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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Abusado por um "serial killer pedófilo": Guillaume estava de férias e foi atraído para a capela. Os 48 relatos das vítimas do relatório

AVISO

Este artigo contém linguagem e descrições que podem ferir a sensibilidade dos leitores

O relatório incluiu vários relatos com que a Comissão quis retratar várias épocas, vários tipos de abusadores, e as mais variadas vítimas. Todos os depoimentos são chocantes e muito sensíveis.

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Logo na apresentação do relatório, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica fez questão de partilhar sete histórias de vítimas de abusos sexuais que denunciaram os seus casos à equipa ao longo do último ano. As histórias foram lidas para a plateia, sem nomes, nem grandes detalhes geográficos, quase sempre em discurso direto, pelos sociólogos Ana Nunes de Almeida e Vasco Ramos, causando impacto.

Mas o relatório, conhecido na íntegra mais tarde, inclui muitos mais. A Comissão justifica que é preciso dar “protagonismo aos relatos” das vítimas, porque “cada um dos 512 casos de abuso sexual validados na base de dados tem uma história” e “atrás de cada número, há uma vida e uma experiência concreta”. Há testemunhos de abusos em seminários e outras instituições de acolhimento, em atividades ligadas a escuteiros, locais ligados à igreja, como confessionários, e nas casas de família das vítimas. Mas também em colégios religiosos e mesmo em casas e carros de padres.

A Comissão Independente usa sínteses de relatos ouvidos de viva voz (por entrevista presencial, Zoom ou telefone), resumos de emails ou cartas e faz reconstruções que têm como ponto de partida o formulário das respostas online. Em todos, reproduz o discurso das vítimas “preservando as expressões da oralidade e incorreções gramaticais ou ortográficas”. E, de forma a manter o anonimato e a confidencialidade das pessoas, apenas modifica detalhes das respostas, removendo ou alterando informações relativas a locais concretos, e nomes de abusados e abusadoras referidos.

Os relatos são verdadeiramente impactantes e podem chocar os mais sensíveis, pela linguagem e descrições.

D. José Ornelas: “Pedimos perdão a todas as vítimas”. Pedro Strecht diz que Marcelo está em “total sintonia” com proposta da comissão para alterar lei da prescrição dos crimes de abuso sexual

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“Esse serial killer pedófilo abusou de pelo menos 100″

Homem nascido na década de 70 e filho de operários. Conhece o Padre [X.], na altura com 30 a 40 anos, na igreja paroquial e no agrupamento de escuteiros que frequentava. Foi vítima de exibição de zonas genitais, manipulação de órgãos sexuais, toque de outras zonas erógenas do corpo e/ou beijos nas mesmas zonas, masturbação e sexo oral. Os abusos prolongaram-se com regularidade durante um ano e meio. Dez anos depois dos abusos, contou a um padre amigo a situação, que o encorajou a falar com a Comissão Independente.

Esse serial killer pedófilo abusou de… pelo menos 100. Mais até, imaginem os anos que ele andou nisto até fugir para vendedor. Abusava. Dizia que eu tinha um órgão muito grande e que o queria vez, mexer, chupar. Horrível. Esse homem de nome Padre X. chegava-se a todos os rapazes escuteiros da zona e naquela época — anos 90.

Quantos terão sido? Do meu agrupamento, embora de reações diferentes, penso que fomos todos sem exceção, pois mais tarde vários entre nós falámos disso, embora cheios de dificuldade. Se eu disse 50 é pouco. Cem é de certeza mais próximo — até porque, depois, o psiquopata foi para outro agrupamento mais perto de Lisboa.

"Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me, perguntava-me se eu já pecara. Vivi sempre sobressaltado. Tinha medo porque era pecador e ia para o inferno."
Homem nascido na década de 50 e abusado num seminário do interior do país

“Mandava-me ir buscar rebuçados quando tivesse maus pensamentos. Um dia consegui 26”

Homem nascido na década de 50 e abusado num seminário do interior do país

Só aos 21 anos desabafei sobre as coisas que me aconteceram no Seminário.

A minha família é muito católica. Os meus pais tiveram 11 filhos, sendo que 4 já morreram.

O meu pai veio para Lisboa fazer a tropa. A minha mãe vem ter com ele e aluga um quarto onde vivemos até aos meus 6 anos. Nasci em Lisboa nesta casa onde não havia nem água, nem luz. Vivíamos perto dos Jerónimos e sou lá batizado. Íamos à missa todos os domingos. Eu tinha um fascínio enorme pelo padre Alberto Neto que celebrava as missas. Já morreu. Queria imitar a sua voz, era um fascínio. Imitava-o nas brincadeiras com os irmãos e primos. Os meus pais viam em mim a vocação para ser padre. Era assim nas famílias numerosas.

