Portugal vai defender a importância dos contratos a prazo para a compra de energia elétrica no mercado europeu de eletricidade cuja reforma está a ser discutida ao nível da União Europeia, mas vai propor um limiar mínimo de contratualização para proteger os consumidores.

A secretária de Estado da Energia, Ana Fontoura Gouveia, indicou ainda que Portugal considera fundamental a manutenção de um mercado grossista de eletricidade diário, como o que existe atualmente a nível ibérico, para assegurar que seja dado um sinal de preço aos agentes do mercado — quem compra, quem vende e os clientes finais. No entanto, e considerando o sucesso do mecanismo ibérico que travou a escalada de preços no ano passado, defende que deve manter-se uma cláusula de escape que permita colocar um teto aos preços em situações atípicas, desde que a sua ativação seja temporária e não ponha em causa o funcionamento do mercado.

Foram as primeiras declarações públicas da secretária de Estado da Energia após ter assumido a pasta que era de João Galamba que rumou para o Ministério das Infraestruturas. Ana Fontoura Gouveia aproveitou uma plateia de especialistas e representantes dos players da energia — uma conferência promovida pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) sobre as perspetivas para o desenho do mercado elétrico que juntou mais de 800 pessoas (entre evento presencial e participação online) — para tornar públicos os três eixos daquela que será a posição portuguesa no debate que vai redesenhar o mercado de energia elétrica na União Europeia.

  • 1º Eixo. Estabilidade e previsibilidade. O mercado português está mais protegido do que outros países face à crise dos preços com 40% da produção vendida por tarifas fixas e a intenção é manter essa salvaguarda. Apesar de os contratos por diferença trazerem alguma estabilidade, é necessário compreender que outros países precisam de incentivos mais fortes para investir nas renováveis — na qual Portugal está mais avançado — que o atual mercado marginalista proporciona. O Governo português não defende a imposição de contratos a prazo à totalidade do mercado, mas a definção de um patamar mínimo que proteja os consumidores de flutuações de preço.
  • 2º Eixo. Mercados de curto prazo são necessários porque permitem um despacho eficiente (entrega física da eletricidade comprada na quantidade e prazo pretendidos). E proporcionam um sinal de preço que é importante para o funcionamento de todo o sistema, desde decisões de investimento a contratos de compra, e que dá prioridade à entrada das tecnologias mais verdes (e mais baratas). Ainda assim, Portugal quer que o novo desenho do mercado contemple uma cláusula de salvaguarda que permita colocar um teto aos preços — à semelhança do mecanismo ibérico aplicado ao gás natural — para responder a situações atípicas, desde que não pondo em causa o funcionamento do mercado.
  • 3º Eixo. Um sistema elétrico mais resiliente, com diversificação de fontes e aberto a soluções inovadoras onde o desenvolvimento do mercado dos serviços de sistema e de capacidade permita maior eficiência sem necessidade de mais produção. É aqui que entra o reforço das interligações físicas de eletricidade e de gás entre a Península Ibérica e França e que foram alvo de acordo entre os governos dos três países.

A Comissão Europeia lançou com uma consulta pública junto dos Estados-membros com mais de 60 perguntas, cujo prazo termina a 13 de fevereiro. Entretanto, Portugal e Espanha já sinalizaram junto de Bruxelas o interesse dos dois países em prolongarem o mecanismo ibérico que desligou o preço do gás do preço da eletricidade para lá de maio deste ano, mantendo-se operacional até à reforma do mercado grossista da eletricidade. Esta reforma foi precipitada pelos efeitos da invasão russa da Ucrânia que fez disparar os preços do gás natural em 2022, arrastando os da eletricidade, e obrigou a Europa a colocar no topo das prioridades a independência energética e a segurança do abastecimento.

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Para além da contratação a prazo e do mercado diário com uma válvula de segurança, o terceiro eixo da posição portuguesa passa por reforçar a resiliência do sistema elétrico e a segurança do abastecimento. Tal passa por ter um mix diversificado de fontes de energia elétrica, mas sem se comprometer para já com a manutenção dos combustíveis fósseis — o gás natural — nesse mix. Ana Fontoura Gouveia refere que hoje o sistema consegue ser mais flexível que há dez anos, considerando que é possível explorar complementaridades entre as várias formas de produção, bem como otimizar o armazenamento. Neste eixo, o reforço das interligações elétricas e de gás entre os vários países é também tema incontornável.

