A Covid-19 veio recordar duas lições que talvez estivessem um pouco esquecidas: que os surtos virais com potencial para se tornarem epidemias ou pandemias são uma inevitabilidade e que a resposta rápida e eficaz depende – sempre – da preparação prévia.
O desenvolvimento e produção em tempo recorde das vacinas contra a COVID-19 foi possível por se contar com conhecimento científico acumulado ao longo de décadas: tanto de mecanismos molecular básicos, como o RNA mensageiro – que se veio a revelar fundamental para a produção de algumas vacinas –, como sobre os próprios coronavírus, adquirido com os surtos de SARS-CoV-1 e MERS-CoV das últimas décadas.
Com isto em mente, um consórcio de investigação liderado por Cláudio M. Soares e Diana Lousa, do Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier, da Universidade Nova de Lisboa (ITQB NOVA), está há algum tempo a pensar na próxima pandemia. “A ideia é ter um procedimento desenvolvido, um protótipo, de como lidar com uma nova ameaça viral”, explica Cláudio M. Soares.
O projeto, distinguido com um financiamento no valor de um milhão de euros pela Fundação “la Caixa”, chama-se BioPlaTTAR – Platform for the Tailored and Rapid Development of Antiviral Biopharmaceuticals e o objetivo é criar uma plataforma para desenvolver e produzir rapidamente novos biofármacos para combater vírus emergentes.
O propósito é ter uma espécie de manual de instruções que permita ter passos testados e procedimentos definidos. Ou, como diz a investigadora Diana Lousa, “ter a máquina complementarmente oleada.” “Desde o método mais eficiente para desenhar proteínas, até à melhor forma as produzir e validar. Para que, em poucos meses, consigamos ter uma pequena proteína ou anticorpo desenhado especificamente para atacar um novo vírus ou variante.”
Quando dizem “desenhar”, Cláudio M. Soares e Diana Lousa não falam em sentido figurado, mas quase literal. São ambos bioinformáticos e, no laboratório de investigação em Modelação Molecular de Proteínas, do ITQB NOVA, desenham novas moléculas através de métodos biofísicos computacionais.
Antes de um avião ser fabricado, é construído em software, num modelo computacional que simula o voo”, diz Cláudio M. Soares. “Antes de uma ponte ser erguida, também existem modelos computacionais físicos, que simulam como se vai comportar, por exemplo, se houver um sismo. Nós trabalhamos em modelos de moléculas que mimetizam a realidade e, assim, conseguimos estudar como é que elas se movem, encaixam e interagem umas com as outras.”
Os seres humanos tem características diferentes e essas diferenças ditam mais ou menos afinidade entre eles. O mesmo acontece com as moléculas elementares da vida. “No caso das proteínas, estas características que lhes conferem propriedades diferentes são os resíduos de aminoácidos que as constituem, bem como a sua estrutura”, explica Diana Lousa. “O que se pretende, neste caso, é criar proteínas capazes de estabelecer uma ligação mais forte à proteína de fusão do vírus, inibindo-a mais.”
Este é um campo de estudo recente. Tão recente que, quando Cláudio M. Soares, de 56 anos, atual diretor do ITQB NOVA, começou a trabalhar na área de simulação de moléculas, durante o doutoramento na Universidade de Uppsala, na Suécia, por volta de 1990, “a palavra bioinformática ainda nem existia”.
Diana Lousa é 15 anos mais nova e já teve oportunidade de fazer uma pós-graduação e o doutoramento nesta área. Hoje, o ITQB NOVA oferece já um Mestrado em Biologia Computacional e Bioinformática – no qual ambos dão aulas – para formar novas gerações de bioinformáticos.
Com o atual progresso tecnológico, os computadores deste laboratório conseguem gerar aleatoriamente, através de um algoritmo, milhares ou mesmo milhões de modelos de proteínas e prever aquelas que se ligam melhor a uma proteína do vírus, para dessa forma o inativar. Os investigadores selecionam depois as moléculas mais promissoras para iniciarem o processo de produção de proteínas reais e, posteriormente, de validação do seu comportamento em células humanas infectadas pelo vírus.
Mas apesar de a biologia computacional lançar as bases do projeto, ela não se basta a si própria. “Os biólogos computacionais não vivem isolados. Isto é um trabalho de equipa”, lembra Cláudio M. Soares. De facto, a BioPlaTTAR é um projeto ambicioso, já que implica validar todo um processo de trabalho que vai do design computacional à produção e validação experimental. Envolve muitas equipas, em diferentes instituições.
No ITQB NOVA, Cláudio M. Soares, Diana Lousa e Manuel Melo fazem o design computacional das proteínas e os investigadores João Vicente e Isabel Abreu tornam essas proteínas reais e analisam-lhes as suas características. Em Madrid, a equipa de José Maria Valpuesta, do Centro Nacional de Biotecnologia, avalia e valida em detalhe o encaixe entre a estrutura das proteínas criadas e a estrutura do vírus. Por fim, as equipas de Ana Salomé Veiga e Miguel Castanho, do Instituto de Medicina Molecular, e de Maria João Amorim, do Instituto Gulbenkian de Ciência e do Católica Biomedical Research Centre, testam as proteínas em células humanas para avaliarem a capacidade que têm de inibir a infecção viral. No fim, os melhores biofármacos serão ainda testados em modelos animais.
Talvez por isso, Diana Lousa acredita que este será o século da interdisciplinaridade. “A resposta às grandes perguntas precisa de equipas com vários olhares: que misturem a física, a biologia, a computação, a química”, diz a investigadora. “E que consigam comunicar entre si”, acrescenta Cláudio M. Soares, “com a evolução do conhecimento, as ciências tornaram-se cada vez mais complexas e herméticas.” E só equipas multidisciplinares em diálogo podem fazer aquilo que, para o investigador, é uma das maravilhas da ciência: “a possibilidade de construir futuros diferentes”.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto BioPlaTTAR Platform for the Tailored and Rapid Development of Antiviral Biopharmaceuticals, liderado por Cláudio M Soares e Diana Lousa, do ITQB NOVA, foi um dos 33 selecionados (13 em Portugal) – entre 546 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. Os investigadores receberam um milhão de euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 15 de novembro. Os prazos da edição de 2023 deverão ser conhecidos no primeiro semestre do próximo ano.