Em cima da secretária de trabalho, Paulo Aguiar tem várias referências ao imaginário da ficção científica. Como um pequeno robô que é uma entrada USB ou um Yoda, o velho sábio do universo do Star Wars, em peças de Lego. “Muitas pessoas que estejam a trabalhar em ciência, em áreas emergentes, têm sempre alguma imaginação ligada à ficção científica”, diz o investigador açoriano.

O micaelense é atualmente líder do grupo de investigação Neuroengenharia e Neurociência Computacional no i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto, e acredita que “a ciência dá-nos máquinas do tempo”, pela forma como é possível cruzar informação científica para criar modelos e antecipar cenários.

Até ao final de 2025, Paulo Aguiar e a equipa têm um novo desafio que parece vindo do futuro. O projeto chama-se “NeuroSpark: Estratégias de neuromodulação inovadoras para o tratamento de doenças cerebrais” e  foi um dos selecionados este ano no concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde da Fundação “la Caixa”, em parceria com a Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

O cientista era fascinado por biologia desde criança, mas a física foi paixão tardia. Juntou as duas áreas através da eletrofisiologia, “o estudo das membranas dos neurónios do ponto de vista elétrico, um dos patamares essenciais de comunicação neuronal”

O objetivo é desenvolver um nanodispositivo de neuromodulação, que possa ser implantado no cérebro, para tentar responder, em tempo real, às lacunas da comunicação neuronal que provocam doenças cerebrais como a epilepsia.

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Paulo começou por se licenciar em Engenharia Física Tecnológica no Instituto Superior Técnico, na Universidade de Lisboa (2000), doutorou-se em Neurociência Computacional na Universidade de Edimburgo, no Institute for Adaptive and Neural Computation (2006) e fez pós-doutoramento em Neurobiologia no Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto (2008).

Até ao final de 2025, Paulo Aguiar e a equipa têm um desafio que parece vindo do futuro: “NeuroSpark: Estratégias de neuromodulação inovadoras para o tratamento de doenças cerebrais”

Em miúdo, a biologia fascinava-o. Mas, pouco antes de concorrer à faculdade, deu-se uma faísca chamada física. Só que a paixão pela Biologia nunca o largou. Fez as pazes através da neurociência, mais particularmente a eletrofisiologia, “o estudo das membranas dos neurónios do ponto de vista elétrico, um dos patamares essenciais de comunicação neuronal”. Decidiu, então, unir a Física à Biologia, para tentar compreender como é que os neurónios processam informação.

O cientista é co-autor de mais de setenta publicações internacionais em revistas científicas com revisão por pares, como o Journal of Neural Engineering, a Science, ou o Journal of Neuroscience, e cruza, sobretudo, a engenharia médica com neurociências, bioinformática, biofísica, ciências da informação e ciências da computação.

No meio de tanta multidisciplinaridade, a engenharia biomédica é, de facto, o nicho onde as pessoas são parecidas comigo, por isso, é a forma mais fácil para me descrever”.

Mas eis que o engenheiro biomédico alia-se, também, à neurociência computacional, um campo do saber que tem conhecido uma significativa expansão e que combina neurociência e computação em dois pilares. Por um lado, “desenvolvem-se programas computacionais que permitem criar simulações biológicas de neurónios individuais e de redes de neurónios mais complexas, possibilitando a construção de modelos em larga escala para serem estudados in silico (simulação computacional)”. Depois, de forma complementar, “o sistema nervoso é visto e analisado como um estrutura que realiza computações — computação neuronal— , dando uma nova perspetiva sobre como abordar certas patologias.”

“O sistema nervoso é visto e analisado como um estrutura que realiza computações — computação neuronal— , dando uma nova perspetiva sobre como abordar certas patologias”, diz Paulo Aguiar

É nessa linha que se situa o projeto de interface científico NeuroSpark, com um orçamento de um milhão de euros, formado por um consórcio entre o i3S, a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (Instituto de Física de Materiais Avançados, Nanotecnologia e Fotónica, liderado pelo investigador João Ventura), e o Consejo Superior de Investigaciones Científicas-CSIC, em Espanha, (Instituto Cajal, dirigido pela investigadora Liset de la Prida). Além disso, tem uma parceria com o Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHPORTO), através do neurologista Joel Freitas.

Para o líder do projeto NeuroSpark, “os neurónios são a solução da natureza para a gestão de informação” e podem ser estudados de diferentes perspetivas científicas complementares. Essa abordagem “permite olhar para algumas patologias do sistema nervoso como sendo falhas de como a informação está, ou não, a ser codificada, transmitida, processada e armazenada”. Dessa forma, primeiro, é essencial conseguir identificar quais são essas falhas. Depois, perceber como se pode extrair essa informação. Finalmente, colmatar e responder a essas falhas.

A equipa de Paulo Aguiar desenvolve programas computacionais que permitem criar simulações biológicas de neurónios individuais e de redes de neurónios mais complexas, possibilitando a construção de modelos em larga escala para serem estudados

No caso de perda de memória em Alzheimer, por exemplo. “Em certos contextos, a informação está lá guardada, mas o problema é que não há mecanismos para fazer a recolha dessa informação. Se percebermos melhor como a informação é guardada e coletada num substrato feito de neurónios, podemos contribuir com outro tipo de terapias de forma mais eficaz.”