Aos 10 anos vou então para o Seminário em X, era uma forma de dar menos despesas aos meus pais, que viviam muito aflitos. Era uma aparente vocação. O padre B era o perfeito da camarata e engraçou comigo.

Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me, perguntava-me se eu já pecara. Vivi sempre sobressaltado. Tinha medo porque era pecador e ia para o inferno. Mandava-me ir buscar rebuçados cada vez que tivesse maus pensamentos! Houve um dia em que consegui 26 rebuçados. Quando ia ao seu quarto buscar, ele apalpava-me todo e metia a língua toda! O padre X era o que vinha à Igreja A dar a missa à RTP. Ele começava por dizer letras e eu palavras com asneiras, claro…

Até que comecei a pedir para me confessar com outros padres para não ser sempre o mesmo, só que às tantas todos sabiam dos meus pensamentos e da minha vida. Através de um amigo, chegou aos ouvidos do vice-reitor que me deu um chapadão e fui expulso por más companhias. No Seminário as coisas extrapolaram para outras coisas, relação pedófila. Na Páscoa chegou o postal a dizer que ia ser expulso. Desgosto enorme para os meus pais.

Puseram-me a trabalhar, mas, não conseguiram. Fui parar a Leiria a um refúgio para infância desvalida. Eram 20 rapazes órfãos. Estava lá o Frei W. Era bem pior porque era sádico, porco, muito mau. Não aprendia nada. Tinha modos por ter andado no Seminário e por isso no meio daqueles rapazes, era eu que acompanhava o Frei W. Um dia, fui com ele a casa de um bem feitor e durante a noite disse para dormir com ele. Ia rodando entre os rapazes. Deitava-se e adormecia. Acordava com o pénis dele entre as minhas pernas e todo sujo. Depois dizia, agora tens que te ir confessar. Sentia muita culpabilidade. Atolado em pecado. Não contava nada na confissão, sabia lá!! (…)

Só contei isto à mãe das minhas filhas, e depois a um amigo ou outro, aos meus pais contei num almoço, já com 21 anos. Tive dúvidas se iriam acreditar. Aos 15/16 anos deixei de ser sacristão na igreja de D. Adolescência muito complicada e revoltada. Fui vítima de bullying. Tinha tanta raiva de mim, que me batia a mim próprio. Achava que devia ter denunciado tudo. A culpa, a vergonha faz encolher tudo para dentro. (…) ”

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“Penso onde andará esse tarado, pois em qualquer sítio fará mal a outros”

Homem nascido na década de 80, abusado numa viagem de finalistas do 2.º ciclo organizada pela escola particular que frequentava, no interior Norte . Tinha então 12 anos e, durante a noite, foi vítima de abuso violento por parte do padre que os acompanhava — o professor de Religião Moral e Católica

Sei que ele ainda é vivo mas já não trabalha naquela escola, mas penso onde andará esse tarado pois em qualquer sítio ele fará mal a outros. Nunca me esquece que o X não aguentou e uma noite chegou a meio da noite e vinha a chorar a chorar e estava sentado na cama dele no nosso quarto. Ele não disse nada e eu também não contei que já tinha sido vítima disso na noite anterior, desse tarado. Então perguntei-lhe se ele tinha medo e ele a chorar disse que sim e eu disse lhe para ele se deitar na minha cama e assim dormíamos os dois e adormecemos, mas ele demorou tanto tanto a parar de chorar.

Não sei descrever mas isto foi no verão do ano 2000 e nós estávamos de viagem de turma e estávamos ali sozinhos, longe de casa e dos Pais e não havia nada nem ninguém a quem contar e só nos consolamos um ao outro e desculpem pois agora estou a chorar que escrevo isto e não sei mais dele. No final dessa viagem acabamos a escola, separamo-nos e eu nunca mais o vi , soube que ele partiu com os pais para a emigração. Sabem o que penso, onde andará ele? E se um dia isto for com o meu filho, fdp do padre?

Esta história eu nunca contei a nada nem a ninguém.

Sou tímido e guardo muito para mim.

Penso neles, e o A como é que ele aguentou duas vezes? Será que ele lhe fez igual a mim? E pior ao AB? Ou era este mais frágil e aguentou menos a situação? E por que nenhum de nós disse aos outros e ali ficamos todos em silêncio uns para os outros depois de ele nos ter despido, tocado, sugado, mexido até atingirmos o fim, perverso.”

