Três medalhadas no pódio, duas formas de abordar a mesma questão, uma só atleta no centro das atenções. Quando a canadiana Veronica Ivy se tornou a primeira transgénero campeã mundial de ciclismo de pista, com o triunfo na prova de sprint na faixa 35-44 anos em 2018, ficou feliz, triste, chocada e realizada. Tudo ao mesmo tempo. Feliz porque teve Caroline van Herrikhuyzen, a segunda classificada, a dar-lhe os parabéns e a apoiá-la quando todos os olhos estavam ali focados. Triste porque Jennifer Wagner, medalha de bronze, não a cumprimentou e apontou-lhe o dedo por contar com vantagens físicas de nascimento que continuavam a fazer a diferença. Chocada porque Martina Navratilova, uma das melhores tenistas de sempre, falou numa decisão “de loucos, insana e a promover a batota”. Realizada porque acabara de cumprir o seu objetivo.

“O que estão a dizer é ‘Não vos queremos’”: como a natação abriu a Caixa de Pandora sobre atletas transgéneros no desporto

A discussão sobre a participação de atletas transgéneros em provas desportivas já tem alguns anos. Por um lado existe a parte cientifica do benefício de rendimento e da justiça na competição, por outro uma questão ligada aos direitos humanos. E nem as próprias modalidades seguem um regulamento comum e transversal, com cada desporto a deliberar à luz do que considera ser o mais correto e adequado. Na natação, a Federação Internacional decidiu com 71% dos votos num congresso extraordinário realizado durante os Mundiais que os atletas transgéneros só podem competir nas provas femininas caso tenham completado a transição antes dos 12 anos, sendo que decidira antes criar uma categoria “aberta” para quem não se enquadre nessas regras definidas. Base para a decisão? Uma comissão constituída por figuras do mundo do direito, desportivo e médico que avaliou a eventual vantagem competitiva de homens que se tornaram mulheres devido às características físicas. Razão para a decisão? O fenómeno norte-americano Lia Thomas.

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Federação de Natação limita participação de atletas transgénero em provas femininas

Entre várias vitórias e recordes que foi batendo no NCAA (National Collegiate Athletic Association) e de ter sido mesmo capa da Sports Illustrated como exemplo para outras crianças e jovens transgéneros, Lia foi enfrentando um outro lado do sucesso. Houve uma imagem paradigmática disso mesmo quando três atletas olímpicas, Emma Weyant, Erica Sullivan e Brooke Forde, se juntaram no pódio passando ao lado de quem tinha ganho a prova, algo justificado depois como um mero mal entendido. Depois, a carta de um grupo de pais da equipa de Pensilvânia que falou mesmo em “ameaça à integridade da competição”: “O precedente que se abre, no qual as mulheres não têm um espaço protegido e equitativo para competir, é uma ameaça direta às atletas do sexo feminino em todas as modalidades. Quais são os limites?”. A seguir, a renuncia de uma juíza da Federação de Natação dos EUA, Cynthia Millen. “Tudo o que era justo na natação está a ser destruído. A Lia é uma pessoa preciosa mas corpos nadam contra corpos”, argumentou então.

Lia Thomas. Transexual soma recordes na categoria feminina e acende debate: “Tudo o que era justo na natação está a ser destruído”

Agora, a “guerra” contra Lia Thomas é feita por uma antiga adversária da Universidade de Kentucky, Riley Gaines. Já antes a nadadora se tinha manifestado publicamente contra a atribuição do prémio de “Mulher do Ano da NCAA” a Lia Thomas mas agora foi mais longe, ao participar com o seu testemunho no apoio a um projeto lei chamado “Igualdade no desporto feminino” que está a ser analisado no estado de Virgínia, dando o seu próprio exemplo de quando competia (até 2022) contra a primeira transgénero a ganhar os campeonatos da Ivy League e da NCAA entre vários outros registos históricos que foi batendo.

Lia Thomas fez história, foi deixada sozinha num pódio e só quer estar em Paris. Pelo meio, é a nova cara da luta dos atletas transexuais

“No dia 17 de março do ano passado, eu e os meus colegas, e outros nadadores de outras universidades, fomos obrigados a competir contra um homem biológico chamado Lia Thomas, que competiu como homem por três anos na Universidade da Pensilvânia”, começou por apontar. “Thomas e eu competimos nos 400 metros livres e terminámos empatadas, mesmo nos centésimos de segundo. Como só havia um troféu, a NCAA disse-me que não levaria nenhum troféu porque iam tirar para dar ao Thomas. Disseram-me que só teria um para as fotos. O que as políticas da NCAA fizeram foi excluir as atletas femininas (…) Além de ter sido forçada a renunciar aos nossos prémios, títulos e oportunidades, a NCCA força-nos também a dividir o balneário com Thomas. Um homem de 22 anos que tem 1,80m e ainda mantém sua genitália masculina. Deixem-me ser clara: não fomos avisadas sobre isso nem pediram a nossa aprovação”, acrescentou.

O discurso de Riley Gaines, que foi 12 vezes campeã do All-American e cinco na Universidade de Kentucky, não demorou a ganhar enorme dimensão, naquele que foi sobretudo um prolongamento de várias ações que tem protagonizado em termos públicos a criticar a possibilidade de Lia Thomas competir no quadro de provas feminino, algo que já tinha feito a propósito do 1 de fevereiro, o Dia Nacional de Jovens e Mulheres no Desporto, através de um artigo na Fox News. “Estarei para sempre orgulhosa daquilo que conquistei e que resulta da minha vida de dedicação e das horas sem fim de trabalho e sacrifício. Infelizmente, aquelas que eram as categorias femininas de competição estão corroídas por políticas discriminatórias que permitem que homens que se identifiquem como mulheres possam participar (…) Posso testemunhar que existe para nós uma óbvia desvantagem porque tive como adversária um homem em termos biológicos que durante três anos esteve na equipa masculina da Universidade de Pensilvânia. E quem fala é apelidada de transfóbica e hater, daí que existam muitas nadadoras com medo de represálias”, referiu Gaines.