Aurelia, Flaminia, Stratos ou Delta. A Lancia tem um passado recheado de modelos emblemáticos e um presente limitado a um único mercado, o italiano, e a um único modelo, o Ypsilon. Mas isso vai mudar – e de que maneira! Sob os comandos de Luca Napolitano, o homem que antes da fusão da PSA com a FCA liderava a Fiat e a Abarth, a marca já só está concentrada em garantir o seu futuro no universo das 14 insígnias que integram a Stellantis, o 4.º maior grupo automóvel a nível mundial, capitaneado por Carlos Tavares. E na visão estratégica do gestor português, há espaço e há mercado para a Lancia renascer, perseguindo um posicionamento premium, tal como se pretendem afirmar outras duas marcas do grupo franco-italo-americano, a DS Automobiles e a Alfa Romeo.

Mas se, até agora, pouco mais havia do que uma espécie de “carta de intenções”, sem nada de concreto para mostrar, a não ser o novo emblema da Lancia, isso mudou de figura com a revelação do Pu+Ra HPE, modelo que a marca italiana define como um “manifesto” que materializa a sua visão num horizonte de 10 anos, com a própria designação a fornecer pistas sobre o amanhã. O “Pu+Ra” abrevia o espírito “puro e radical” da nova linguagem de design da Lancia, enquanto o “HPE” perde o significado que tinha na década de 70, quando foi utilizado no Lancia Beta, para se adaptar às novas tendências. No passado acrónimo de “High Performance Estate”, passa agora a “High Performance Electric”. Movimento semelhante, aliás, ao que a Opel empreendeu para reposicionar a sigla GSe…

Numa altura em que está confirmadíssimo que a marca vai voltar ao mercado português já em 2024, com concessionários em Lisboa e no Porto, conversámos com Luca Napolitano para perceber melhor o que aí vem.

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Se está à espera de SUV, esqueça

“Não estou a ver futuro num Lancia SUV”, revelou ao Observador o CEO da Lancia, explicando depois que, embora haja “muita pressão” para apresentar (bons) resultados, “os SUV não se coadunam com o espírito Lancia”, referindo-se ao maior volume da carroçaria e ao peso superior. Para o CEO, “lançar uma marca com mais de 100 anos de existência é desafio complicado, uma vez que é igualmente uma ratoeira, dado existir a tendência de viver demasiado no passado”. A solução, para Napolitano, passa pela estratégia PU+RA adoptada para o design, que define a renascida Lancia como uma marca clássica progressiva, “mas 70% progressiva e apenas 30% clássica”, salienta o responsável.

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Napolitano recordou a reunião inicial com Carlos Tavares, o português ao leme da Stellantis, quando este lhe explicou que a estratégia para a Lancia passava por se “assumir como um construtor credível no segmento premium, trabalhando em conjunto com as outras marcas premium do grupo, a Alfa Romeo e a DS”. A este desafio de Tavares, Napolitano responde com os planos de lançamentos para a marca:

Vamos começar por lançar o novo Ypsilon já em 2024, a que se seguirão o Gamma em 2026, uma berlina topo de gama, para o Delta surgir em 2028.”

Arrancar com um pequeno utilitário para lançar uma marca de luxo pode parecer, à primeira vista, uma tarefa ciclópica. No entanto, Luca Napolitano recorda que “o Ypsilon é um modelo extremamente importante para Lancia e para o mercado italiano e a marca necessita de ser rentável”. Isso leva-a “começar por um modelo do segmento B com motores de combustão mild hybrid a 48V, a que se irá juntar uma versão 100 % eléctrica”. O CEO adianta ainda que, dois anos depois, “surgirá o Gamma e mais tarde o Delta”, modelos do segmento D e C, respectivamente, “que só vão chegar ao mercado a partir de 2026 porque são 100% eléctricos e estão baseados na plataforma STLA Medium do grupo”, que ainda não está pronta.

Luca Napolitano

Depois de Napolitano ter assegurado que o novo Ypsilon não será apenas um substituto do actual, mas o veículo sobre o qual a marca será recriada, a questão que se impunha era saber até que ponto a Lancia irá regressar à competição e recuperar modelos históricos como o Stratos. “Modelos como o 037, Stratos e Delta dominaram o mundo dos ralis durante anos e nós pretendemos utilizar o ADN da competição de todas as formas possíveis”, admitiu o CEO. Daí que depois de lançar o Ypsilon em 2024, a “Lancia introduzirá uma versão HF (mais desportiva) no ano seguinte”. Quanto ao regresso à competição, é algo que faz parte do projecto, “assim que tal for possível e útil”. Napolitano concluiu afirmando que “estamos muito determinados, mas continuamos muito humildes”.