Vítimas tinham em média 11,2 anos e 14,7% dos abusos ocorreram no confessionário: os números do relatório da Comissão Independente

“Não consigo ter namorados. Tenho medo que queiram fazer coisas para fazerem sentir porca”

Rapariga nascida na primeira década do século XXI e abusada num confessionário. No 7.º ano de escolaridade, com 12 anos, confessava-se com alguma regularidade enquanto andava na catequese. Várias raparigas juntaram-se e contaram à chefe sobre os abusos de que sofriam. A chefe acreditou nos relatos 

“O Padre fazia-me perguntas porcas no confessionário. Obrigava as miúdas a falar de coisas porcas. Ele não tocava nas raparigas, mas perguntava se nos masturbamos, se enfiamos o dedo, se pensamos em fazer amor”.

O mesmo acontecia com “muitas moças dos escuteiros e da catequese”.

Várias delas juntaram-se e contaram à chefe, que acreditou no relato das jovens. “A chefe disse para não nos irmos confessar mais e que os chefes iam falar com o bispo. Não aconteceu nada. Nada foi feito: Nenhuma. Os escuteiros foram expulsos e o padre ainda lá está e eu sei que faz o mesmo. Fiquei com muita vergonha e com pesadelos. Tenho muita vergonha ainda e acho que sou suja. Não consigo ter namorados porque tenho medo que me perguntem coisas ou queiram fazer coisas para me sentir porca. O padre meteu muita vergonha e perguntava coisas como se fosse maluco e arfava e gritava com as raparigas. Ameaçava com o diabo.”

Leia na íntegra o resumo do relatório final sobre os abusos na Igreja

O padre mostrou-lhe os dentes de uma caveira. Depois os seus

O quarto caso é o de Guillaume, um turista francês nascido na década de 70 que foi abusado na Capela das Relíquias, no interior do país, quando estava em Portugal de férias com os pais e o irmão mais novo. Contactou a Comissão e foi entrevistado por Zoom num sábado de manhã. A entrevista foi interrompida a meio porque Guillaume entrou num choro compulsivo. Ana Nunes de Almeida, socióloga da Comissão, contou esta história em discurso indireto

Capela das Relíquias M, nascido na década de 1970 «Je ne me sens pas très bien… quelque chose qui ne va pas»

Tinha então 16 anos e, como muitos turistas, visitava com os pais a capela na igreja. Ao saírem, dirigindo-se para a porta, viu alguém que identificou como um padre a chamá-lo com a mão. Tivera uma educação católica e, para ele, os padres eram pessoas em quem se podia confiar, sério. O padre tinha uns 60 anos. Levou-o para o fundo da igreja e mostrou-lhe uma Virgem, cujo olhar parecia acompanhar o seu. Achou mágico.

Depois, levou-o para a capela — sempre a falar português e com gestos — para lhe mostrar outras coisas. Só os dois. Mostra-lhe os dentes de uma caveira e depois os do próprio padre. O pároco começa a acariciar-se nas calças, sempre a olhar para Guillaume, que nota que o padre tem uma ereção. “Não me sinto muito bem, alguma coisa não está bem”, terá dito o rapaz em francês.

Guillaume dá-se então conta de que está sozinho com o padre, que se coloca atrás de si. A um dado momento, surge um outro homem que interpela o padre. Este começa subitamente a falar em francês e pergunta a Guillaume se o pai estava com ele. Começa a enervar-se e repele-o, ordenando-lhe que saia.

Guillaume sai da capela, entra na igreja completamente vazia e encontra a porta fechada à chave. Fica aterrorizado. Alguém por trás de si abre então a porta e fecha-a de novo à chave. Encontra no exterior os pais perturbadíssimos, preocupados com a sua ausência e diz-lhes que esteve com um padre. “Ele fez-me umas coisas”, disse Guillaume. A mãe desvalorizou e ralhou-lhe: “Que mania tens de fugir. Assim ficas a saber que não deves afastar-te dos pais”.

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“Estava ele agora no chão como um animal e o padre por trás”

A vítima é um homem nascido na década de 40 que foi abusado numa pequena paróquia no norte rural. É um testemunho indireto, prestado pela irmã. O padre deveria ter cerca de 40 anos e visitava a casa da família depois da morte do pai, para dar apoio à mãe. Não esteve muito tempo na paróquia

“O meu irmão faleceu agora. Ora, eu penso que ele nunca contou nada do que eu vi — e o que eu vi não foi bonito. Não posso eu ir para o outro mundo, falecendo a carregar comigo este segredo.

