A criação de um rendimento básico incondicional como forma de responder aos desafios colocados má distribuição de riqueza esteve em discussão no Forum da Web Summit e juntou na mesma mesa Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, Guy Standing, economista da Universidade de Londres e um dos principais investigadores nesta área, Marjukka Turunen, chefe da unidade jurídica da Kela, agência de previdência social da Finlândia, um dos países que tem ensaiado esta medida, e Michael Faye, presidente executivo da GiveDirectly, uma organização sem fins lucrativos que trabalha, no terreno, com comunidades de alguns dos países mais pobres do mundo.

O conceito é aparentemente simples: o rendimento básico incondicional funcionaria, no fundo, como um cheque mensal distribuído de igual forma a todos os cidadãos, de forma incondicional, independentemente dos rendimentos que auferem e se estão ou não desempregados. Uma ideia que tem vindo a ganhar muitos adeptos, sobretudo entre alguns dos gigantes da tecnologia, conscientes de que a revolução tecnológica vai transformar o mercado laboral como o conhecemos, e que foi reconhecida pelo FMI como potencial solução para resolver alguns dos problemas causados pela desigualdade social.

O conceito parece simples, mas encerra em si uma discussão muito complexa. Seria precisamente Augusto Santos Silva, uma voz dissonante neste painel, a lançar alguns dos desafios práticos e teóricos que uma medida como esta teria, por exemplo, em Portugal:

“De um ponto de vista governamental, há três questões críticas: primeiro a questão do custo de generalizar a medida; depois a aceitação social da medida, já que obriga a repensar de forma radical a forma como concebemos os Sistemas de Segurança Social; e depois, a necessidade de ligar a atribuição desse rendimento a uma integração na sociedade, no mercado de trabalho e no Estado a que se pertence”, elencou Augusto Santos Silva.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mesmo reconhecendo as potencialidades de uma medida desta natureza e dos projetos-piloto que estão em curso, por exemplo, na Finlândia, Augusto Santos Silva acabaria por centrar a sua intervenção, precisamente, nestes dois últimos aspetos: como justificar a atribuição incondicional de um rendimento sem estar associado a uma ideia de justiça social e como garantir que não existe um divórcio entre cidadão e Estado social. “A ideia de que é suficiente dar dinheiro porque as pessoas são todas potenciais empreendedoras é uma visão que pode minar o consenso em torno do Estado social tal como foi criado no pós-guerra”, sugeriu o ministro português.

Mais: uma medida desta natureza, argumentou Augusto Santos Silva, teria, porventura, um impacto no próprio sistema político. “A ideia de incondicionalidade não é intuitiva e é difícil de entender. Se eu apresentar à sociedade atual a ideia de que vamos atribuir dinheiro sem condições, o que teremos é o declínio dos sociais-democratas, dos liberais e dos cristãos-democratas e a ascensão dos populismos nas próximas eleições. Temos de considerar, não apenas o valor teórico das nossas ideias, mas as condições políticas e sociais para as implementar.”

Augusto Santos Silva defenderia, em contrapartida, políticas como a atribuição de microcrédito testadas no Bangladesh — ideia que valeu a Muhammad Yunus o Nobel da Paz — ou um modelo semelhante ao português, assente atribuição de um rendimento social de inserção, sob duas condições: que os beneficiários estejam inscritos num centro de emprego e que os filhos frequentem a escola.

“As pessoas aceitam muito bem a ideia da existência deste rendimento, associado a estas duas condições. O problema é convencer as pessoas de que deixar cair estas condições faz o esquema funcionar melhor“, salvaguardou Augusto Santos Silva.

“Os antigos sistemas de segurança social falharam”

No exato extremo oposto desta discussão esteve Guy Standing, considerado um dos grandes pensadores deste modelo de rendimento básico incondicional. Para o economista da Universidade de Londres, “os antigos sistemas de segurança social falharam” e prova disso é que o fosso entre rendimentos “tem aumentado de forma dramática”.

De acordo com este investigador, a “corrupção” e a “burocracia” associados aos sistemas de segurança social criados na ressaca da Segunda Guerra Mundial estão a fazer com que “90% desses apoios” nunca cheguem verdadeiramente aos mais pobres, “lançando para a a exclusão social” milhares de milhões de pessoas. Além disso, continuou Guy Standing, impor uma relação direta entre rendimento básico e trabalho é um “erro”.

