Paula Parreira é cientista de profissão e maratonista por convicção. “Tenho o objetivo de fazer as 6 Major Marathons da Abbott, uma empresa farmacêutica e de cuidados com a saúde.” Já fez a de Berlim, em breve fará a de Chicago e a de Nova Iorque. Além disso, já participou noutras dez provas do género.

“Antes odiava correr, comecei em 2015, como promessa, porque o meu pai na altura foi diagnosticado com cancro.” Ele recuperou, mas Paula não parou. A corrida tornou-se a forma de concentração da investigadora. Hoje corre pela fundação Brave like Gabe. “É dos meus momentos mais criativos, que me permite pensar, ajuda a resolver e a hierarquizar problemas científicos.”

É isso que ajuda a explicar os dois relógios que usa habitualmente no pulso esquerdo. “O branco uso para correr, o outro porque, quando estou a trabalhar, não consigo ver o telemóvel e gosto de estar sempre contactável, porque o meu marido é piloto de helicópteros do INEM e preciso saber que está bem.”

A infeção por Helicobacter pylori está associada a problemas como gastrite crónica, úlcera péptica, azia, anemias, carcinoma gástrico e linfoma gástrico da mucosa. Paula Parreira espera contribuir para alterar este cenário

Mas, além disso, Paula está sempre em sprint entre a câmara de fluxo da sala de biossegurança de nível 2, o laboratório e a câmara frigorífica, para desenvolver o trabalho de investigação recentemente financiado pela Fundação “la Caixa”: nanopartículas para controlar a Helicobacter pylori (H. pylori), a bactéria que coloniza a mucosa gástrica e é altamente resistente a antibióticos. É considerada a infeção crónica mais prevalente no mundo. Afeta cerca de 70 a 90% da população em países considerados menos desenvolvidos. E cerca de 25 a 50% em países com melhores condições.

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Esta bactéria está presente no estômago de 50% da população mundial, cerca de quatro mil milhões de pessoas, e é responsável por 90% dos problemas de cancro gástrico mundiais, representando cerca de um milhão de novos casos anualmente. “Em Portugal, cerca de 70% das pessoas têm esta bactéria”, diz a microbióloga.

O problema é quando a infeção e a inflamação provocadas por esta bactéria se tornam crónicas. Numa percentagem de pessoas, cerca de 3%, as alterações a nível das células gástricas provocadas pela infeção e inflamação (gastrite) crónica podem evoluir, com o passar dos anos, para cancro gástrico que, neste momento, é o quinto mais comum e o quarto que mais mata em todo o mundo.”

A infeção por esta bactéria está associada a problemas como gastrite crónica, úlcera péptica, azia, anemias, carcinoma gástrico e linfoma gástrico da mucosa. Depois, nos últimos dez anos, “a resistência aos antibióticos convencionais utilizados no tratamento contra a H. pylori aumentou de 20% para 40%, deixando cerca de 1,6 mil milhões de pessoas em todo o mundo sem outras opções para eliminar a infeção.”

Ou seja, “em cada dez pacientes, os antibióticos falham entre 2 a 4”, problematiza a cientista, indicando que mesmo após um ciclo de tratamentos com antibióticos os pacientes vão continuar infetados. Depois, a terapêutica é muito desconfortável. “São vários comprimidos durante 10-14 dias, com muitos efeitos secundários, como náuseas e diarreias, para além de destruir toda a flora gastrointestinal, essencial para uma vida saudável.”

As nanopartículas para controlar a Helicobacter pylori, que coloniza a mucosa gástrica e é altamente resistente a antibióticos, poderão ser uma solução para este a infeção crónica mais prevalente no mundo

A investigação NanoPyl®, de que Paula Parreira é líder de grupo, começou em 2013, num trabalho de doutoramento da investigadora Catarina Seabra, desenvolvendo as nanopartículas, e está no caminho de apresentar uma solução mais sustentada, sem antibióticos, para combater essa bactéria. “Estamos numa fase avançada que tem já toda a parte in vitro e in vivo em modelo animal feitas e vamos agora iniciar a proposta para a validação em humanos”.

Da equipa do i3S, fazem também parte Cristina Martins, investigadora principal e líder do grupo Bioengineered Surfaces, Rute Chitas, doutoranda, e Bárbara Macedo, do gabinete de transferência de tecnologia. Além disso, conta com um conselho de consultores, com Catarina Seabra, Cláudia Pinho e Sallete Reis da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto. Da equipa médica de gastroenterologia fazem parte Mário Dinis Ribeiro, do IPO, e Marcis Leja, da Universidade de Riga, Letónia, e um elemento da ligação à indústria, Eyal Ron, parceiro de gestão da norte-americana Sensei Ventures.

Em pequena, Paula tinha uma certeza: era fascinada pelo mundo da saúde e, em particular, pelo universo dos microorganismos. “Eles já andavam por aqui antes de nós e vão continuar depois. Isso diz muito sobre a capacidade de sobrevivência.” Mas ser cientista não estava nas respostas à pergunta cliché: o que queres ser quando fores grande? “Eu queria ser piloto de Fórmula 1. Via com os meus pais e era viciada nas competições”.

“A resistência aos antibióticos convencionais utilizados no tratamento contra a H. pylori aumentou de 20% para 40% nos últimos anos, deixando cerca de 1,6 mil milhões de pessoas em todo o mundo sem outras opções para eliminar a infeção”, diz a investigadora

Quando terminou o secundário, em Ciências, percebeu o que não queria como profissional ligada à saúde. “Eu não iria conseguir lidar com toda a parte da dor e sofrimento humano. Por isso achei que se estivesse do lado laboratorial também poderia ser útil à sociedade.”