Uma vez, na casita, eu estranhei. Quando fui lá espreitar, estava o meu irmão, coitadinho. Ele era muito bonito e perfeito, branquinho de pele. Estava ele despido, de calças e roupa de baixo, e o padre assim meio que no chão a por o sexo dele na boca. Nunca tal tinha visto na vida. Dantes, essas coisas não se viam.

Parecia tudo a passar muito rápido, pois fugi com o olhar. E quando voltei a olhar, estava o meu irmãozito — coitadito dele, o que ele sofreu. Sei lá eu o que aquela alma deve ter sofrido. Estava ele agora no chão como um animal e ele, o padre, por trás a enfiar-se nele. E ele aflito, de lágrimas de chorar.

Peço desculpa, já não consigo contar mais. Espero que chegue para saberem que foi tudo verdade. Ele [o irmão] detestava padres, tanto que disse que, quando morresse, não havia de querer nenhum. Que o deixassem ir em paz. Assim foi, quando faleceu agora há pouco tempo”.

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“As palavras suaves do padre, as festas na mão, na cara, nas costas e, a seguir, dentro das minhas cuecas”

História de abuso sexual de meninas num colégio de freiras contado por uma mulher nascida nos anos 60, abusada na preparação para a Primeira Comunhão

“Quando nos estávamos a preparar para a Primeira Comunhão, na disciplina de Religião e Moral, a nossa turma de 28 alunas dividiu-se em grupos de 10. O meu grupo foi para a capela, onde ficámos sentadas nos bancos à espera. [Havia] um arco à frente e, por trás desse arco, do lado esquerdo, o confessionário escondido.

À medida que duas, três ou quatro colegas voltavam para os seus lugares, vinham coradas e nervosas — para mim, estranhas. Quando chegou a minha vez, percebi porquê: as palavras suaves do padre, as festas na mão, na cara, nas costas e, a seguir, dentro das minhas cuecas. E sempre com palavras suaves.

Senti-me mal. Aquilo não era normal. Era esquisito, falso e desconfortável. Comentei não me lembro com quem no meu grupo de colegas e passado algum tempo, talvez duas horas, não tenho bem a noção, a madre chamou-me ao quadro e, diante da turma, diz que eu sou uma mentirosa, pecadora; e que devia ser castigada.

Mandou-me ir à cozinha buscar uma colher de pimenta em pó, com a nota de que não deixasse cair nem um bocadinho. Cheguei à aula com a colher cheia. Fez-me engolir tudo de uma vez diante da turma inteira, porque era uma pecadora e mentirosa que tinha de ser castigada em público. Ainda sinto a sensação de quase morrer asfixiada com a pimenta na garganta, nariz, pulmões, olhos e ouvidos. Senti-me violentada pela segunda vez no mesmo dia”.

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“Sabia que era algo de mau, que não queria, que não devia acontecer”

A vítima é uma mulher nascida na década de 80 abusada nos espaços privativos do padre. O pároco, com 50 a 60 anos na altura da prática dos abusos, era o diretor do coro numa aldeia muito pequena. Era também uma pessoa da confiança da mãe e catequista na paróquia 

“Não me lembro do princípio, nem do fim. Sei que frequentava o 1.º ano do ciclo e pertencia ao coro. A casa ficava ao fim de uma rua escondida, onde não havia ninguém. Ele ia buscar-me a casa porque eu cantava e havia os ensaios do coro que ele dirigia. Era essa a desculpa.

Depois, íamos para a sua casa. Durante mais ou menos três horas via televisão, lanchava e depois, sentada no sofá, começava a tocar-me. Nunca foi penetração — só uma vez encostou o pénis ao meu corpo. Despia-me, mas não totalmente. Baixava as cuecas, mexia-me e masturbava-me.

Não me lembro como terminou. Mas talvez o facto de eu ter ido estudar para outra escola para fora da aldeia tenha sido a causa. Não me lembro do último dia. A última imagem de que me lembro é de eu própria a masturbar-me.

Até ter contado, e agora a fazer psicoterapia, percebo o sentimento de culpa que senti e que me impediu de o fazer. Sentia que o que me acontecia era por minha culpa e que era errado. Sabia que era algo de mau, que não queria, que não devia acontecer. Mas não me lembro de ser ameaçada. Sentia-me culpada. O padre amigo a quem contei, em 2016, aconselhou-me a ligar-vos. Já na altura do caso Casa Pia congelava quando ouvia as notícias”.

