Andreia Pereira é natural da Vila de Cucujães, em Oliveira de Azeméis, conhecida por ser um lugar de importância arqueológica, com vestígios das épocas pré e protohistóricas. A cientista do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, no Porto, toca violino desde os 7 anos, adora Bach, Dvořák e Tchaikovsky, estudou numa academia de música e aprendeu a tocar guitarra sozinha. Não chegou a enveredar pela vertente musical porque achou que “tinha de estudar muito”. Por isso, ainda não percebeu muito bem “por que razão” optou pela ciência, “onde uma pessoa nunca para de estudar”.

Para chegar ao projeto “GO-Graft, um enxerto vascular sintético para cirurgia de revascularização do miocárdio”, um dos contemplados este ano com o prémio CaixaResearch Validate, atribuído pela Fundação “la Caixa”, por agora com 70 mil euros [ver info no final], a investigadora e líder deste projeto explorou vários caminhos na ciência até encontrar aquele que acelerava o seu próprio ritmo cardíaco.

Durante o estágio de licenciatura em Bioquímica na Universidade de Aveiro, Andreia estudou “os polissacarídeos de café para ver a sua aplicação no sistema imunitário”. No Mestrado em Bioquímica, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) e Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), quis aproximar-se da Biologia básica estudando, no Instituto de Biologia Molecular e Celular, “mecanismos associados ao stress oxidativo que modelam o envelhecimento e longevidade de um organismo, utilizando como modelo de estudo a levedura”.

Andreia Pereira foi uma das distinguidas em 2021 com o Prémio Maria de Sousa, que distingue e apoia até cinco jovens investigadores portugueses até aos 35 anos

Em 2015, depois do Mestrado, enquanto não sabia muito bem que linha de investigação seguir, a cientista iniciou uma bolsa de investigação na REQUIMTE – Rede de Química e Tecnologia (UCIBIO), na FCUP. “Estudei mecanismos enzimáticos, no fundo, design de fármacos utilizando métodos computacionais.” Mas ainda não era bem isso.

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Nove meses depois, a investigadora foi selecionada para o Programa Doutoral em Biologia Básica e Aplicada (GABBA) da Universidade do Porto, onde cumpriu a parte curricular, mas estava sempre à procura “da área de investigação que mais a fascinava”.

Nessa altura, a cientista que o ano passado foi uma das distinguidas no prestigiado prémio Maria de Sousa, com o trabalho “BioTribo – Exploração de biomateriais como nanogeradores triboelétricos para aplicações cardiovasculares”, chegou a uma conclusão: “Achei que a parte dos biomateriais e a sua interação com os diferentes componentes biológicos era o que me acabava por fascinar.” A resposta estava no grafeno e na sua inquietação pessoal em ver a ciência aplicada à tecnologia. Andreia precisa do “tangível”.

“Os dispositivos médicos em contacto com sangue e o coração padecem de uma regulação bastante apertada”, diz Andreia Pereira. “A entrada no mercado, mesmo tudo correndo bem, não será daqui a dois anos”

Dali nasceu a tese de doutoramento que dá um passo em frente numa área específica de dispositivos médicos, “Materiais à base de grafeno para dispositivos de contacto com o sangue”, que evidencia de que forma eles podem ser “uma excelente estratégia para reforçar as propriedades mecânicas de dois biomateriais com características distintas sem comprometer a sua hemo/biocompatibilidade”.

Hoje, com 31 anos, a bioquímica está num caminho promissor na área da bioengenharia. Publicou 14 artigos em revistas internacionais revistas por pares, quatro como primeira autora e dois como autora correspondente. Tem três projetos como investigadora e coinvestigadora principal e um pedido de patente internacional pendente.

Além disso, escreveu, em 2021, um capítulo no prestigiado livro Biomateriais Science — explicando como os materiais à base de carbono, como o grafeno, são bem-sucedidos em aplicações biológicas, incluído em contacto com o sangue. Depois, apresentou já o seu trabalho em várias conferências internacionais, tendo sido distinguida pela Sociedade Europeia de Biomateriais com o Julia Polak European Doctorate Award 2021 e teve a oportunidade de promover um workshop sobre o seu doutoramento numa conferência internacional.

“Desenvolvemos um hidrogel reforçado com óxido de grafeno que tem propriedades extraordinárias quando em contacto com o sangue, não levando à formação de trombos [coágulos] e previne a própria adesão bacteriana”

O tema da tese nasce de uma investigação transversal já em curso, liderada pela investigadora Inês Gonçalves, orientadora de doutoramento de Andreia, que integra o grupo de investigação Advanced Graphene Biomaterials. Agora, neste projeto financiado pela Fundação “la caixa” liderado por Andreia, o objetivo é promover a transferência para o mercado de um dos produtos desenvolvidos no âmbito da sua tese de doutoramento.

Andreia enfatiza a importância e a responsabilidade que os cientistas mais experientes têm na promoção da carreira dos jovens investigadores, “dando-lhes as oportunidades e condições necessárias para progredirem, tal como tem acontecido no grupo Advanced graphene biomaterials group, liderado pela investigadora Inês Gonçalves”.

