Já se imaginou a atravessar o leito do rio Mondego por baixo da ponte de Santa Clara? Ou descer o rio Douro com a canoa pela mão, nadar numa albufeira de areia no Alentejo ou ter de caminhar sobre as pedras da margem do rio Tejo para chegar ao cacilheiro? As imagens podem parecer exageradas, mas são reais e uma ilustração portuguesa do que se passa um pouco por toda a Europa. A escassez de chuva e as ondas de calor deixaram o continente seco, mesmo nos países mais a norte, onde não se esperava que faltasse a água.

Ainda estávamos em pleno inverno e já se noticiava o anormal período sem chuva em Portugal e Espanha. A falta de água era de tal forma evidente, que pôs a descoberto uma aldeia galega, junto ao rio Minho, submersa em 1992 — a aldeia reapareceu em setembro de 2021 e passados seis meses, quando o Observador visitou o local, o nível da água continuava a baixar. Agora são as Pedras da Fome, nos rios da Alemanha, o dólmen de Guadalperal, em Espanha, e uma bomba da II Guerra Mundial, em Itália, a ficarem expostos pela seca. A nascente do rio Tamisa, no Reino Unido, secou e deslocou-se oito quilómetros para jusante, uma distância inédita, depois do julho mais seco desde 1836. E nem os rios dos Países Baixos escaparam as efeitos da seca prolongada (como pode ver na fotogaleria acima).

As aldeias submersas que a seca fez emergir e os turistas que elas atraem

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A subida ou descida no nível dos rios significa, muitas vezes, morte, destruição ou fome. Em Portugal, é comum as povoações ribeirinhas assinalarem nas paredes dos edifícios — até de museus ou edificações mais antigas — a altura da água nas maiores cheias do local. Na Europa central, por outro lado, marcam-se nas pedras das margens do rio as maiores secas conhecidas. E como, sem dúvida, a seca traz prejuízos para a agricultura e pecuária, estas pedras ficaram conhecidas como as Pedras da Fome.

As marcas que resistiram à erosão apresentam secas históricas, do século XV ao século XIX, embora também sejam frequentes marcas do século XX e XXI, com destaque para os anos de 2003 e 2018 nos rios que atravessam a Alemanha, Reno e Elba. Este ano, as Pedras da Fome voltaram a emergir, juntamente com as mensagens de alerta do passado: “Quando me vires, chora” (“Wenn du mich siehst, dann weine”).

6 fotos

A seca severa, a pior dos últimos 70 anos em Itália, também deixou a descoberto uma bomba da II Guerra Mundial. A bomba de 450 quilos, ainda por detonar, foi encontrada por um pescador no rio Pó, o maior rio italiano, que atravessa o Norte do país de oeste para este. Ao longo dos 652 quilómetros de rio são vários os troços completamente secos, com as autoridades a declararem estado de emergência em várias regiões, no mês de julho.

No Reino Unido, a nascente do rio Tamisa da Inglaterra secou e mudou-se para oito quilómetros abaixo do seu local habitual, após semanas de pouca chuva e da onda de calor de julho, que também bateu recordes históricos de temperaturas no Reino Unido (que esta semana espera uma nova vaga de temperaturas elevadas, acima dos 30ºC). O Tamisa (Thames), que desagua depois de atravessar Londres, no mar do Norte, nasce em Cirencester, na zona montanhosa de Cotswolds. Mas, agora, a sua nascente moveu-se para sul, 8 mil metros a jusante, em Somerford Keynes, de acordo com o instituto Rivers Trust. E o caudal é fraco e mal se nota, numa situação sem precedentes.

O que estamos a observar na nascente do icónico rio Tamisa é tristemente emblemático da situação que estamos a enfrentar em todo o país, agora e no futuro”, disse Christine Colvin, diretora do Rivers Trust, citada pela CNN.

“Adaptação já não é uma opção, é uma obrigação”

Na história da Europa, os países enfrentaram secas e cheias, ondas de calor e temporais, mas nunca como agora foram tão frequentes, alertam os especialistas. Este “novo normal” está, por exemplo, a provocar a maior seca na França desde que se iniciaram os registos em 1958 — isto depois de o país ter atingido temperaturas recorde e de se ter visto a braços com fortes incêndios na última onda de calor que também passou por Portugal (uns dias antes).