“Comigo nunca foi mais do que isso, mais do que as mãos e as pernas”

A vítima é um homem, nascido na década de 1970, que terá sido vítima de abusos pelo seu orientador espiritual num seminário no centro litoral do País. Conta também o caso de um outro colega seu a quem teria acontecido ainda pior

No 8º ano, quando chegámos a X, disseram-nos que passaríamos a ter um Diretor Espiritual, que foi, primeiro, o Padre A, com quem continuo a falar, porque entretanto passou a ser pároco dos meus Pais. No 9º ano esse Director Espiritual passou a ser o Padre B e é sobre ele que quero falar. Chamava-se B e já morreu em 2007. Uma vez por semana íamos falar com ele para orientação espiritual, num quarto que ficava num dos corredores do 1º andar. Ele sentava-se numa cadeira de frente para a porta que se mantinha fechada e eu ficava noutra cadeira, em frente a ele, de costas para a porta. Cadeiras muito próximas, demasiado próximas. Mal fazia perguntas — e eu não recordo nenhuma — a mão dele pousava nas minhas pernas e as pernas dele ficavam entre as minhas. E ele agarrava-me, mantendo-me encostado às pernas, ao peito, às mãos que me apalpavam.

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Comigo nunca foi mais do que isso, mais do que as mãos e as pernas, do que o hálito e a respiração, do que os silêncios e os assuntos que eu não recordo, do que as respostas que eu não sei se dei. Mas alguém um dia contou que o Padre B tinha surpreendido o S nú, a masturbar-se, no quarto. Eu achei estranho — o que estaria o Padre Domingos a fazer no quarto de um aluno? Mais tarde achei que talvez, no fundo, eu soubesse o que estava por trás daquela história que tinha outros contornos que a vida adulta me fez juntar à história: o S, sempre triste e o mais frágil de todos os colegas, parecia quase não existir.

Quando o meu Pai nos ia buscar à sexta-feira, para virmos a casa de fim-de-semana, dava-lhe boleia até uma casa suja e muito pobre no meio do pinhal, em V. Nunca mais o vi depois de sair do Seminário. Um dia, perto do Natal, o C — que, para além de meu colega de turma, era meu parente e conterrâneo e ainda hoje é meu amigo — perguntou-me se eu gostava de ir falar com o padre B, se não achava que ele abusava na distância e se ele também me apalpava. Ninguém imagina como aquela conversa foi, para mim, redentora. Fiquei francamente aliviado, até feliz por perceber que mais alguém pensava o mesmo que eu e decidimos, os dois, naquele dia, que não voltaríamos ao quarto do Padre B. E não voltámos.

Os outros Padres nunca nos perguntaram porque faltávamos aos momentos de orientação espiritual — eu acho que, no fundo, sabiam, ou pelo menos desconfiavam que algo estranho se passava. Eu fui suficientemente resolvido, mas também bastante insensível, porque me desliguei do assunto. Não queria pensar nisso, não queria saber de nada. Para mim ficou resolvido faltando e eu não suportei mais ouvir falar daquele assunto — fugia e não quis saber quem continuava a reunir com o Padre B e quem, como eu e o C, faltava. Um dia o Padre B cruzou-se comigo no claustro do rés-do-chão, pôs-me a mão no ombro e começou a andar. Eu acompanhei-o. Havia sempre gente no claustro e eu senti-me seguro.

Perguntou-me se eu estava bem, falou-me do meu feitio temperamental, disse-me que sabia o que se passava comigo — que muitas vezes eu me deixava levar por esse feitio e tinha atitudes irrefletidas. Sugeriu que voltasse a falar com ele, como antes, para que me pudesse ajudar nessas inconstâncias. A conversa pareceu-me estranha, eu senti-me incomodado e não tardei a livrar-me dele. Algumas vezes ele orientava o terço que era rezado numa caminhada em torno do claustro — eu ficava para trás e escapava-me na primeira oportunidade.

“Sentia-se bem com as carícias; por outro, achava aquilo estranho”

Nascido na década de 60, M residia com a família na vila onde se situava o seminário menor. A relação com o padre começou aí, prolongou-se pelo seminário maior e chegou mesmo à Universidade. A família se não sabia, desconfiava, mas aceitava

“Havia as camaratas, dos pequenos e dos grandes, onde tudo começou. A camarata dos pequenos tinha 20 camas alinhadas em cada parede, face a face, e as camas eram separadas por divisórias muito baixas. Já as camaratas dos mais velhos tinham a mesma disposição, mas as divisórias eram de madeira e iam quase até ao teto, o que dava uma maior privacidade”. Portanto a primeira vez que “alguma coisa aconteceu” foi durante a ronda da noite de um padre de quem ele gostava muito (“a estrela da companhia”, muito afetuoso, cuidadoso, tocava guitarra com os miúdos).