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A fasquia está lá em cima: consumo abaixo de 10 kWh

Com o Pu+Ra HPE, a Lancia não deixa à imaginação a ousadia com que pretende renascer. E isso torna-se logo evidente na frugalidade com que a marca encara o seu próprio futuro eléctrico, prometendo uma eficiência até agora inédita. Como antecâmara do futuro, o Pu+Ra HPE leva a crer que o construtor italiano coloca a fasquia bem lá em cima, em termos de design, tecnologia a bordo e conjunto eléctrico.

Audaz no visual, o Pu+Ra HPE oferece um interior como se de uma casa se tratasse e, segundo a marca, aponta para uma autonomia acima de 700 km com uma carga completa, “sendo necessários pouco mais de 10 minutos para o carregamento e com um consumo energético inferior a 10 kWh/km”.

Até agora, não há nada que se compare a este consumo mínimo. Basta lembrar que, no universo Stellantis, o rei do apetite de passarinho é o Peugeot e-208, que anuncia uma média na casa dos 12 kWh/100 km. Contudo, quando revelou o Pu+Ra HPE, a “visão” da Lancia para o futuro não foi acompanhada de qualquer indicação no que respeita àquilo que verdadeiramente faz a diferença na hora de estimar o alcance entre recargas. Nem uma palavra acerca de packs de baterias, potências de carregamento ou motores eléctricos…

O que se sabe, isso sim, é que o seu primeiro modelo eléctrico vai surgir com o novo Ypsilon, cuja nova geração contempla igualmente uma versão híbrida. Isso significa que, tal como tem sido prática nas restantes marcas da PSA, a plataforma será multienergia. E esta opção, se bem que contenha os custos de produção no imediato, condiciona também a eficiência. Tanto assim é que a Stellantis já tem em forja não uma, mas sim quatro plataformas específicas para veículos eléctricos de diferentes bitolas. Como tal, a ambição “para o futuro em termos de autonomia, tempos de carregamento e consumos” associada ao Pu+Ra HPE é algo que só daqui a uns anos poderá vir a materializar-se.

O passado tem futuro (e é eléctrico)

Mas não será preciso esperar tanto para ver soluções do Pu+Ra HPE em modelos de série. A começar pelo próprio Ypsilon, cuja versão híbrida está condenada a apenas quatro anos de vida. Isto porque nos planos da marca e conforme mencionámos acima, a partir de 2026, a Lancia só vai introduzir novos modelos eléctricos, despedindo-se do novo Ypsilon híbrido em 2028, com a chegada do Delta. Ou seja, dentro de cinco anos, o construtor italiano comercializará só e apenas modelos 100% eléctricos.

O futuro da Lancia é claramente a bateria, mas a energia da marca vai também apoiar-se no reavivar de modelos históricos e, simultaneamente, na “sustentabilidade com estilo” – ou “sustylenability”, como a marca prefere chamar-lhe. O Pu+Ra HPE corporiza essa dupla intenção, ao assumir claros pormenores de design que remetem para os Lancia do passado, ao mesmo tempo em que se foca em oferecer um interior “caseiro” e construído à base de materiais sustentáveis. O plano estratégico da marca a 10 anos é taxativo nesse sentido: “70% das superfícies tácteis serão concebidas com recurso a materiais ecossustentáveis”.

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E como será o novo Ypsilon?

Por enquanto, esse é um segredo que permanece na posse dos deuses. Mas a marca já começou a abrir o jogo, ao garantir que o Pu+Ra HPE nos dá um vislumbre do que serão os seus automóveis do futuro, os quais privilegiarão a adopção de uma série de soluções aerodinâmicas, de tejadilhos baixos a jantes optimizadas, passando por retrovisores exteriores digitais, tudo para favorecer a autonomia.

Certo mesmo é que o novo Ypsilon vai exibir a nova identidade visual da marca e o mais provável é que estilisticamente resgate detalhes de antigos Lancia, conforme adiantou o próprio CEO. “Iniciando-se com o novo Ypsilon, os nossos automóveis do futuro serão inspirados pelo Lancia Pu+Ra HPE”, avançou Luca Napolitano.

Esse regresso ao passado virá acompanhado de um “banho” de tecnologia, que passa pela sala. Não a de estar, mas para estar. O futuro Ypsilon será o primeiro Lancia a ser equipado com a tecnologia S.A.L.A., abreviatura de Sound Air Light Augmentation. Trata-se de uma interface que visa que os ocupantes do veículo se sintam em casa, ajustando o ambiente interior ao toque de um botão ou por instrução vocal. Isso significa que, quando surgir no próximo ano, o utilitário italiano vai ser o primeiro modelo da Stellantis a integrar as tecnologias Chameleon e TAPE (Tailored Predictive Experience), centralizando as funções de áudio, controlo de climatização e iluminação, para oferecer uma experiência a bordo à vontade do freguês.