“Vagas” e “pouco explícitas”. A Federação Nacional dos Médicos, o Sindicato Independente dos Médicos e a Liga dos Bombeiros Portugueses falaram na manhã desta terça-feira à Rádio Observador sobre o plano de contingência anunciado pela ministra da saúde, Marta Temido, para solucionar o caos nos serviços hospitalares, que levaram e vão levar ao fecho dos serviços de Ginecologia e Obstetrícia, em algumas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
“As declarações continuam a ser tão vagas quanto possível”, considera Noel Carrilho. O presidente da Federação Nacional dos Médicos acusa a Ministra da Saúde de não apresentar soluções concretas para resolver as falhas no serviço, referindo ainda que a expressão “plano de contingência é sempre uma boa expressão para se empregar quando não se tem plano nenhum”.
As declarações, considera, são vagas e, frisa, “não é de declarações vagas que o país precisa”. Para Noel Carrilho, “o país precisa é de medidas concretas”, que tragam mais médicos para o SNS.
Em linha com o que aponta Jorge Roque da Cunha, presidente do Sindicato Independente dos Médicos, para o presidente da Federação Nacional dos Médicos o encerramento dos serviços de urgência são um alerta para um problema estrutural do SNS — alerta esse que o Ministério da Saúde está a “relativizar”, não apresentando propostas para resolvê-lo.
“O que não queremos é que amanhã ou depois os bombeiros possam ser responsabilizados por tempos de espera adicionais”
As alterações e constrangimentos nos serviços de urgências vão afetar o trabalho dos bombeiros, garante António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses.
“A instabilidade não é boa conselheira para uma boa gestão de um setor que é fundamental para o transporte de doentes e sinistrados até as urgências hospitalares”, começa por referir
Isto porque, aponta, o número de ambulâncias não cresce — o que significa que, com a retenção dos veículos e das macas nas unidades de saúde, pode haver menos meios para atender aos pedidos, algo que se verifica “quando existem estas situações em que há um certo descontrole nas urgências.”
“Isto quer dizer que os bombeiros podem vir a ter meios meios para ocorrer aos pedidos de socorro, o que é, de certa forma, inaceitável para a população em geral e para os cidadãos em particular de cada uma das zonas onde tal ocorre.”
Grávida perde bebé alegadamente por falta de obstetras no hospital das Caldas da Rainha
António Nunes conta ainda que os bombeiros nem sempre têm o conhecimento certo e ao momento dos serviços de urgência que estão a funcionar. Até porque, lembra, quando se verificam constrangimentos como aqueles que se vivem agora, o problema passa a ser em cadeia — e mesmo os serviços que estão a funcionar, podem ter de transferir doentes, porque não conseguem dar resposta a todas as situações.
É uma pescadinha de rabo na boca: “Naturalmente, quando se fecha um conjunto de urgências da especialidade vai-se sobrecarregar as que estão abertas e portanto há um determinado momento em que já é a rede da rede. Ou seja, não há capacidade nos próprios hospitais para onde são referenciados os doentes para atendê-los, a não ser que demorem muitas horas e por isso são reencaminhados para outros hospitais. E isso e a situação muito complexa porque ocupa as nossas ambulâncias durante bastante tempo e desprograma tudo aquilo que é possível de se fazer em gestão pré-hospitalar.”
“Os bombeiros portugueses já pediram uma reunião urgente”
De forma a colmatar riscos e dificuldades que são já previsíveis, “os bombeiros portugueses já pediram à senhora ministra e Ministério da Saúde uma reunião urgente para tentar ser parte da solução e não do problema.”
Os bombeiros o que têm de fazer, diz, é irem até aos seus limites. No entanto, frisa, não podem ser responsabilizados pelas consequências da conjuntura atual: “O que não queremos é que amanhã ou depois os bombeiros possam ser responsabilizados por tempos de espera adicionais para além do que é razoável em doentes críticos”, diz, acrescentando que, com os atrasados de chegadas aos hospitais, aumentos de tempo na referenciação e retenção das macas, é previsível que haja “pouca disponibilidade de ambulâncias para ocorrer à primeira chamada.”
Para colmatar o problema, António Nunes sugere: “A colocação de macas adicionais nos hospitais de referência para uma melhor referenciação, uma maior articulação entre o CODU [Centros de Orientação de Doentes Urgentes] e os bombeiros e uma melhor capacidade de distribuição dos nossos meios, que eventualmente poderão ser deslocados de umas localidades para outras, em determinados períodos do dia, de acordo com o que for a afluência.”