Declarações de Marcelo e do bispo Manuel Linda levaram cerca de 20 pessoas a contar os seus casos

O padre começou a beijá-lo e, após esse primeiro beijo, sentiu “estranheza» e “foi confessar-se”. Lembra-se de “ter pecado” — mas não se lembra da confissão. Depois, passa a ir ao quarto do padre, onde trocam beijos, carícias, mas nunca é violado. Em férias, voltava ao seminário para se encontrar com o padre. Uma vez deitou-se, e “houve toque nos genitais, sexo oral”. Sentia uma relação ambígua perante a situação: por um lado, sentia-se “bem com as carícias; por outro, achava aquilo estranho”.

Houve entretanto um episódio estranho de que se lembrava: no 5.º ano, dormia ainda “na camarata dos pequenitos”, levantou-se sonâmbulo, agarrou na roupa suja e foi ter ao quarto do padre. Só se lembra de ter acordado na cama dele. É o próprio padre que lhe contará esta situação mais tarde, numa carta que lhe escreve — em plena crise de consciência, a pedir desculpa e a dizer que ele próprio fora vítima do mesmo. Ainda neste seminário menor, houve uns pais que descobriram que “um padre se metia com o seu filho”, fizeram queixa e “toda a gente ficou a saber que o outro padre se metia”.

No 9.º ano, muda para o Seminário Maior da mesma vila. Voltou a ter contactos sexuais com o padre (duas ou três vezes), aliás como aconteceria ainda no 1.º/2.º ano da Universidade. Alguma vez contou aos pais? Nunca lhe ocorreu. “Desconfio que desconfiavam”. As pessoas naquela altura desvalorizavam, “achavam que fazia parte” e “o poder sobre as consciências da estrutura católica é brutal”. “Toda a gente sabe tudo”.

Os pais eram muito católicos, pertenciam a movimentos de casais e a própria vítima esteve muito tempo envolvida num movimento católico, onde foi muito feliz e do qual se começará a afastar mais tarde, porque se foi descobrindo gay e se sentiu olhado de lado. Para além daquela primeira confissão, a vítima contou o que lhe sucedeu a três sacerdotes, fora da confissão. Mostraram-se todos surpreendidos e muito compreensivos, convencendo-se de que acreditaram nele. Mas na prática nada foi alterado.

“O diretor disse que eu precisava de proteção. Foi a primeira violação”

Homem nascido na década de 60 que foi para um colégio católico nas ex-colónias portuguesas. Foi violado pelo diretor, fugiu, a mãe obrigou-o a voltar e voltou a ser violado. Nunca mais recuperou, e precisou sempre de aconselhamento psicológico

Fiz o ciclo numa das antigas colónias portuguesas. Meu pai era militar mas morre nos anos 60, eu tinha 3 anos e é por isso que tudo acontece. A minha mãe não tinha dinheiro para nos sustentar (em África), onde morava não havia colégios internos para rapazes. Só para 228 raparigas, então, as minhas irmãs vão e eu tenho que ir para a capital a 500 km de casa quando tinha 5 anos. O colégio chamava-se D, católico. Tudo gerido por padres. Uma semana depois de chegar, um padre que era o diretor disse que eu precisava de proteção. Por ser novinho. Era um padre português, sim. Nessa proteção eu tinha que fazer o que ele queria que eu fizesse. Foi a primeira violação.

Não aguentei e fugi para casa de um familiar que eu tinha lá perto e lembro que decorei o caminho num fim de semana que lá estive a passar com familiares. Eu não contei nada, só dizia que não queria voltar. Mas obrigaram-me. Quando voltei o padre usava daquelas chaves antigas com uma grande argola e deu-me com a chave na cabeça de castigo por ter fugido e leva-me à força para o quarto, agarrando-me com toda a força e viola-me pela segunda vez. Com penetração também. Eu pensei, “não posso ficar aqui,!”

Desta vez já não fui para casa do primo. Estive na estação de baixo de um banco até à hora da camioneta que ía partir para a cidade da minha mãe a 500 km de distância. A minha mãe deu ordem para pagar a viagem quando cheguei. Devem ter telefonado, não me lembro bem. Naquela altura uma criança de 5 anos a fazer uma viagem daquelas sozinha era uma coisa inédita e quando cheguei tinha a cidade toda à minha espera. Não sei se a minha mãe se apercebeu da gravidade porque só passados 27 anos é que consegui contar. Minha mãe era muito católica.

