“Não há reparação possível para as vítimas”, mas dos testemunhos recolhidos pela Comissão Independente — criada pela Igreja Católica para estudar os abusos da Igreja em Portugal — há expectativas. Segundo o sumário executivo do relatório que será divulgado às 15h00, as vítimas querem um pedido de desculpa por parte do clero e que lhes seja dado apoio psicológico e psiquiátrico.
Numa altura em que alguns estudos semelhantes noutros países indicam uma compensação em dinheiro para as vítimas de membros da Igreja, como está já a ser concretizado em França, da amostra de testemunhos recolhidos em Portugal, as soluções não apontam nesse sentido. As vítimas consideram que é mais importante adotar medidas preventivas para evitar que se voltem a repetir com outros os episódios e o trauma que viveram.
“Há diversas sugestões registadas, destacando-se as ligadas à questão da sexualidade do clero, do seu conhecimento, prática e respeito integrador por parte da Igreja Católica”, lê-se no documento disponibilizado esta segunda-feira ao final da manhã. Dos 512 testemunhos recolhidos entre janeiro e outubro de 2022 pela Comissão, há sugestões de eliminar o celibato obrigatório, de respeitar a livre orientação sexual e/ou vivência de uma sexualidade ativa, de integração e participação das mulheres em práticas religiosas e na hierarquia da Igreja, da extinção de certos modelos de relação com os crentes, como as confissões em espaços físicos fechados.
Há também quem peça medidas punitivas mais graves, falando mesmo em castração química obrigatória, assim como uma mudança penal na prescrição dos crimes (aliás, já sugerida pela Comissão), assim como um processo judicial “mais célere” – quer na lei civil, quer na canónica. Só assim será possível terminar com “um sentimento de impunidade”.
A comissão, por seu turno, deixa várias recomendações à Igreja, que só no início de março saberemos se serão acatadas – altura em que a Conferência Episcopal Portuguesa reunirá em assembleia extraordinária para discutir o tema. Entre as quais a criação de uma nova Comissão que dê continuidade ao estudo do tema e que seja composta por membros da Igreja e do exterior, o reconhecimento por parte da Igreja da existência de um problema. Das nove recomendações, a comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht sugere que se aplique mesmo o conceito de “tolerância zero” proposto pelo Papa Francisco, assim como se concretize o dever moral de denúncia deste tipo de casos, assim como a colaboração com as autoridades.
A comissão sugere ainda que haja formação nos membros da Igreja nesta matéria e que se acabe com os espaços fechados como locais de encontro entre os elementos da igreja e os fiéis.
Estas são as recomendações feitas à Igreja:
- Proposta de uma nova Comissão para continuidade do estudo e acompanhamento do tema (multidisciplinar, membros internos e externos à Igreja);
- Reconhecimento, pela Igreja, da existência e extensão do problema e compromisso na sua adequada prevenção futura;
- Cumprimento do conceito de «tolerância zero» proposto pelo Papa Francisco;
- Dever moral de denúncia, por parte da Igreja, e colaboração com o Ministério Público em casos de alegados crimes de abuso sexual;
- Pedido efetivo de perdão sobre as situações que aconteceram no passado e sua materialização;
- Formação e supervisão continuada e externa de membros da Igreja, nomeadamente na área da sexualidade (sua e das crianças e adolescentes);
- Cessação de espaços físicos fechados, individuais, enquanto locais de encontro e prática religiosa;
- Medidas preventivas eficazes, incluindo «manuais de boas práticas» e «locais de apoio ao testemunho e acompanhamento das vítimas e familiares»;
- Apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras (responsabilidade da Igreja e articulação com o Serviço Nacional de Saúde).
Durante a conferência desta manhã, ficou claro que a percentagem de crimes de abuso sexual de menores por elementos das Igreja representa uma percentagem mínima no total deste tipo de crimes denunciado às autoridades portuguesas. Ainda assim a Comissão faz também sete recomendações à sociedade civil: uma tinha já sido antecipada em outubro, que é a de realizar um estudo nacional sobre abusos sexuais de crianças no seus vários espaços de socialização e a aumentar a literacia sobre o tema.
- Necessidade da realização de um estudo nacional sobre abusos sexuais de crianças nos seus vários espaços de socialização;
- Reconhecimento inequívoco dos Direitos da Criança;
- Empoderamento das crianças e famílias sobre o tema: o papel da Escola;
- Aumento da idade da vítima para efeitos de prescrição de crimes;
- Celeridade da avaliação e resposta do sistema de justiça;
- Reforço do papel da comunicação social na investigação e tratamento do tema;
- Aumento da literacia emocional sobre as verdadeiras necessidades do desenvolvimento infantojuvenil, sobretudo no campo afetivo e sexual.