Na altura, em 2003, enveredou pela então recente Licenciatura em Microbiologia, na Escola Superior de Biotecnologia, na Universidade Católica Portuguesa no Porto. Para os pais foi “um choque” porque “achavam que iria ser médica ou enfermeira”. “Acabei por vir para o laboratório e até hoje sou muito feliz no que faço”.

Entre 2007 e 2013 doutorou-se em Engenharia Biomédica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, tendo desenvolvido o trabalho laboratorial no Instituto Nacional de Engenharia Biomédica (INEB) e na University of Illinois at Urbana-Champaign (EUA).

Mesmo após um ciclo de tratamentos com antibióticos, os pacientes continuam infetados. A nova terapêutica (ainda em estudo) poderá inverter esta situação e evitar efeitos secundários como náuseas e diarreias, além da destruição da flora gastrointestinal

Seguiu a carreira científica, trabalhando com o universo microbiológico da Helicobacter. Foi investigadora no Centro de Biotecnologia Agrícola e Agro-Alimentar do Alentejo (CEBAL), em Beja, onde iniciou o pós-doutoramento no grupo da investigadora Fátima Duarte. Nesse período incidiu a investigação no uso de compostos bioativos extraídos de eucalipto e de cardo, por exemplo, contra bactérias multirresistentes a antibióticos, entre as quais a H. pylori. Além disso, essa abordagem é sustentável, contribuindo para a economia circular. “Os extratos são muitas vezes obtidos de partes da planta que não teriam outro uso, seriam lixo, podendo assim ser valorizados”, faz questão de notar.

Em 2017 regressou ao Porto, ao i3S, para o grupo liderado pela cientista Cristina Martins. “Nessa altura, decorriam os testes in vivo deste projeto e conseguimos erradicar a bactéria em metade dos animais e reduzir 90% da carga bacteriana nos que não erradica, o que é muito bom”, explica. Conseguiram evidenciar também que “o uso dessas nanopartículas não induz resistência na H. pylori e não altera a flora gastrointestinal dos ratinhos”. A investigação utiliza nanopartículas, com cerca de 300 nanómetros de diâmetro e funcionam com o uso de excipientes que já existem na indústria alimentar e farmacêutica.

“O facto de os excipientes estarem em nanopartículas e o facto de ser completamente diferente de todas as outras bactérias, faz com que a H. pylori interaja com as nanopartículas, rompendo a membrana”, elucida. Ou seja, é uma espécie de engodo e, apesar de não ter “nenhum isco”, as nanopartículas são extremamente eficazes.

O financiamento “la Caixa” inicial de 70 mil euros poderá permitir à equipa de Paula Parreira (aqui com Cristina Martins e Rute Chitas) desenhar o estudo-piloto em humanos e manter a propriedade intelectual na investigação

A equipa suspeita que isso sucede pelo facto de as nanopartículas serem hidrófilas, cobertas com água, que pode ser confundida com o muco protetor do estômago, pois a bactéria “pensa” que está no sistema gastrointestinal. “Ao contrário das outras bactérias, a H. pylori não é repelida pela água, por isso há aqui este paralelismo que nós pensamos que seja a razão de ela morrer, sem capacidade de recuperar, até porque estas nanopartículas não têm nenhum composto ativo.”

Nesta fase, o financiamento “la Caixa” inicial de 70 mil euros da categoria CaixaResearch Validate vai permitir desenhar o estudo-piloto em humanos e manter a propriedade intelectual na investigação e pesquisar outras possibilidades. Em outubro, no pitch na Fundação “la Caixa”, já com um plano de negócios e o desenvolvimento da proposta, a investigação poderá captar mais financiamento, até cem mil euros.

O objetivo é desenvolver até 2024 uma proposta robusta para um estudo multicêntrico com, pelo menos, trinta pacientes de vários hospitais, como por exemplo do Instituto Português de Oncologia e do Hospital de São João, e que tenham feito a terapia para a Helicobacter pylori e que tenha falhado. Para isso, vão ter apoio de uma organização de pesquisa clínica, altamente especializada neste tipo de atividades, para posterior transferência de tecnologia.

Se tudo correr bem, as nanopartículas “em teoria permitirão salvar cerca de 800 mil a um milhão de vidas por ano, que morrem de cancro do estômago”, além de melhorar a qualidade de vida das outras pessoas que sofrem de úlceras e mal estar gástrico

“É a solução que vai aos doentes, em ambiente clínico, e não o contrário. A ideia é tomarem o NanoPyl® durante 14 dias, ou talvez mais, ainda vamos averiguar, que é uma solução aquosa e que será tomada de forma oral. Vamos também investigar outras formas de tornar o produto mais ajustado para consumo: se será melhor em pó ou cápsula.”

Para já os dados mais motivadores das experiências in vivo com os animais são o facto de, por um lado, não causar efeitos secundários, não destruindo o microbioma gastrointestinal e, por outro, não criar resistência à bactéria, como sucede com os antibióticos.

Se conseguirem provar o mesmo em humanos, “em teoria permitirá salvar cerca de 800 mil a 1 milhão de vidas por ano, que morrem de cancro do estômago, até porque, esses 90% provocados pela infeção crónica com H. pylori  poderiam ser prevenidos”. Além disso, poderá melhorar a qualidade de vida das outras pessoas que sofrem de úlceras e mal estar gástrico.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto NanoPyl®, Nanopartículas para Controlar a Helicobacter pylori sem Utilizar Antibióticos, liderado por Paula Parreira, do i3S ( Universidade do Porto), foi um dos 15 selecionados (quatro em Portugal) – entre 110 candidaturas internacionais – para financiamento (setenta mil euros) pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do CaixaResearchValidate, um programa que promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2023 deverão abrir em novembro.