As câmaras seguiram-no desde que pisou solo português, mas foi longe dos holofotes e de forma discreta que o Papa Francisco se reuniu com vítimas dos abusos sexuais por parte de membros do clero que “desfiguram o rosto” da Igreja, como frisou na homilia nos Jerónimos, horas antes. O encontro, sigilioso, aconteceu na Nunciatura Apostólica, em Lisboa, no final do primeiro dia do Papa em Portugal para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ).
Nesse momento reservado, Francisco esteve com 13 vítimas de abusos sexuais e alguns representantes de instituições da Igreja Portuguesa que tutelam menores. Terá pedido perdão às vítimas de abusos em nome da Igreja Portuguesa.
“Foi um momento reparador”, descreve Rute Agulhas ao Observador. A coordenadora do grupo VITA, organismo criado pela Igreja Católica em Portugal para acompanhar vítimas de abusos sexuais de menores no contexto eclesiástico, esteve presente na reunião que durou mais de uma hora. “Um dos critérios muito importantes era que [o encontro] pudesse ter um impacto reparador, positivo e construtivo. Da parte do Santo Padre sentimos total disponibilidade para escutar, para ouvir, e o perdão, em seu nome e da Igreja”, continua.
Quanto às vítimas, “na sua maioria pessoas que recorreram ao grupo VITA” e outras “identificadas pelas comissões diocesanas”, “cada pessoa falou o que entendeu”, esclarece. “Da parte do Papa houve total disponibilidade para escutar até ao fim. Senti uma total disponibilidade de verdadeira escuta…”
De acordo com a responsável, o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa — que, em fevereiro, apontou que pelo menos 4815 crianças sofreram abusos no seio da Igreja em Portugal nos últimos 70 anos — não foi um tópico na conversa. Pelo menos, não “de forma concreta”: “Não sei o Santo Padre se está totalmente a par, acredito que sim, mas a atenção foi para cada pessoa em particular!”
Rute Agulhas, coordenadora do Grupo Vita, revelou alguns detalhes do encontro. Ouça aqui
Segundo o Jornal de Notícias, o pontífice terá pedido “a cada uma das vítimas que lhe contasse a sua história”. “Pediu várias vezes perdão e mostrou-se emocionado à medida que ouvia as histórias. Uma das vítimas que foi ouvida é hoje padre e confessou ter sido abusada por um sacerdote”, avança o mesmo jornal. O curto comunicado do Vaticano descreve um encontro que “ocorreu em clima de escuta intensa e durou mais de uma hora, concluindo-se pouco depois das 20h15”.
Já a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) fala num momento que “representa a confirmação do caminho de reconciliação que a Igreja em Portugal tem vindo a percorrer neste âmbito, colocando as pessoas vítimas em primeiro lugar, colaborando na sua reparação e recuperação, de forma que lhes seja possível olhar o futuro com esperança e liberdade renovadas”, lê-se no documento enviado aos jornalistas na noite desta quarta-feira.
O documento adianta também os nomes dos representantes de instituições encarregadas da tutela de menores na Igreja em Portugal que estiveram presentes no encontro: Rute Agulhas, coordenadora do Grupo VITA; Paula Margarido, presidente da Equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas. Esteve também presente Pedro Strecht, coordenador da ex-Comissão Independente que, ao longo de quase um ano, validou 512 dos 564 testemunhos recebidos e elaborou o relatório.
Um mês depois, após a análise do relatório, os bispos portugueses anunciaram a criação de um novo organismo para substituir a Comissão liderada pelo pedopsiquiatra: o Grupo VITA – Grupo de Acompanhamento das situações de abuso sexual de crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal. Ao contrário da comissão anterior, cuja missão principal havia sido a de fazer um levantamento histórico dos abusos sexuais dentro da Igreja, o novo grupo de trabalho pretendia-se que tivesse um “carácter operativo”, esclarecia então o presidente da CEP. Durante “três anos”, o grupo deverá “acolher, escutar, acompanhar e prevenir as situações de abuso sexual de crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja em Portugal, dando atenção às vítimas e aos agressores”. Além disso, deve também dedicar-se à “elaboração de um Manual de Prevenção que será comum a toda a Igreja em Portugal, quer nas Dioceses quer nos Institutos de Vida Consagrada”.