Da “relativização” à “ocultação” dos abusos. As críticas da Comissão Independente à atuação da Igreja Católica

Nunca mais voltei para aquele colégio. Fui fazer a escola noutra aldeia. Tornei-me muito agressivo. Adolescência muito sofrida e solitária, poucos amigos. Mais tarde fui para os escuteiros, só para fazer mal aos padres. Mais tarde eu e a minha mãe fomos para a capital, e as minhas irmãs mais novas foram para a chamada Metrópole, estudar num colégio quando rebenta a guerra.

Tive uma mulher, mas aos 45 anos separei-me apesar de nos darmos bem. Ela é estrangeira E tivemos uma filha. O meu psicólogo fez me entender que nem todos os padres são culpados. Mas até hoje não consigo. Não consegui ir a Roma com a minha mãe.

Não deixei que me tocassem para fazer o exame da próstata. Aos 8 anos fui sacristão e na altura da Páscoa andava pelas ruas com o sino e com um saco onde as pessoas depois de irmos às suas casas, iam pondo dinheiro. No fim roubava o dinheiro e roubava crucifixos para dar à minha mãe. Lembro-me de acordar durante a noite a transpirar, aos gritos. Quando passava à frente do Colégio tremia com medo. Sempre fui uma pessoa muito só. Isto é muito traumático. Muito amargurado! Foi depois de ouvir um programa da Xuxa onde ela contou que foi abusada que percebi que era bom falar, para se libertar. Sinto culpa por não ter conseguido fugir daquilo. Ele disse; “se fugires os chineses vão te apanhar e pôr no túnel”.

A minha ex mulher quis batizar a nossa filha e eu não colaborei em nada, nem nas reuniões e entreguei o envelope para pagar ao padre sem o dinheiro! Sempre me fez impressão estes assuntos da pedofilia. Sempre me apeteceu proteger as crianças. Foram muitas crianças eram muitos dos 4 aos 14 anos mais ou menos. Muito mais de dez. Isto não pode acontecer a crianças desprotegidas! Pedir perdão, com certeza que sim!

Nunca quis ter filhos porque passei pelos maiores horrores

A vítima é uma mulher, nascida na década de 70. Era violada pelo padre na sacristia. Eram as freiras que a levavam até ele. A mãe não só não acreditavam como dizia que ela era a culpada e era mentirosa. Chegou a deixá-la 3 dias sem comer

Entre os 5 e os 10 anos, num orfanato, fiz ali a primária. Havia mais de 300 raparigas. Foi abusada pela primeira vez aos 5 anos, pelo padre que era “o Dr X, mais ou menos com 40/50 anos, era gordinho. (…).

Tudo isso acontecia no quarto do padre ou na sacristia, uma vez por semana, ao longo de anos. “Com a conivência das freiras”.

As palavras antes e depois dos abusos. Como a Comissão detetou “padrões” no comportamento dos padres abusadores

Nunca quis ter filhos porque passei pelos maiores horrores não me sendo permitido ser criança. Acordava às 5h da manhã, e punham-me a tomar banho de água fria, porque fazia xixi na cama. Maus tratos terríveis. Mas as freiras são piores, como é possível? Maus tratos, violência física e emocional. Isto é que me fez testemunhar. Não tinham qualquer empatia por aquelas crianças. Quando contei à minha mãe, ela não acreditou e ainda pior, disse que eu era culpada!

O companheiro da minha mãe também abusou de mim, aos 13 anos. Um dia, peguei numa faca e estive quase a cometer um crime. Senti-me ferida, dorida e aos 15 anos a minha Mãe disse para eu me ir embora. A namorada do meu irmão foi a minha família. Ajudou-me muito! Fui trabalhar, aluguei um quarto. A minha mãe fazia de mim criada e dizia com pena “porque saíste uma menina!”.

Procurei ajuda quando falhou o meu primeiro casamento, tinha 28 anos. Tinha uma raiva muito grande dentro de mim! Mas não sabem ajudar, nem os psicólogos nem os psiquiatras. Diziam-me coisas inacreditáveis. Não sabem, não sentiram, usam chavões que não servem de nada. As notícias sobre este tema não mexem comigo. Não. Tenho 50 anos e já me reinventei várias vezes. Tentativas de suicídio sim, também. Da primeira vez que vocês quiseram falar comigo estive internada 3 meses. Sou muito só. Na pandemia perdi emprego. Estou à procura e não é fácil nesta idade.

Afastei-me do meu irmão porque ele é filho do meu padrasto e o clima era mau, como pode calcular. Só quero trabalho e mais nada… Estive em Londres como consultora. Agora tenho que arranjar trabalho, nem que seja numa loja, porque tenho que pagar casa.