Atualmente, da equipa do Go-Graft, além de Inês Gonçalves, fazem parte os doutorandos Duarte Moura e Helena Ferreira, os consultores  da Medical University of Vienna (Aústria), Helga Bergmeister, especialista na execução de estudos de performance in vivo de enxertos vasculares, Bruno Podesser, cirurgião cardíaco, e Fernão Magalhães, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.

“Queremos otimizar o design final do GO-Graft e validar in vivo a sua performance durante seis meses”, diz Andreia Pereira

O projeto foca-se nas doenças cardiovasculares que são a primeira causa de morte no mundo. Por ano, cerca de 18 milhões de pessoas perdem a vida devido a essas patologias, segundo dados da Organização Mundial de Saúde. Da família dessas doenças faz parte a doença arterial coronária (DAC), que pode levar a ataque cardíaco, afetando, por ano, cerca de 335 milhões de pessoas mundialmente e dez mil em Portugal. O que acontece quando alguém padece desta doença é que os vasos sanguíneos que fornecem o coração são danificados, ou obstruídos, devido a placas de colesterol nas artérias.

Hoje existe medicação, que é a primeira linha de tratamento dessas doenças. Também é possível desobstruir o vaso com redes circulares são colocadas dentro da artéria para abri-la e evitar novo entupimento, os chamados stents.

Em situações mais severas de DAC, 1% dos casos, recorre-se à cirurgia do bypass coronário. “Retiram-se vasos sanguíneos do próprio paciente, os chamados enxertos autólogos, para fazer este bypass, restabelecendo o fluxo sanguíneo no coração.” Depois, a partir dali, “volta a haver oxigénio e nutrientes no coração”. Contudo, esses vasos muitas vezes “não estão disponíveis porque esta doença é sistémica, ora afetando outros vasos, ou porque esses vasos foram retirados previamente para outra intervenção vascular”, evidencia.

Além disso, a recolha dos enxertos autólogos está associada a complicações pós operatórias como a ocorrência de possíveis infeções. É aqui que a equipa que está a desenvolver o GO-Graft quer atuar, propondo uma nova solução para o problema com um vaso sintético a partir de grafeno.

A cientista nota que o mercado dos dispositivos médicos tem já enxertos sintéticos para vasos de médio e grande calibre, ou seja, acima de seis milímetros. O problema são os vasos de pequeno calibre como as artérias coronárias, onde os enxertos sintéticos falham devido à ocorrência de trombose.

O que queremos com este trabalho é desenvolver um vaso que esteja disponível e evite todos os problemas que estão associados aos enxertos sintéticos disponíveis atualmente aos autólogos.”

Trata-se de um enxerto vascular sintético anti-adesivo de pequeno diâmetro para a cirurgia de revascularização do miocárdio. “Desenvolvemos um hidrogel reforçado com óxido de grafeno que tem propriedades extraordinárias quando em contacto com o sangue, não levando à formação de trombos [coágulos] e previne a própria adesão bacteriana”.

A grande novidade desta proposta, detalha a bioquímica, “é modelar as propriedades mecânicas de um hidrogel descrito na literatura com excelentes propriedades biológicas”, para aplicar em dispositivos de contacto com sangue, através da incorporação de um nanomaterial reconhecido com prémio Nobel: o grafeno, permitindo a sua utilização para o desenvolvimento desses enxertos de pequeno calibre.

“Com este financiamento, nós queremos otimizar o design final do GO-Graft e validar in vivo a sua performance durante seis meses.” Na parte do design final, por agora, têm trabalhado com moldes mas pretendem desenvolver dispositivo com uma parede mais fina, para “fazer match” com os vasos sanguíneos do indivíduo. Para isso, vão fazer produção 3D, de forma a, no próximo ano, poderem testar em ratinhos a eficácia deste novo design.

Helena Ferreira, Inês Gonçalves, Andreia Pereira e Duarte Moura, os investigadores da equipa Go-Graft

Em 2024, quando o projeto estiver terminado, Andreia espera poder ter resultados mais sólidos, de validação in vivo, que permitam abrir caminho para a transferência da tecnologia para o mercado e “colocar à disposição da sociedade”. Mas acautela que, para se comprovar a segurança e a eficácia, há ainda um longo caminho a percorrer.

“Estes dispositivos médicos, como estão em contacto com sangue e o coração, padecem de uma regulação bastante apertada. Por isso a entrada no mercado, mesmo tudo correndo bem, não será daqui a dois anos.” Até porque, depois disso, a equipa irá ainda testar num modelo animal maior, num projeto piloto, como é o caso da ovelha, que tem vasos maiores, com resposta semelhante aos humanos.

Até outubro, no âmbito da Caixa Research Validate, Andreia e a sua equipa vão passar por várias formações, para depois apresentar o plano final que poderá valer-lhe, pelo menos, mais trinta mil euros além dos setenta mil atuais. E, se se comprovarem as suspeitas de este vaso sintético poder ser uma solução mais segura e eficaz, poder-se-á melhorar a qualidade de vida e promover a longevidade de pacientes com DAC.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Go-Graft, liderado por Andreia Pereira, investigadora do i3S, foi um dos 15 selecionados (quatro em Portugal) – entre 110 candidaturas internacionais – para financiamento (setenta mil euros) pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do CaixaResearchValidate, um programa que promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2023 deverão abrir em novembro.