O tema é uma “carta conforto”, mas está a causar um claro desconforto entre Pedro Marques, ex-ministro das Infraestruturas, e Miguel Pinto Luz, ex-secretário de Estado das Infraestruturas que, em novembro de 2015, foi um dos governantes que concluíram a privatização da TAP, depois reconfigurada pelo Governo do PS. Depois de Pedro Marques ter acusado Pinto Luz de ter assinado um documento “grave”, a tal carta conforto que punha o Estado em risco, Miguel Pinto Luz vem esta quarta-feira contrapor a versão do ex-ministro. E defender, como já tinha feito no parlamento, na comissão de Economia, que não havia qualquer carta conforto nos termos descritos por Pedro Marques. Já na terça-feira tinha, num post de Facebook, Pinto Luz tinha dito que Pedro Marques “baralhou conceitos e documentos”. E vem agora explicar a sua versão.

Numa nota enviada às redações, Miguel Pinto Luz acusa Pedro Marques de não ter lido o “Acordo Relativo à Estabilidade Económico-financeira”, da TAP. Nela, refere, está explícito que o acionista privado, David Neeleman, era obrigado “a manter mensalmente (!) a companhia em situação líquida positiva”, além de permitir ao Estado “resgatar a empresa, caso isso não acontecesse. E com o acionista a perder toda a capitalização feita”.

A versão de Pedro Marques é divergente. O ex-ministro das Infraestruturas e atual eurodeputado esteve esta quarta-feira na comissão de inquérito à TAP, depois de na terça-feira ter marcado presença na comissão de Economia, também para responder sobre a TAP.

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Pedro Marques leu a mesma intervenção inicial nas duas audições. Nela, acusa Miguel Pinto Luz, secretário de Estado das Infraestruturas durante 27 dias em 2015, de ter cometido um ato “grave” ao assinar (com a então secretária de Estado do Tesouro, Isabel Castelo Branco) a autorização à Parpública para enviar uma carta conforto aos bancos. Esse documento, segundo Pedro Marques, poderia ser considerado por Bruxelas como um auxílio de Estado, além de obrigar o Estado a assumir 100% dos riscos na TAP em caso de incumprimento do acionista privado. E diz ter estranhado Pinto Luz ter afirmado não se lembrar de assinar esse documento.

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Só que a carta conforto a que Pinto Luz se referiu quando respondeu na comissão de Economia, a 5 de maio, seria outra. O deputado do PS Pedro Coimbra questionou Pinto Luz sobre se existiu e se teve conhecimento de “alguma carta conforto da TAP que tenha permitido ao senhor Neeleman interceder em nome da TAP”, não referindo especificamente em quê, mas devendo estar a ligar esta carta conforto à negociação dos aviões, uma vez que a questão foi colocada no seguimento de umas quantas sobre Neeleman e Airbus. Ou seja, o tema aqui é diverso, são os famosos fundos Airbus. “E se existiu, se o Estado soube e foi informado sobre isso”. Ao que Pinto Luz respondeu: “Carta conforto desconheço. Acho que absolutamente não existiu”.

Carta conforto versus direito potestativo

O termo carta conforto é usado entre aspas pelo Tribunal de Contas na auditoria em que analisa as duas privatizações da TAP para descrever as declarações emitidas pela Parpública a cada banco credor da TAP em 2015 a assegurar a assunção da responsabilidade pela dívida em caso de incumprimento. Esta exigência resultou da opção do Governo de Passos Coelho de transferir a maioria do capital (e a gestão) da empresa para investidores privados.

Na versão de Miguel Pinto Luz (e que foi aliás defendida por outros responsáveis do segundo Governo de Passos Coelho na altura), no caso referido por Pedro Marques não está em causa uma carta conforto, mas sim um mecanismo de controlo criado pelo Governo PSD/CDS. “O direito potestativo é o mecanismo de controlo que criámos para permitir que o Estado retomasse a propriedade da TAP. Um mecanismo que teria prevenido a necessidade de indemnizar David Neeleman em 55 milhões de euros. Como veio a acontecer”.

Segundo Pinto Luz, “este mecanismo garantia que o Estado recompraria a TAP sempre em melhores condições do que as do momento da privatização”.

O ex-secretário de Estado argumenta que Pedro Marques “também não leu o despacho que assinei com a minha colega do Tesouro, Isabel Castelo Branco”, no qual “autorizava a Parpública a comunicar e explicar aos bancos esse mesmo direito potestativo. Se tivesse lido, não insistia em chamar-lhe ‘carta conforto’”. Pedro Marques refere-se a este despacho como uma autorização dada à Parpública para enviar a carta conforto aos bancos credores da TAP à data da primeira privatização.

Esse despacho refere que, na sequência do acordo, a Parpública fica com um “conjunto de poderes que visam garantir a efetividade das obrigações dele constantes, designadamente o de exercer o direito potestativo de compra das ações da TAP SGPS, SA em caso de incumprimento definitivo de obrigações das mutuárias ou da compradora relativamente à dívida financeira, de modo a proteger o interesse público subjacente ao referido direito”.