Encontro não constava na agenda, mas Papa já tinha falado sobre os crimes que “desfiguram o rosto” da Igreja
O encontro com as vítimas dos crimes não fazia parte da agenda oficial da visita do Papa Francisco a Portugal e deu-se depois de todos os compromissos protocolares do primeiro dia do líder da Igreja Católica em Lisboa.
Mas o tema já tinha sido trazido para cima da mesa durante a tarde, de forma clara, perante os bispos portugueses no Mosteiro dos Jerónimos. Ao presidir à Oração das Vésperas, o Papa Francisco usou a homilia para abordar diretamente os abusos sexuais de menores, com uma referência expressa à “desilusão e aversão que alguns nutrem face à Igreja, devido às vezes ao nosso mau testemunho e aos escândalos que desfiguraram o seu rosto e que nos chamam a uma humilde e constante purificação, partindo do grito de sofrimento das vítimas que sempre se devem acolher e escutar”.
Poucos minutos antes, D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, também se referira à “defesa do bem das crianças”, dizendo que existe “o compromisso de defendê-las de toda a espécie de abusos”. A frase foi acrescentada à saudação inicial e não estava no texto previamente distribuído aos jornalistas.
O tema dos abusos sexuais na Igreja tem sido uma das questões que tem sido alvo de críticas e assombrado esta Jornada Mundial da Juventude — a par dos mais de 38,33 milhões de euros em ajustes diretos. Na madrugada desta quarta-feira, foram instalados três outdoors para lembrar as vítimas de abusos na Igreja em Portugal, meses depois de um relatório mostrar a realidade até então praticamente desconhecida no país. Horas depois, um deles já tinha sido retirado.
A 2Km, um cartaz “memorial pelas vítimas de abusos sexuais na igreja católica em Portugal” era retirado
Enquanto o assunto era abordado pelas figuras maiores da Igreja Católica, em Belém, a indignação crescia nas redes sociais, depois de, a dois quilómetros dali, em Algés, o município de Oeiras ter mandado retirar um cartaz pelas vítimas abusos na Igreja.
A autarquia presidida por Isaltino Morais justificou, por e-mail, ao Observador, a remoção do cartaz, indicando que “no Município de Oeiras toda a publicidade ilegal é retirada, neste e em todos os casos”. Mas o cartaz seguia os trâmites legais, garante um dos elementos do movimento cívico que, através de uma campanha de crowdfunding, conseguiu colocar o outdoor na rua para criticar o “silêncio ensurdecedor” quanto a este assunto durante a JMJ.
O mesmo responsável acrescenta que, por configurar uma “mensagem política” (e não publicitária), o cartaz não carecia de autorização e licenciamento. O cartaz, de fundo branco, tem exatamente 4.815 pontos vermelhos, que representam cada uma das vítimas de abusos sexuais na igreja que constam no relatório divulgado em fevereiro.
Abusos na Igreja. Relatório da comissão é apenas a ponta do “icebergue”. Tudo começa agora
Ao final do dia, o movimento cívico adiantou, em comunicado, estar a “analisar o recurso à via judicial para reagir a esta injustiça”.
Um dos principais objetivos deste grupo era que os cartazes (há outros dois, em Lisboa e Loures) fossem afixados durante a semana da JMJ. “O intuito é chegarmos ao máximo número de pessoas possível e que, sobretudo, os peregrinos de outras nacionalidades entendam a mensagem. Queremos mostrar que os portugueses não se esquecem”, dizem sobre a escolha de ter os cartazes em inglês. Para esta campanha contribuíram mais de 300 pessoas e conseguiram angariar quase três mil euros.