Os estudos sobre as alterações climáticas alertam que os períodos de seca vão ser mais intensos, mais frequentes e mais longos”, disse Nuria Hernández-Mora, da Fundação Nova Cultura da Água, citada pelo The Guardian. “Este vai ser o novo normal e, no entanto, continuamos a aprovar o aumento da utilização de um recurso que não temos e que está a tornar-se mais escasso.”

À semelhança do que está a acontecer em várias localidades em Portugal — 50, em sete municípios transmontanos —, são mais de 100 os municípios em França sem água corrente para consumo. Estas povoações estão a ser abastecidas por camiões cisterna. “Vamos ter de nos adaptar a episódios deste tipo. Adaptação já não é uma opção, é uma obrigação“, disse o ministro da transição verde francês, Christophe Béchu, citado pelo The Guardian.

Europa pode ter a onda de calor mais intensa desde 1757. Inglaterra, França e Alemanha também vão chegar aos 40ºC

No dia 21 de junho, com reconhecimento oficial publicado em Diário da República, todo o território de Portugal continental foi considerado como estando em seca severa ou extrema, depois de termos vivido o maio mais quente de 1931. Mas o problema não ficou por aí: a onda de calor em julho — o mês mais quente dos últimos 92 anos, em Portugal continental — agravou a seca e deixou mais de 20 barragens abaixo dos 40% de capacidade. Julho foi um mês extremamente quente em relação à temperatura do ar e muito seco em relação à precipitação, conforme relatório do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) conhecido na semana passada.

Seca. Ano hidrológico com metade da chuva normal, diz IPMA

Esta terça-feira, o IPMA acrescentou que, desde outubro do ano passado até agora, choveu metade do que seria expectável num ano hidrológico normal — este ano hidrológico de 2021/2022 é o segundo mais seco desde 1931, quando se iniciaram os registos (pior só 2004/2005). Também Espanha teve menos de metade da precipitação esperada, nos últimos três meses, e vive aquele que será o ano mais seco dos últimos 60 anos. Neste momento, 55% do território continental português está em seca severa e 45% em seca extrema.

A grave seca que afeta várias regiões da Europa desde o início do ano continua a expandir-se e a agravar-se. As condições de seca estão relacionadas com uma ampla e persistente falta de precipitação combinada com as ondas de calor antecipadas, em maio e junho”, lê-se no relatório “Seca na Europa”, de julho de 2022, do Observatório Global da Seca.

“Condições mais secas do que o normal continuam durante os próximos três meses”

De Portugal à Ucrânia e de Itália à Suécia, passando pelo Reino Unido, não há país europeu que não tenha, pelo menos em parte do território, precipitação abaixo do normal ou o solo com baixos teores de água — de acordo com os dados de julho. A maioria dos países apresenta, no entanto, regiões com um elevado nível de secura da vegetação, o que só facilita a ocorrência de grandes incêndios. Em meados de julho, 45% do continente estava no nível laranja (aviso) e 15% no vermelho (alerta), de acordo com os dados do Observatório Europeu da Seca.

5 fotos

Não bastasse o aumento dos preços dos cereais por causa da guerra na Ucrânia e o bloqueio da Rússia à exportação dos alimentos, a seca na Europa resultará numa quebra significativa de produção com o consequente aumento dos preços, a refletir-se em vários alimentos. O rio Pó, por exemplo, que fornece água a um terço da produção agrícola italiana, tem agora essa produção em risco, sobretudo o tomate (que precisa de muita água para crescer) e as plantações de arroz para risoto (porque com a escassez de água no rio, a água salobra entra no delta vinda do mar Adriático). Além de Itália, Espanha, França, Portugal e Roménia terão quebras significativas na produção agrícola, mas também algumas áreas da Alemanha, Croácia, Eslovénia, Hungria e Polónia, como referido no relatório do Observatório Global da Seca.

Na Suíça, por sua vez, a indústria mais atingida será a dos laticínios (leite e queijos), antevendo-se uma rutura na produção do famoso queijo suíço gruyè. Com as pastagens já muito secas no topo das montanhas, as autoridades de Fribourg, Jura e Neuchâtel viram-se obrigadas a abrir as pastagens nos vales, que só costumam ser usadas em setembro. No cantão de Obwalden, teve de ser um helicóptero do exército a levar água do lago Sarnen às vacas de Kerns.

