Um caso de poliomielite que deu entrada no hospital e a deteção do vírus nos esgotos da região onde vive o doente marcam a segunda vez que os Estados Unidos registam a transmissão comunitária do vírus da poliomielite em mais de 40 anos. A sequenciação genómica do vírus (leitura dos genes que o compõem) sugere que a transmissão pode estar a acontecer há um ano, concluem os investigadores dos Centros de Controlo e Prevenção da Doença norte-americanos (CDC) numa publicação desta terça-feira.

O último caso de infeção com a forma selvagem do vírus nos Estados Unidos aconteceu em 1979 e desde 1994 que se considera que o país está livre do poliovírus — como aconteceu em muitos outros países do mundo, incluindo em Portugal (2002). A infeção pode provocar inflamação do cérebro ou a paralisia de membro ou órgãos (como os pulmões), mas a vacinação continua a ser a melhor forma de prevenir a doença poliomielite (o nome dado quando se verifica paralisia). O problema surge nas pessoas não vacinadas, como no caso registado em junho e notificado no mês seguinte.

Quando se detetou este caso?

Em meados de junho, um jovem adulto deu entrada no hospital com queixas de “febre baixa, rigidez do pescoço, dores nas costas e abdominais, obstipação e dois dias de fraqueza bilateral das extremidades inferiores”, descreve a publicação do CDC. Os sintomas tinham tido início cinco dias antes e quando teve alta, 16 dias depois do início dos sintomas, mantinha-se a “fraqueza flácida das extremidades inferiores” — condição que impede que uma pessoa seja capaz de se aguentar de pé.

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Que vírus foi encontrado?

O vírus detetado nas fezes do doente era semelhante ao vírus enfraquecido usado nas vacinas orais contra a poliomielite, mas agora reativado, capaz de causar infeção e de ser transmitido entre pessoas. O invulgar nesta situação (embora não seja a primeira vez) é que a vacina oral, com vírus vivos enfraquecidos, deixou de ser usada nos Estados Unidos há mais de 20 anos — desde o ano 2000 usa-se uma vacina injetável com o vírus inativado.

A análise genética do vírus verificou não só que era um poliovírus tipo 2 derivado da vacina, como apresentava 10 modificações nas peças que compõe uma determinada região do código genético, aquela que contém as instruções para o fabrico da cápsula que envolve o vírus. “[Estas modificações] sugerem que a transmissão esteja a acontecer há um ano apesar de o local de transmissão ser desconhecido”, referem os autores do artigo.

Quando poderá ter sido infetado o doente?

Os sintomas podem aparecer sete a 21 dias depois de a pessoa ter sido exposta ao vírus — sendo este o período de incubação típico — ou, dito de outra forma, o doente pode apresentar paralisia das pernas (ou outros semelhantes a gripe) ao fim de uma a três semanas depois de ter sido infetado. Neste caso, o doente não fez nenhuma viagem internacional (onde poderia ter contactado com alguém que tivesse tomado a vacina oral, comum em África e na Ásia) e terá tido apenas um momento de potencial exposição num grande ajuntamento, oito dias antes dos primeiros sintomas.

É importante referir que o jovem adulto não estava vacinado, uma coisa que costuma acontecer ainda em criança — nos Estados Unidos, com quatro doses até aos seis anos. Em Portugal, o programa de vacinação fica completo com três doses (entre os dois e os 12 meses) e dois reforços (aos 18 meses e cinco anos). Pessoas não vacinadas ou com um sistema imunitário debilitado constituem o hospedeiro ideal para o vírus causar uma infeção sintomática (ou morte) e para sofrer mutações.

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Como são as vacinas contra a poliomielite?

Existem dois tipos principais de vacinas contra a poliomielite: as orais, dadas por gotas na boca, com o vírus atenuado; e as injetáveis, nas pernas ou braços, com um vírus inativado. Os vírus atenuados podem retomar a capacidade de infetar, replicar-se e ser transmitido, sobretudo quando usado em locais com baixa cobertura vacinal; os vírus inativados não.