“A criação de um rendimento básico incondicional traria justiça social e um mínimo de segurança, uma âncora. Mais do que o dinheiro em si, traria emancipação, a liberdade de fazer escolhas. Hoje, na iminência de perderem os benefícios concedidos pelo Estado, as pessoas aceitam empregos precários, num ciclo perpétuo de precariedade. O sistema de distribuição de rendimentos está esgotado e a desigualdade está a aumentar”, argumentou o economista.

Uma posição partilhada pela finlandesa Marjukka Turunen, responsável pela experiência em curso de atribuição de um rendimento universal na Finlândia (560 euros mensais). Mesmo assumindo que esta “não é uma solução para todos os problemas“, a existência de um rendimento assegurado mensalmente “tranquiliza as pessoas” e permite que se dediquem a empregos menos precários e mais dignos.

Mais: a atribuição incondicional deste rendimento, defendeu Guy Standign, retiraria o “estigma” associado a este tipo de apoios e a quem os requer. “O Estado exige saber tudo. Se estás à procura de trabalho, quem vive contigo, ‘de quem é aquela pantufa debaixo da tua cama, é da tua namorada? Ela ajuda-te a pagar as contas? Ah, então já não tens direito a subsídio nenhum’… Temos de confiar nas pessoas. E o facto de os sociais-democratas terem deixado de confiar nas pessoas é uma das explicações para estarem a perder em todo o mundo.”

Neste ponto, Michael Faye, presidente executivo da GiveDirectly, juntar-se ia a Standign: a atribuição de um rendimento básico incondicional elimina da equação o fator do estigma. Faye daria o exemplo de uma aldeia no Quénia onde foi testado o modelo. Independente da riqueza de cada um, foi atribuído um apoio de igual valor a todos os membros daquela comunidade. “Meses depois, quando perguntei a uma daquelas pessoas se não achava injusto receber o mesmo que o vizinho que tinha uma casa melhor, ela respondeu: ‘Não. Agora, pelo menos, posso falar com ele olhos nos olhos‘”.

Mas como se resolve a injustiça aparente de uma pessoa com muitos rendimentos receber o mesmo cheque mensal que uma pessoa com poucos ou nenhum rendimentos? “Essa é uma das perguntas mais fáceis de responder“, respondeu Guy Standign. Primeiro, porque parte do princípio que os atuais sistemas de Segurança Social estão a chegar, de facto, aos mais pobres — “não chegam”, reiterou o economista. E depois porque um modelo desta natureza obrigaria a uma reorganização do sistema de impostos, taxando mais os mais ricos e menos os mais pobres.

“Há vários estudos que comprovam que o QI, a perceção de cidadania e valores como o altruísmo são menores em crianças que nascem em famílias com baixos rendimentos. Em North Carolina, uma experiência mostrou que as crianças cujas famílias recebiam rendimento um rendimento básico incondicional estavam um ano à frente das crianças cujas famílias não recebiam qualquer apoio, porque havia uma maior sensação de segurança e mais tempo para reforçar laços. Nas experiências feitas na Índia, a atribuição de um rendimento básico incondicional aumentou a produtividade, criou mais emprego e maior cooperação. Os atuais sistemas de Segurança Social não estão levar a lugar nenhum. E esse é um problema que os sociais-democratas tem de resolver nas suas cabeças”, rematou Guy Standign.

O caso da Finlândia, o chumbo da Suíça e a discussão em Portugal

Em janeiro deste ano, a Finlândia tornou-se o primeiro país da Europa a pagar aos seus desempregados um rendimento básico mensal, no montante de 560 euros, uma experiência social inédita que pretende cortar a burocracia, reduzir a pobreza e fomentar o emprego.

O projeto começou com nove mil desempregados e vai durar dois anos. Os escolhidos vão receber 560 euros por mês, sem qualquer condicionalismo à forma como os vão gastar. O objetivo é perceber de que forma é que esta medida pode combater o problema do desincentivo entre os desempregados, sendo que as pessoas que encontrem emprego continuarão a receber este apoio.

A 6 de junho de 2016, em contrapartida, 76,9% de eleitores suíços chumbaram em referendo a criação de um rendimento rendimento básico incondicional, por considerar que a medida era dispendiosa para os cofres públicos e tapete vermelho para a entrada de imigrantes no país.

Em maio deste ano, José António Vieira da Silva, ministro do Trabalho e da Segurança Social, Carvalho da Silva, ex-secretário-geral da CGTP, Paulo Pedroso, antigo ministro do Trabalho e da Solidariedade, entre outros, discutiram o tema na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. E, mais uma vez, as posições dividiram-se entre a defesa acérrima da ideia e a manifestação diplomática de cautelas e (muitas) dúvidas, como contava aqui o Observador.

Um salário sem trabalhar. Faz sentido em Portugal?