Ainda na sua audição na comissão de Economia, a 3 de maio, Miguel Pinto Luz disse que antes da operação de privatização, o Estado era responsável pela dívida da TAP (era o único acionista), e que depois da operação, “a célebre carta assinada pela minha colega [Isabel Castelo Branco] é uma carta clara que reafirma o direito potestativo que pusemos no contrato”, dizia que “se o senhor David Neeleman não cumprisse com o refinanciamento e capitalização, o Estado podia exercer o direito potestativo de recomprar, perdendo Neeleman todo o dinheiro que lá meteu. Se se chama aval do Estado, que diabo. Se assinei, não assinei. O que foi assinado foi isso”.

Para Pedro Marques aquela que diz ser uma carta conforto transformava o “direito do Estado em comprar o capital em uma obrigação incrível para o Estado. Mesmo que a TAP estivesse espatifada”, o Estado “era obrigado a comprar”. Ou seja, “transformaram um direito num dever e isso desequilibrou brutalmente a operação”. Bastava que a TAP falhasse uma prestação à banca para que o Estado tivesse de assumir o endividamento. Disse-o esta terça-feira na comissão de Economia e reafirmou-o na comissão de inquérito. Ressalvou, no entanto, que os governantes que assinaram essa carta não queriam “pôr o Estado em situação de risco total”. “Acredito que foi feito por causa da imposição dos bancos da existência desta garantia”.

Na resposta, Pinto Luz garante que “o direito potestativo que assinámos” não permitia o pagamento de 55 milhões de euros a David Neeleman para sair da TAP e que, segundo vários testemunhos já ouvidos na CPI, é uma consequência das cláusulas do acordo parassocial que saiu do acordo de recompra.

“Pedro Marques, o ministro responsável, conseguiu dizer que os ‘riscos’ do direito potestativo (ou, nas suas palavras, ‘carta conforto’) motivaram a reversão da venda da TAP”. Mas o ex-secretário de Estado defende que “a decisão de reverter a privatização da TAP nasceu de um soundbite de campanha de António Costa para efeitos eleitorais e políticos. A decisão já estava tomada. Independentemente da qualidade dos acordos e dos contratos que Pedro Marques, claramente não leu”.

Na mesma nota, Pinto Luz continua a desfiar documentos que Pedro Marques “não leu”, nomeadamente “os relatórios e contas da TAP que demonstram que a dívida histórica da empresa (garantida pelo Estado), reduziu de 480 milhões de euros para 140 milhões de euros. Por iniciativa do próprio acionista privado”.

Ou o acordo de recompra da TAP “liderado pelo consultor do seu governo [Diogo Lacerda Machado], que perante incumprimento por parte do privado, a Parpública era obrigada a injetar na TAP quase 600 milhões de euros, mantendo o privado todos os direitos de voto e económicos (menos 2,5%) e todos os poderes no modelo de governo. Ou seja, o privado não pagava, mas continuava a mandar”. Pedro Marques afirmou que o Estado só teria de meter capital na proporção da sua posição acionista e se os privados transferissem a sua parte da capitalização para o parceiro público seriam mais penalizados nos direitos económicos. O que era um desincentivo, argumenta.

Pinto Luz garante que documentos da Airbus “estavam no processo e foram passados”

Na mesma resposta, Miguel Pinto Luz garante ainda que os documentos da Airbus “estavam no processo e foram passados”. E que foi Pedro Marques que não os leu. Refere que “quem o diz é Lacerda Machado, que trabalhava para o próprio ministro” e “a Parpública, tutelada pelo próprio governo. Pinto Luz cita duas notícias do Observador. Uma relativa à audição de Lacerda Machado na CPI, que refere que o então consultor soube dos fundos Airbus em fevereiro de 2016 quando se renegociava com os privados. E outra relativa à audição de Pedro Pinto, ex-gestor da Parpública, na comissão de Economia, quando este afirmou, a 26 de abril, que passou toda a informação ao governo PS em 2015 e ficou “espantado por não fazerem perguntas”. Mais tarde, já na comissão de inquérito, a 16 de maio, Pedro Pinto diria que a referência aos fundos Airbus não estava explícita nos documentos passados.

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Esta quarta-feira, na CPI, Pedro Marques voltou a afirmar que não conhecia a informação sobre os fundos Airbus quando tomou posse, e que não foi informado nem pela Parpública nem pela TAP sobre ela. “Disponibilizaram documentação e, salvo erro meu, o conhecimento público da operação deve ter acontecido em janeiro de 2016 em entrevista de Neeleman à Visão”. Pedro Marques diz que o que havia era um parecer da Vieira de Almeida que garantia a legalidade da operação (da troca de contratos para compra de aviões), que também foi assegurada, diz Pedro Marques, por Fernando Pinto.

Para Pinto Luz, as audições a Pedro Marques “deixam ainda mais evidente o contraste entre duas formas de governar. Com dois modelos, muito diferentes, para a TAP. De um lado, a estratégia seguida pelo Governo da Coligação PSD-CDS, liderado por Passos Coelho. Do outro a navegação à vista do Governo PS de António Costa”. Sublinha ainda que “a TAP privada foi a melhor TAP de sempre. E sem um único euro dos contribuintes. Do outro lado, 3.2 mil milhões de euros de dinheiro público que continuam por explicar”.

“Em vez de acusar, seja quem for, de má-fé, prefiro acreditar naquilo que é mais evidente. Prefiro acreditar que as palavras de Pedro Marques se devem mais à sua impreparação do que a qualquer intenção duvidosa. Os resultados destes últimos anos parecem confirmar a minha tese”, conclui Miguel Pinto Luz.