A poliomielite é uma doença que pode provocar paralisia ou morte — ou as dores e fraqueza muscular podem regressar ao fim de décadas — e a vacina é a única proteção contra a doença. A vacina é considerada segura e a reativação do vírus só acontece nas situações em que a proteção na comunidade é baixa.

Os Estados Unidos optaram por usar a vacina injetável (tal como Portugal) que é eficaz na proteção contra a doença causada por qualquer um dos três tipos de vírus selvagens ou dos vírus derivados da vacina oral — três doses são o suficiente para evitar a paralisia em 99% dos casos. Mas esta vacina não previne a transmissão.

A vacina oral pode ter na sua composição qualquer um dos tipos de poliovírus isolados ou combinados com os restantes. Como induz a imunidade no intestino, onde o vírus se pode instalar, também é eficaz na prevenção da transmissão.

Que medidas foram implementadas?

A poliomielite é uma doença de notificação obrigatória e a partir de julho teve início uma vigilância mais apertada de casos suspeitos (incluindo infeções sintomáticas pelo poliovírus sem paralisia) e a deteção da presença do vírus nos esgotos, uma vez que o vírus se instala nos intestinos e pode ser libertado nas fezes. O contacto com as fezes, mas também as gotículas expelidas pelos espirros e tosse são as principais formas de transmissão deste vírus altamente contagioso.

Foram analisadas 260 amostras dos esgotos dos condados de Rockland e Orange, no estado de Nova Iorque, até 10 de agosto: 21 delas tinham vestígios do poliovírus. Dessas, 20 (de maio, junho e julho) foram analisadas e mostraram estar relacionadas geneticamente com o vírus encontrado nas fezes do doente.

O facto de vermos o vírus nos esgotos 25 dias antes significa que [o doente de Rockland] provavelmente nem sequer é o segundo caso”, disse Joseph Eisenberg, um epidemiologista de doenças infecciosas da Universidade do Michigan, ouvido pelo jornal The New York Times.

Na cidade de Nova Iorque, o vírus também foi detetados em seis amostras dos esgotos.

Em que outros locais foi detetado este poliovírus?

“As comparações das sequências genéticas encontraram uma ligação [entre o vírus das fezes do doente norte-americano] e poliovírus tipo 2 derivado das vacinas que foram recentemente detetados nos esgotos de Israel [em março] e do Reino Unido [em junho]“, referem os investigadores do CDC. No Reino Unido ainda não houve casos da doença, mas em Londres, onde os vestígios do vírus foram detetados, apenas 86% da pessoas têm as três doses da vacina (contra 92% no resto do país).

A equipa considera que, na ausência de uma viagem internacional do doente, o vírus se encontra em transmissão comunitária nos Estados Unidos — mesmo não tendo causado outros casos de paralisia — e que terá tido origem numa pessoa que recebeu uma vacina oral contra a poliomielite — mas não se sabe onde nem quando.

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Qual a cobertura da vacina contra a poliomielite?

A cobertura vacinal contra a poliomielite em Portugal ronda os 95% para crianças abaixo dos sete anos. Em 2020, 99% das crianças nascidas no ano anterior já tinham tomado três doses da vacina, de acordo com o boletim do Programa Nacional de Vacinação.

Nos Estados Unidos, a cobertura nacional é um pouco inferior: 92,7% das crianças nascidas entre 2017 e 2018 tinham tomado as três doses da vacina até aos dois anos. Mas no condado de Rockland é ainda mais baixa: 60,3% em agosto 2022, com algumas zonas do condado de onde é originário o doente a registarem apenas 37,3%.

“A baixa cobertura vacinal no condado de residência do doente indica que a comunidade está em risco para casos adicionais de poliomielite com paralisia”, alertam os investigadores do CDC. “Mesmo um único caso de poliomielite com paralisia representa uma emergência de saúde pública nos Estados Unidos.”