O NeuroSpark parte dessa premissa, numa abordagem de “bottom up neuroscience”, na medida em que o ponto de partida são as células neuronais, para tentar responder a um problema de saúde contemporâneo e tentar melhorar a qualidade de vida dos pacientes.

As doenças neurológicas são uma das principais causas de morte e invalidez no mundo, com aumento exponencial quer de prevalência, quer de incidência, reforça Paulo Aguiar, referindo estudos como o The global burden of neurological disorders. E isso também se deve ao crescimento e ao envelhecimento da população. Além disso, as respostas médicas atuais para essas doenças são farmacológicas, com vários efeitos secundários e nem sempre eficazes.

O investigador, líder do grupo de investigação Neuroengenharia e Neurociência Computacional no i3S, acredita que “a ciência dá-nos máquinas do tempo”, pela forma como é possível cruzar informação científica para criar modelos e antecipar cenários

Hoje sabe-se que a função cerebral está estreitamente relacionada com a atividade elétrica de circuitos neuronais. Existem já alguns dispositivos de sistemas híbridos (“combinando parte biológica e parte eletrónica”) que atuam a esse nível. Porém, apesar do enorme potencial desses dispositivos para controlar circuitos neuronais, eles apresentam imperfeições: tamanho, protocolos de estimulação, e a vida limitada das baterias que utilizam.

A proposta de Paulo e da equipa é, portanto, inovadora e pretende colmatar essas lacunas, criando tecnologia para um microdispositivo implantável no cérebro, tentando validar “a primeira estratégia de neuromodulação baseada em nanocomponentes eletrónicos, capazes de imitar as sinapses neuronais, para um controlo que se adapta, em tempo real, à atividade neuronal”. De acordo com o cientista, “esta tecnologia tira partido de métodos de inteligência artificial e aprendizagem automática — machine learning—, para otimizar os protocolos de estimulação”.

O dispositivo parte da criação de um controlo em “malha fechada”, onde os estímulos são dados de acordo com a atividade neuronal registada (em sistemas em “malha aberta”, os estímulos são pré-definidos e fixos). Este tipo de controlo aprende e antecipa quais são as atividades neuronais atípicas, sinalizando a presença de patologia.

“Uma das maiores inovações deste projeto está na utilização de eletrónica neuromórfica, em particular de memristors que são componentes eletrónicos semelhantes a resistências (resistors) mas com capacidade de memória.” A forma como essa eletrónica neuromórfica funciona “está muito mais próxima da forma como os neurónios transmitem sinais, em comparação com a eletrónica convencional”.

O investigador explica que há muitas patologias cerebrais do sistema nervoso onde as células estão bem em termos de viabilidade, e o que está mal são os padrões elétricos. Então, ao estabelecer uma ligação direta entre neurónios e eletrónica, “abre-se uma porta para uma via terapêutica de estimulação elétrica, diferente da farmacológica, modelando o ambiente eletrofisiológico”. A eficácia desse dispositivo será avaliada, inicialmente, em modelos de epilepsia, detalha o engenheiro biomédico, que já tem acesso a registos eletrofisiológicos de doentes com epilepsia, através da parceria com o CHPORTO.

O NeuroSpark vai arrancar a 31 de dezembro de 2022. Numa primeira fase, a equipa da física vai desenvolver os dispositivos neuromórficos, “com as características que nós queremos, para poderem falar mais facilmente com neurónios”. Em paralelo, vão ser feitas as validações, os testes e as otimizações in vitro, com protótipos desses dispositivos, num ambiente controlado, “para que a matriz artificial aprenda os padrões neuronais no caso de atividade atípica”.

Há muitas patologias cerebrais do sistema nervoso onde as células estão bem em termos de viabilidade, e o que está mal são os padrões elétricos. Ao estabelecer uma ligação entre neurónios e eletrónica, “abre-se uma porta para uma via terapêutica de estimulação elétrica, diferente da farmacológica, modelando o ambiente eletrofisiológico”

“Vamos tentar armazenar informação nesses memristors, fazendo-os reconhecer padrões de atividade neuronal, como por exemplo, períodos de intensa atividade elétrica. As experiências in vitro permitem mais facilmente treinar esses padrões de atividade em modo de malha fechada, possibilitando otimizar todo o sistema.”

Depois, a equipa espanhola vai otimizar in vivo o sistema eletrofisiológico. “Podemos não conseguir eliminar as convulsões no animal onde vamos primeiro testar esse sistema, isto seria otimista demais, mas se conseguirmos reduzir o número, ou o tempo das convulsões, através desses protocolos de estimulação, eu já ficava bastante contente.”

Além disso, mesmo que não tenham a oportunidade de chegar a um dispositivo final, terão “um modelo inovador”. ”Se a nossa hipótese de que os dispositivos neuromórficos — e os memristors em particular — são de facto uma boa escolha para construir esses neuroestimuladores, em alternativa à eletrónica convencional, podemos ainda não chegar aos pacientes, mas daremos à indústria a informação de que vale a pena olhar para eles como uma vantagem com diferentes benefícios.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto NeuroSpark: Estratégias de neuromodulação inovadoras para o tratamento de doenças cerebrais, liderado por Paulo Aguiar, do i3S, foi um dos 33 selecionados (13 em Portugal) – entre 546 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. O investigadora recebeu 966 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 15 de novembro. Os prazos da edição de 2023 deverão ser conhecidos no primeiro semestre do próximo ano.