Se no passado as centrais a gás natural eram apontadas como o backup preferencial de um sistema elétrico com muita potência renovável, como o português, a crise recente mostrou que a importação de Espanha, via interligação, foi uma ferramenta também fundamental para a segurança do abastecimento num ano em que Portugal não pode contar com grande parte do seu potencial hidroelétrico por causa da seca.

Ana Fontoura Gouveia encerrou o seminário promovido pelo regulador português, que terá sido o primeiro a nível europeu a promover um debate público sobre a mudança de regras do mercado da energia elétrica, uma reforma que parece ser tão temida quanto pedida pelos agentes do setor.

Em causa está a reforma do mercado marginalista que funcionou durante as duas últimas décadas na União Europeia e nos mercados regionais que a compõem como o Mibel (mercado ibérico) e pelo qual a última tecnologia a colocar a sua oferta para satisfazer a procura numa dada hora é a que marca o preço de toda a energia vendida naquela hora. Esta mudança na estrutura de formação dos preços grossistas da eletricidade é desencadeada por uma crise em outro mercado, o do gás, que é a tecnologia a fixar os preços quando é chamada a entrar para responder ao consumo.

Se o problema está no gás porque estamos a reformar o mercado elétrico?

A pergunta foi feita por Jorge Sousa, o presidente da Associação Portuguesa da Economia da Energia, que também dá a resposta. Por causa dos efeitos amplificadores que tem no mercado elétrico, devido a uma questão tecnológica que faz com que uma subida de 100 euros no gás tenha o efeito de 180 euros por MW na eletricidade e devido a uma questão de volume — o preço da eletricidade produzida a partir do gás aplica-se a toda a energia.

Daí que, como foi sublinhado por vários intervenientes no seminário, o modelo marginalista tenha sido fundamental para estimular o investimento das renováveis porque produzem a custos muito inferiores (sem combustível) e conseguem amortizar mais rapidamente o valor investido.

Os especialistas reconhecerem que a expansão da capacidade renovável na Península Ibérica não precisa mais de um incentivo desta dimensão. Mas defendem a necessidade de evitar o efeito Montanha Russa que marcou a evolução dos preços da eletricidade no último ano — mais de 220 euros por MW em janeiro do ano passado e preços abaixo dos 50 euros (com valores diários inferiores a 10 euros em alguns dias em janeiro deste ano. A oscilação deve-se ao recorde da produção hídrica e eólica registado por estes dias na Ibéria). Até porque com preços muito baixos corre-se o risco de travar o ritmo do investimento em potência solar e eólica que é necessário para garantir a transição energética, não só para aumentar a eletrificação, mas também para substituir o gás natural pelo hidrogénio verde.

No centro da discussão estão os preços. Se para os consumidores, quanto mais baixo melhor, os produtores preferem mais altos. Mas um valor demasiado baixo colocaria em causa a transição energética e obrigaria a haver subsidiação. “É um pressuposto errado porque os mercados não são feitos assim”, alertou o presidente da associação de comercializadores ACEMEL. Ricardo Nunes defende que os preços devem ser representativos dos custos e devem dar os sinais certos ao sistema e à economia. O representante dos comercializadores defendeu ainda uma harmonização das regras entre Portugal e Espanha para o mercado retalhista. “O preço deve ser parecido dos dois lados e o acesso dos clientes também deve ter as mesmas regras”.

Já Jorge Lúcio da Galp lamentou o excesso e a extensão das intervenções de natureza regulatória e política. Apesar de ser “compreensível” que alguma coisa tivesse de ser feita devido à “pressão insuportável sobre os clientes”, o mercado não pode estar permanentemente a sofrer alterações regulatórias, como tem acontecido em Portugal (e também em Espanha). “Não vale a pena estar com meias palavras. É negativo para o investimento porque não há capacidade para fechar financiamentos e tomar decisões”. Ainda para mais numa altura que o setor precisa de investimentos massivos.

E se “matamos o mercado, matamos os sinais de preço que precisamos para fazer uma descarbonização séria”, avisou o diretor de relações institucionais da bolsa espanhola, o OMIE que é o polo do mercado diário na Ibéria. Para Rafael Gomes Elvira, há o risco desta reforma deitar a perder o que foi conseguido nas últimas décadas em integração de mercados regionais europeus. Apesar de todas as propostas serem bem vindas no palco da discussão, defende a distinção entre propostas para ter uma maior integração na Europa e para uma Europa menos integrada. “A soma dos mercados nacionais não é um verdadeiro mercado europeu. Se vamos fragmentar o mercado da energia… vamos oferecer ao Putin uma vitória”.