Uma prestação única de mil dólares (cerca de 999 euros) por cada família pobre em África seria o suficiente para transformar a vida destas pessoas em quase todos os sentidos. Isto é o que defende o diretor executivo da organização norte-americana sem fins lucrativos GiveDirectly, Rory Stewart.

O princípio defendido pelo antigo deputado conservador britânico e pela associação que dirige pretende dar dinheiro às pessoas para comprarem aquilo que precisam em vez de se promoverem campanhas que fornecem recursos que podem não lhes ser úteis e sem que parte deste valor ficar retido pelos intermediários, indica o jornal The Telegraph.

Assim, acabava-se também com o efeito helicóptero dos países mais ricos que chegam aos países em desenvolvimento para mostrar às comunidades o que devem fazer para sair da pobreza. Mas esta ideia terá mais dificuldade em passar da teoria à prática do que poderia parecer à partida.

Rory Stewart, antigo secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional em 2019, é bastante crítico em relação a outros modelos de caridade e de ajuda às comunidades mais pobres, referindo-se a eles como atitudes paternalistas e condescendentes.

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Vestimo-lo com palavras extravagantes como melhores práticas e desenvolvimento de capacidades. Mas basicamente, ‘melhores práticas’ significa que sabemos o que é melhor. E ‘reforço de capacidades’ significa que precisamos de lhe ensinar o que fazer. E depois, se falharem, dizemos que há falta de ‘vontade política’. Por outras palavras, dizemos que são preguiçosos”, disse Rory Stewart ao The Telegraph.

Dar dinheiro a uns faz outros questionar o que terão feito de errado

A organização foi fundada por dois alunos de doutoramento da Universidade de Harvard e Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) em 2008. Cerca de 10 anos depois, a GiveDirectly lançou uma experiência em algumas povoações quenianas (295 povoações fazem parte do estudo): a distribuição de um rendimento básico universal — uma ideia que já foi apresentada em vários formatos e teve diversos defensores, mas que ainda não foi possível aplicar à escala global.

Um rendimento para todos, incondicional. (Agora) faz sentido?

A experiência visa conceder uma prestação mensal de cerca de 22 euros a todos os adultos ao longo de 12 anos (mais de 3.100 euros) para aliviar a pobreza extrema e isto sem pedir nada em troca. Uma ideia bastante nobre, mas que têm também um lado mais obscuro — não fosse referir-se apenas a 44 povoações do universo em estudo (cerca de 15%). Há 100 aldeias que não vão receberam nada para poderem funcionar como grupo controlo (que permite a comparação) durante os 12 anos da experiência. Outros dois grupos vão receber 540 euros por adulto: em 80 povoações vão ser dados os tais 22 euros ao longo de 24 meses e noutras 71 serão atribuídos os 540 euros de uma só vez.

A realizadora norte-americana Lauren DeFilippo acompanhou e documentou a experiência desde o início e, no dia 10 de setembro deste ano, apresentou o documentário “Free Money” produzido com o diretor queniano Sam Soko no Festival Internacional de Cinema de Toronto. Primeiro, as pessoas estavam um pouco céticas em relação ao dinheiro fácil; depois, deixaram-se convencer e viram os benefícios — construir uma casa, comprar gado, montar um novo negócio ou pagar os estudos.

A curto prazo vemos os efeitos positivos do rendimento básico universal”, diz Lauren DeFilippo à Deadline, publicação dedicada às notícias de cinema.

Com dinheiro nas mãos (ou numa conta no telemóvel), as pessoas têm o poder de controlar o seu próprio destino. Mas só os “escolhidos”, as cobaias que tiveram a sorte de estar na aldeia certa no momento certo. A sorte destes reflete-se no azar das comunidades das aldeias vizinhas que continuam sem ter forma de melhorar o seu presente e futuro. Pelo menos, no curto prazo (mas já lá vamos).

Esta linha que separa os que têm dos que não têm — muitas vezes da mesma família, mas a viver em aldeias vizinhas — pode ter consequências sociológicas inesperadas. A organização limita-se a entregar o dinheiro, mas não presta apoio aos problemas e as pessoas inibem-se de questionar esta “autoridade” que tanto dinheiro lhes dá, criticou Sam Sokko. Por outro lado, os vizinhos sentem-se desolados e perdem a fé, questionam-se porque terão sido abandonados por Deus e o que terão feito de errado.

