Começou há quatro décadas entre os infantis do Sport Lisboa e Olivais e os iniciados do Belenenses, chega agora aos 70 anos ainda no ativo como selecionador do Qatar. Pelo meio, Carlos Queiroz viveu um pouco de tudo no futebol numa carreira que foi mais além do que a área técnica do banco de suplentes. Sagrou-se bicamepão mundial Sub-20 de Portugal numa viragem de paradigma que mudou a forma de pensar futebol na Seleção, conheceu realidades tão distintas como Sporting, Manchester United, Real Madrid e as ligas dos EUA e do Japão quando estavam no seu expoente na década de 90, foi dirigindo seleções de todo o mundo, tornou-se agora o único selecionador a marcar presença em fases finais de Mundiais em quatro continentes.

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Entre tantos momentos vividos, escolhe três para definir aquilo que é o perfil da sua carreira. No entanto, e entre os feitos que foi alcançando, distingue aquele que é para si o marco mais importante da vida: o pai. “Ele também foi jogador e treinador de futebol. Não tendo sido capaz de ter sido melhor jogador do que ele, sobrou-me tentar ser melhor treinador. Não consegui nem uma coisa nem outra. A ele devo tudo e a ele dedico tudo”, salientou o técnico numa entrevista concedida esta quarta-feira à Federação do Qatar.

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“Nas minhas memórias, felizmente, tenho momentos únicos vividos junto daqueles que têm vindo a constituir as minhas ‘famílias do futebol’. Destaco dirigentes, os meus colegas de treino nas equipas técnicas e particularmente os jogadores, a quem devo muito do que sou hoje e aos quais sou eternamente grato. Destaco três marcos na minha carreira e na minha vida profissional: o Mundial de 1966 e todo o impacto que teve na minha juventude, sobretudo pelo exemplo e contributo dos moçambicanos na Seleção de Portugal; o Mundial de 1982, onde tive a oportunidade de contribuir com o meu humilde trabalho para Telé Santana e Moraci, dando os primeiros passos no mundo do scouting e análise de adversários para aquela fantástica seleção do Brasil; e a conquista do primeiro Mundial-Sub 20 com Portugal”, detalhou Queiroz.

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“Cumprir 70 anos a treinar? Continua o mesmo valor simbólico de sempre. A paixão pelo jogo de futebol que, acredito, continua a ser a chama que arde, a fonte que me entusiasma e me motiva acordar todos os dias na procura de melhorar. Melhorar sempre e poder continuar a dar o meu contributo para o desenvolvimento de jogadores e construção de equipas para a competição. E no final, claro, saborear esse resultado único que o futebol nos traz: aprender ou ganhar. Sinto este mesmo desejo, esta mesma inquietação e este mesmo inconformismo desde o primeiro dia”, destacou ainda o português que esteve nas últimas três fases finais do Campeonato do Mundo no comando da seleção do Irão apesar de ter passado entretanto pelos conjuntos da Colômbia e do Egito antes de voltar aos asiáticos, fazendo ainda considerações sobre o que foi mudando no mundo do futebol que ganharam visibilidade internacional.

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“O treino começou com o jogo. Depois de algumas ‘barbaridades’ curiosas e até engraçadas, vividas pelo processo do treino ao longo dos tempos, os chamados pecados do progresso, a evolução do treino fez regressar o jogo e as suas formas jogadas ao conteúdo e à metodologia do treino. Consolidados conceitos e métodos, consolidados os fundamentos técnicos, táticos, físicos e mentais do jogador e do futebol contemporâneo, creio que o grande desafio, hoje, é o cérebro e tudo o que tem que ver com o treino das tomadas de decisão do jogador, desde a formação à alta competição. As novas descobertas da ciência no estudo do cérebro abrem novos caminhos no treino e consequentemente no jogo e na competição. Refere-se como exemplo todo o potencial inovador do treino virtual”, argumentou.

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“Nao tenho a certeza se ainda podemos falar do mesmo jogo de futebol. Olho para o futebol contemporâneo e por vezes não sei bem do que estamos a tratar. Este jogo ainda tem os vestígios da ética do futebol original, do seu romantismo mas eu preferia chamar-lhe hoje o jogo do ‘winning business’ ou de uma outra coisa qualquer. Antes, primeiro criavam-se os troféus, as competições e logo as mais-valias financeiras e os méritos eram atribuídos os campeões. Hoje criam-se e calculam-se mais-valias financeiras e logo lhe atribuímos o nome de um troféu qualquer. Daí, o futebol internacional de seleções e de clubes correr graves riscos. No princípio treinavam-se heróis ingénuos e românticos. Depois começámos a chamar-lhes profissionais. Mais adiante começámos a treinar milionários. Hoje treinamos autênticas empresas, verdadeiras companhias, com interesses diferenciados e por vezes até antagónicos na mesma equipa”, apontou Carlos Queiroz a propósito das principais diferenças que foi encontrando com a evolução do jogo.

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“Ao mesmo tempo, o treinador baixou na escala de valor e de importância, algumas vezes por culpa própria. Cedemos espaço de importância e território de intervenção aos chamados agentes do futebol e aos media em geral, que se impõem numa postura e posição perversamente confortável: agentes que curiosamente nunca perdem jogos, mas que também nunca ganharam nenhum. E no entanto, aos treinadores cabe sempre, por responsabilidade e exigência própria, cuidar da génese do jogo e da sua única verdade aceitável: os três pontos. E por isso a eles compete trabalhar o progresso, defendendo e promovendo esse conceito sublime de triunfar em equipa e ao mesmo tempo zelar pela ética fundamental do jogo”, frisou, antes de abordar também o novo desafio no Qatar: “É um enorme motivo de orgulho e um tributo à gratidão por tudo o que futebol proporcionou ao longo de 40 anos. Refiro experiências e vivências humanas, sociais e culturais, únicas, que pude atravessar. Graças ao futebol, sou hoje alguém com mundo, no meu ser e viver.