A competição pelos recursos é alta e começou mais cedo do que o normal”, conclui-se no relatório do Observatório Global da Seca. “Prevê-se que condições mais secas do que o normal continuem durante os próximos três meses em largas áreas da Europa.”

Nem a vida selvagem terá muitas formas de se escapar à seca. Na Bélgica, muitos rios estão praticamente secos, obrigando os peixes a nadar (e morrer) em águas que mais não têm do que esgotos urbanos e efluentes industriais. No país, até as turfeiras estão secas — estas zonas húmidas são importantes para manter a biodiversidade, controlar o abastecimento de água e prevenir cheias e secas. Na Alemanha, por sua vez, secam os lagos do centro do país.

A seca também vai afetar a produção de energia, com os rios muito abaixo do caudal ideal para as hidroelétricas e as centrais nucleares e termoelétricas obrigadas a reduzir a quantidade de água de refrigeração (quentes) que despejam nos rios.

O rio Reno, que nasce nos Alpes e desagua no mar do Norte (depois de percorrer mais de 1.200 quilómetros), é um meio fundamental de transporte entre a Alemanha e os portos de Roterdão e Antuérpia (Países Baixos) de combustíveis fósseis e outras matérias-primas. Com a crise energética causada pela guerra na Ucrânia, a Alemanha vê-se forçada a voltar ao carvão, mas os barcos do Reno estão a trabalhar com apenas 25% da carga para evitarem ficar encalhados.

Reduzir o uso de água em toda a Europa

A Comissão Europeia aconselhou que os países usassem a água das estações de tratamento de águas residuais para a regra. As recomendações de uso regrado e sustentável da água, nas casas, turismo, agricultura e indústria são transversais, mas há países com imposições mais rigorosas.

Portugal

  • Turismo do Algarve propôs reduzir água em fontes, piscinas e espaços verdes, como campos de golfe. O Governo impôs que os hóteis algarvios poupassem no consumo, com medidas como, por exemplo, a mudança de toalhas e lençóis só de dois em dois dias.
  • Os 16 presidentes de câmara do Algarve decidiram também, como combate à seca, durante o mês de agosto e, eventualmente, o mês de setembro, por exemplo, encerrar fontes ornamentais e diminuir a rega.
  • Os serviços municipalizados Águas de Viseu decidiram colocar as ensecadeiras (estruturas de contenção temporárias) nos descarregadores (que libertam a água) de superfície da barragem de Fagilde, com o objetivo de aumentar a capacidade de armazenamento de água.
  • Em Trás-os-Montes, autotanques já levam água a 50 localidades, a maioria aldeias (em Trás-os-Montes, nos distritos de Bragança e Vila Real) que habitualmente têm falta de água nesta época, mas cujo um problema que se agravou devido à seca.
  • A maioria das Câmaras pediu às populações para ser contida nos consumos, nomeadamente na rega e enchimento de piscinas.

Abrantes reforça medidas de gestão, poupança e uso público de água

Alemanha

  • As árvores dos jardins públicos de Nuremberga são regadas com a água das piscinas municipais, forçadas a fechar para poupar gás.

Bélgica

  • Os agricultores estão proibidos de bombear água para regar as culturas, apesar de o julho mais quente desde 1885 já ter feito secar grande parte das turfeiras (zonas húmidas que ajudam a controlar o abastecimento de água e a prevenir as secas).
  • Treze comunas nas Ardenas proibiram que as pessoas enchessem as piscinas.

França

  • A rega está proibida em 93 dos 96 departamentos de França continental, com 62 em situação crítica.
  • Centrais nucleares para produção de energia, junto aos rios Ródano e Garonne, obrigadas a baixar a produção devido às temperaturas elevadas que as descargas de água de refrigeração provocam nos rios.

Espanha

  • A maior parte das medidas de restrição foram impostas aos consumidores domésticos, apesar de a agricultura representar 90% do consumo.
  • A partir de setembro, também Barcelona poderá ter de restringir o uso de água, uma vez que o turismo pós-pandemia fez aumentar os consumos em 10%.

Itália

  • Restrições no consumo doméstico de água potável na bacia do rio Pó desde o final de junho/início de julho.

Países Baixos

Reino Unido

  • Duas regiões de Inglaterra proibiram o uso de mangueiras, logo não é possível lavar os carros, regar os jardins privados ou encher as piscinas.

Correção na grafia o rio Tamisa, às 11h40 de 10 de agosto