“Já houve situações noutros anos e noutros momentos em que os doentes tiveram de ser transferidos para outros hospitais que não sejam da região do Algarve”
Sobre o anúncio do encerramento de uma semana do serviço de urgência de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Portimão, o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses frita que nem sempre é possível reencaminhar os doentes para o hospital mais próximo da mesma região — neste caso, será o de Faro, a cerca de 70 quilómetros, no qual se deverá verificar uma afluência superior e tempos de espera maiores até à próxima segunda-feira, data em que reabre a outra unidade de saúde —, sobretudo quando se trata de zonas do país onde há menos unidades de saúde.
“Já houve situações noutros anos e noutros momentos em que os doentes tiveram de ser transferidos para outros hospitais que não sejam da região do Algarve”, diz, esclarecendo que os casos são relativos a algumas especialidades em que os doentes acabaram em Lisboa.
“Temos aqui um problema estrutural, que não é só um problema de contratação, mas também da organização do trabalho interno”
Na rubrica “Explicador”, da Rádio Observador, Pedro Pita Barros, professor de Economia de Saúde, considera que os grandes problemas nos serviços de saúde acontecem quando o estrutural e o pontual se tocam: “Quando nos aproximamos mais da linha de fronteira na parte estrutural, qualquer pequena situação pontual acaba por se traduzir nestas interrupções de atividade.”
O “menor número de profissionais permanentes dentro dos hospitais”, aliado à “alteração da composição do que eles fazem” são, na opinião de Pita Barros, os problemas estruturais do SNS. São a raiz do caos, quando conjugados com os tais problemas pontuais que surgem sempre — como é o caso do aumento da afluência de doentes por algum motivo especifico (como a gripe no inverno) ou da diminuição de profissionais, por causa de férias ou feriados. Questões “pontuais”, “previsíveis” e “evitáveis”, descreve. “Temos aqui um problema estrutural, que não é só um problema de contratação, mas também da organização do trabalho interno”, considera.
SNS. “Não é só uma questão de contratação, mas também de organização”
Medidas pontuais são necessárias, mas podem ser “contraproducentes e perigosas no futuro”
Xavier Barreto, administrador hospitalar do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, também em declarações à Rádio Observador, considera que a solução “aceitável” e “menos má” para as próximas semanas e para os meses de verão poderá passar pela “alteração transitória do funcionamento da rede materno-infantil na região de Lisboa e Vale do Tejo”, organizando os recursos e concentrando “a resposta em alguns hospitais” — não só num, “mas em dois, três ou quatro” — de forma mais organizada e estruturada.
“Isso já está de facto a acontecer. A questão é fazer isso de forma organizada e ordenada e dando conhecimento às populações sobre a organização para não se correr o risco de dar com nariz na porta, como infelizmente tem acontecido.”
Apesar das possíveis soluções de curto prazo, Xavier Barreto lembra que o caos instalado nos serviços de urgências são uma “questão estrutural” e não “conjuntural”, que tem vindo a agravar-se. A contribuir para a conjuntura atual, estão, considera “mais saídas [de profissionais]”, somadas a uma menor disponibilidade dos mesmos para abdicar das suas férias e do seu tempo”, para horas extraordinárias “para lá do limite legal”. Por tudo isto, “medidas pontuais” podem ser “contraproducentes e perigosas no futuro.”
Para Tiago Correia, “neste processo todo não há inocentes”. Na opinião do especialista em saúde internacional, o “imobilismo político” na tomada de decisões é, em grande parte, culpado pela conjuntura atual, impossibilitando a criação de um sistema que seja capaz de dar a tal resposta capaz. É um problema em cadeia, diz: o Ministério das Finanças tem uma “enorme desconfiança” face ao Ministério da Saúde, mais concretamente, na sua gestão do dinheiro público; o Ministério da Saúde, por sua vez, desconfia dos profissionais e do seu “desempenho”; já os profissionais, “em concreto as Ordens”, têm “pouca disponibilidade para discutir modelos mais colaborativos de trabalho.” Tudo junto, resulta no tal problema estrutural “agravado por situações conjunturais”.
Artigo atualizado com declarações de Pedro Pita Barros, Xavier Barreto e Tiago Correia.