Igreja em Portugal não guardou tudo nos arquivos. E há relatos de mudanças de paróquia de padres para evitar o “escândalo público”
O estudo da Comissão Independente versou sobre alegados crimes de abuso sexual de menores (até aos 18 anos) entre 1950 e 1922. Além do preenchimento de um questionário online, de entrevistas presenciais, de contactos com membros da Igreja, a Comissão recorreu a uma equipa de investigadores e cientistas sociais para estudar a informação contida nos arquivos históricos e secretos da Igreja — o chamado Grupo de Investigação Histórica (GIH).
Durante a conferência foi referido várias vezes as dificuldades que esta equipa teve em aceder aos arquivos, onde só entraram efetivamente em outubro — numa altura em que a recolha de testemunhos para efeitos estatísticos estava prestes a encerrar.
A equipa conseguiu recolher 20 histórias, que virão pormenorizadas no relatório final, mas percebeu que muita da informação ali registada não coincidia com os relatos das vítimas. Pior, muita da informação não existe, violando mesmo as normas do Vaticano.
No sumário do relatório lê-se mesmo que esta informação é a «ponta do iceberg». É que “ficou cabalmente demonstrado que um número indeterminado de vítimas não reportou os abusos à Igreja Católica; muitas das queixas terão sido tratadas informalmente, não deixando qualquer rasto documental; com algum grau de probabilidade, a eventual prática de expurgos dos arquivos sem respeitar as normas impostas pela legislação canónica terá sido praticada (convicção partilhada com muitos clérigos contactados)”, lê-se.
Mais. Da correspondência eclesiástica do século XX é frequente o problema dos abusos sexuais não ser referido explicitamente. Ainda assim, “a documentação regista transferências internas ou mesmo de país sem explicitar a razão, ou simplesmente referindo de maneira vaga a necessidade de evitar escândalo público”. Há ainda formulações “tão ambíguas que podem referir-se a casos de outra natureza seja desvio de dinheiro, seja homossexualidade ou envolvimento com mulheres adultas e casadas”. “Perante este silêncio dos arquivos, estamos ante um nó górdio. E a nossa quantificação e análise fica irremediavelmente condicionada”, lê-se no sumário.
O acesso dos investigadores à documentação com um tal grau de sigilo foi discutido e acordado previamente entre as hierarquias católicas e entre as da comissão e da Universidade. O secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, de 9 de junho de 2022, permitiu agilizar a abertura dos arquivos eclesiásticos portugueses. O que só se concretizou em outubro.
A maior parte das vítimas são do sexo masculino
Dos 512 testemunhos validados pela Comissão, apurou-se que predomina o género masculino, num total de 57,2% dos casos, sobre 42,2% do feminino — o que aliás contraria os estudos mais genéricos de prevalência de abuso sexual. A idade atual média destes testemunhos é de 52,4 anos, 88,5% das vítimas vivem em Portugal, mas chegaram também testemunhos de pessoas que vivem agora na Europa Ocidental, continentes americano e africano.
Não foi fácil escutar, registar ou ler cada um destes textos. As descrições eram emocionalmente intensas, transportavam a voz destes adultos para a sua experiência infantil de abuso e a forma como o mesmo os marcou até aos dias de hoje”, lê-se.
Os cinco distritos com mais depoentes são, por ordem decrescente: Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Leiria, e a maior parte (53%) da população participante é católica, 25,8% de praticantes. Ao tempo do primeiro abuso, 58,6% das crianças vítimas residiam com os pais, sendo que a esmagadora maioria vivia em núcleos familiares de “casal com filhos” (54,9%); cerca de uma em cada cinco vítimas vivia num contexto institucional e 7,8% em famílias monoparentais.
A maior percentagem de crianças foi abusada entre os 10 e os 14 anos e o maior número de abusos sexuais ocorreu entre o início da década de 1960 e 1990, em que estão referenciados 58,3% dos testemunhos. De 1991 até hoje, concentram-se 21,9% das situações, o que justifica a quantidade de casos prescritos. A Comissão entregou apenas 25 casos ao Ministério Público, dos primeiros 17 a maior parte já está arquivada sob argumento de não haver elementos suficientes para prosseguir a investigação ou por prescrição.
Leia na íntegra o resumo do relatório final sobre os abusos na Igreja