Este nível de consequência não é algo que lhes interessa [à GiveDirectly]”, criticou Sam Soko. “Para eles a experiência funciona: ‘Passemos ao seguinte’.”

A atitude de helicóptero que Rory Stewart critica acaba por caracterizar também esta iniciativa, com a chegada do salvador branco e a abordagem arrogante, como classificou o guia de filmes Film Theat, com base no documentário que retrata a experiência de uma forma tão imparcial quanto possível.

“Devemos eliminar os intermediários, dar dinheiro diretamente às pessoas”, diz autor de “Utopia para Realistas”

Os resultados imediatos parecem ser bons, mas é preciso analisar a longo prazo

A GiveDirectly defende o sucesso da experiência com os resultados preliminares positivos da atribuição do rendimento básico universal antes e durante a pandemia de Covid-19: houve melhoria do bem-estar em medidas como a fome, a doença e a depressão. Dito de outra forma, as pessoas sofreram menos com a insegurança alimentar e outras perturbações do bem-estar durante a crise económica gerada pela pandemia, quer os que já tinham completado os dois anos de rendimento, quer os que estavam na experiência dos 12 anos, reportou a Vox.

Os efeitos benéficos foram, no entanto, modestos, como a própria organização assumiu — assim como haviam sido modestos ou inexistentes em análises anteriores, de acordo com um artigo no blogue do Banco Mundial. É certo que experiência está ainda nos seus primeiros anos e será a análise a médio e longo prazo que fará um retrato mais fidedigno da iniciativa — necessário é também que os resultados sejam revistos por cientistas independentes e não apenas divulgados no site da organização.

Em 2018, no mesmo ano em que a experiência era lançada no Quénia, o Banco Mundial destacava, no seu blogue, os resultados de um estudo (na altura) preliminar realizado no Uganda. Nesse estudo, a uma população selecionada aleatoriamente tinha  sido atribuído um subsídio, mas a outro grupo não (o tal grupo de controlo para comparação).

Ao fim de dois e quatro anos, quem tinha recebido o dinheiro tinha evoluído muito rapidamente, mas ao fim de 10 anos, quem não tinha recebido dinheiro nenhum tinha conseguido alcançar o primeiro grupo. “As pessoas que não receberam o dinheiro, pouparam e acumularam lentamente e chegaram aos mesmos níveis de sucesso [daqueles que tinham recebido o dinheiro]”, disse o economista do desenvolvimento Chris Blattman numa entrevista sobre a experiência.

Isto significa que as transferências de dinheiro são muito mais uma aceleração temporária do que uma espécie de solução permanente para a pobreza”, concluiu Chris Blattman na entrevista com TylerCowen.

A análise do economista do Banco Mundial Berk Özler, e publicada do blogue da instituição em dois artigos (aqui e aqui), refere as conclusões anunciadas pela GiveDirectly e como estas conclusões não são compatíveis com os resultados obtidos ou o desenho da experiência não permite tirar tais conclusões.

Há um número crescente de estudos que mostra como os efeitos benéficos das transferências de dinheiro são de curto prazo e se dissipam ao longo do tempo, escreveu Berk Özler. Mas pouco é dito sobre isso: “Divulgamos provas que reforçam a nossa visão do mundo, mas optamos por ignorar ou racionalizar as coisas que não o fazem”, concluiu, assumindo parte da culpa nesta má comunicação.

Augusto Santos Silva: “Rendimento Básico Incondicional é contra-intuitivo”

Um ano antes, em 2017, Augusto Santos Silva, então ministro dos Negócios Estrangeiros, esteve num debate na Web Summit com Michael Faye, fundador e presidente executivo da GiveDirectly. Para Santos Silva, “a ideia de incondicionalidade [rendimento básico incondicional ou universal] não é intuitiva e é difícil de entender”, seria difícil de aceitar em termos sociais e faria crescer o populismo. “Temos de considerar, não apenas o valor teórico das nossas ideias, mas as condições políticas e sociais para as implementar.”