a Argélia de que tem de cumprir o acordo de associação que mantém com a União Europeia, a Argélia veio fazer “marcha-atrás”, como conta o El País. Na sexta-feira, um comunicado do executivo argelino já garantia que a “suposta medida” para travar as transações com um “parceiro europeu” seria fictícia: “Só existe na mente dos que se apressaram a estigmatizá-la”.
A gestão cuidadosa que está a ser feita da atual crise, evitando dar passos em falso, tem uma razão evidente de ser: a Argélia é um dos principais fornecedores de Espanha, tendo em 2021 sido mesmo o principal (42,7% do gás). Através de gasoduto fornece toda a Pensínsula Ibérica.
Abastecimento de gás natural a Portugal está assegurado? Já esteve mais
Mas, na situação atual — e particularmente devido aos problemas que a dependência energética da Rússia veio trazer a vários países europeus — a Argélia tem margem de manobra e aproveita não só para aumentar os preços do gás como também para apontar as baterias ao acordo comercial com a União Europeia, que diz ser prejudicial aos seus interesses e permitir muito mais exportações da UE para a Argélia do que em sentido contrário. O presidente argelino já tinha, aliás, anunciado em outubro que pretendia rever o Acordo Euromediterrâno, assinado em 2005, “cláusula por cláusula”.
O problema também se coloca no longo prazo, como aponta o El País: depois do arranque da invasão russa da Ucrânia, Espanha estava na posição ideal para gerir o gás que chega da Argélia e ser a porta de entrada para a Europa. Com a tensão atual — muito suscitada pela relação entre os dois países e Marrocos, mas já lá vamos — Itália passou a ser o “grande sócio estratégico europeu” da Argélia.
Governo espanhol nervoso
A crise está, de resto, a deixar o executivo espanhol em estado de tensão, embora a primeira prova — impedir que as relações comerciais fossem mesmo repentinamente bloqueadas — tenha sido evitada graças aos esforços diplomáticos do ministro dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Albares, conjugado com os do primeiro-ministro, conta a imprensa espanhola.
Mesmo assim, segundo o El Mundo, já há quem no seio do elenco governativo se refira a esta crise como “um desastre”, especialmente numa fase em que há tantas variáveis em jogo, incluindo a guerra na Ucrânia. Como o jornal lembra, há meses que Pedro Sánchez já estava a começar a fazer contactos para diversificar as fontes de gás para Espanha, incluindo com Qatar e Nigéria, prevendo já que a tensão com a Argélia estaria prestes a escalar.
E a oposição reagiu: o Ciudadanos já está a exigir a saída de Albares, e a secretária-geral do PP, Cuca Gamarra, pediu este sábado, em declarações à agência Efe, que a Argélia “não confunda Espanha e os espanhóis com o governo de Espanha”.
Uma tensão com décadas (a mudança que precipitou tudo)
Mas a tensão entre Espanha e Argélia está longe de ter começado agora e tem, na verdade, raízes históricas que envolvem um terceiro player: Marrocos. Isto porque pelo menos desde março que a tensão está a escalar — ou seja, desde que o governo espanhol mudou de opinião sobre o controlo do Saara ocidental e reconheceu que deve ser de Marrocos.
Mudança de posição de Espanha sobre controlo do Saara choca Argélia: “Uma traição histórica”
Na altura, fontes diplomáticas diziam à imprensa espanhola que a decisão de Pedro Sánchez estava a ser vista como uma “traição histórica” à Argélia, que se apressou a chamar o seu embaixador em Madrid. Esta seria, aliás, para os argelinos a segunda traição histórica na luta pelo controlo daquele território, depois do acordo de 1975 (o Acordo Tripartido de Madrid) em que o governo de Franco o entregou a Marrocos e à Mauritânia.
Do lado de Marrocos, naturalmente, registou-se a reação contrária: o país celebrou o “marco histórico” que constitui a posição de Espanha, e que na prática significa que o Saara Ocidental seria considerado parte do reino de Marrocos. A anterior posição espanhola defendia que se fizesse um referendo para decidir sobre a autodeterminação do Saara — uma alternativa contemplada pela ONU.
Marrocos acusa a Argélia de só estar interessada no controlo do território por querer, a nível económico e geoestratégico, uma porta de entrada para o oceano Atlântico através do Saara Ocidental, ficando numa posição de comércio com a Europa privilegiada. Por seu lado, os argelinos garantem que, desde a guerra pela independência com França, sempre apoiaram movimentos de descolonização, não apenas no Saara.
Espanha, que ainda é considerada a potência administrativa colonial do Saara ocidental desde que abandonou o território, em 1975, defendeu durante muito tempo que o controlo de Marrocos sobre o Saara ocidental era uma ocupação.
Agora, o governo de Sánchez reconheceu em março que começava uma “nova fase” na sua relação com o país, com base “no respeito mútuo, no cumprimento dos acordos, na ausência de ações unilaterais e na transparência e comunicação permanente”. E que seria reforçada com o acordo sobre o gás — que a Argélia já demonstrou ter todas as intenções de travar, usando, pelo menos, pressão a nível económico para esse efeito.