Nas relações sofro muito e não correm bem porque tem de ser como eu quero. Não tolero que me levantem a voz. Tem de se ter um dom para estas coisas. A pessoa com quem falei ao telefone teve esse dom e cuidado. Foi a única pessoa até hoje que disse que eu não era culpada pelo que me aconteceu! Disse naturalmente, sentindo o que estava a dizer e não como um chavão. Só queria então dizer, para terem atenção às freiras de uma crueldade sem limites, outra é de que há poucos psis e psiquiatras que saibam lidar com isto e por último queria deixar uma sugestão.

"Os primeiros tempos, foram difíceis, muitos choros, isolamento, com agravante de que era uma criança, muito tímida, (ficava com o rosto encarnado quando falavam para mim). Em consequência, os medos, apoderam-se da minha existência, me tornaria vulnerável, para os mais velhos."

Foram os tempos terríveis da minha infância: penúria, violações, vexame

Homem nascido na década de 1950. Os abusos aconteceram numa instituição de acolhimento de rapazes, à mão de colegas. Os responsáveis ignoraram as violações. Que ele também nunca denunciou, mas que eram conhecidas 

Estava na década de 60. Por razões sociais e miséria, ausência de pais. (…) A incapacidade familiar de assegurar a sobrevivência de muitos irmãos. Eram tempos de fome, era uma criança, perdida, abandonada numa sociedade. Um dia em setembro início de outono. O sr. Reitor, responsável pela Paróquia de A, sem qualquer questão, me conduz no seu carro, com destino à “Instituição”, em B. Fui Recebido, pelo Sr. Padre X, (Falecido), responsável pela Instituição. Somente Rapazes, de diversas idades. Oriundos, também da miséria social.

Os primeiros tempos, foram difíceis, muitos choros, isolamento, com agravante de que era uma criança, muito tímida, (ficava com o rosto encarnado quando falavam para mim). Em consequência, os medos, apoderam-se da minha existência, me tornaria vulnerável, para os mais velhos. No mesmo ano, com 12 anos, num dia de primavera, sou abordado por um rapaz, mais velho . (…) Tínhamos saído do terço, esperamos para entrar para o jantar, (demorava algum tempo, entre 10 a 15 minutos), estava a escurecer. Olha para os sapatos/botas, estavam danificados. Repreendeu-me, pela situação dos mesmos e de que poderia ser alvo de castigo, tendo-me sugerido ir com ele (..) Chegados, este me obriga a descer os calções e cuecas, rapidamente introduz o pénis, no ânus. depois de se satisfazer, mandou-me rapidamente embora. Sem os sapatos/botas e para não dizer nada a ninguém, senão sofreria as consequências.

Os dias seguintes, foram dias, de muito sofrimento… No mesmo ano, no Verão, um rapaz mais velho, de apelido X (…). No campo, me convidou ir com ele encima do trator. Ali chegados a uma adega, com violência me obriga, a baixar os calções e cuecas. E rapidamente introduz o pénis no ânus, ali esteve algum tempo, até se satisfazer. Enquanto sofria… Na verdade. Estes foram os tempos terríveis da minha infância. Onde toda a miséria se abraçou em torno, da minha existência de criança: Penúria, violações, vexame. Dizer que nunca denunciei no tempo estas violações, por vergonha, e a própria instituição, aquele tempo, ignorava e existia um clima de impunidade, medo, castigos. Constantemente. Lembro-me que um dia fiz “ xixi na cama” e o chefe me bateu com um pau nas plantas dos pés, e me obrigou a tomar banho de água fria, isto no inverno. Foi terrível, ainda hoje, pareço sentir essa dor física. Nunca confessei ou abordei com alguém, este assunto de violação, violência atroz da minha infância. Embora a minha médica de família, alguns anos atrás, tenha suspeitado, das violações em criança. Mas sempre disse que não era verdade.

“O silêncio devia ser a base do vosso trabalho”; “Pregoeiros”; “A vossa conferência feriu-nos”. As duras críticas de três bispos à Comissão

Tenho vivido este sofrimento em silêncio, revolto-me contra o mal que o homem, consegue fazer a uma criança. Às vezes apetece-me ir à procura do homem, que me afanou psicologicamente a minha existência. Mas essa luta seria tempo perdido, por não saber do paradeiro. Hoje vivo, numa teia psicológica: de fobias sociais, medos, irritabilidade, ansiedade, instabilidade, períodos de depressão, na minoração, do sofrimento, a minha médica me vai receitando, os químicos. E o caminho da vida vai-se fazendo desta forma.

Havia geralmente um rapaz especial, que merecia do Padre uma proteção especial

Abusos que aconteciam numa instituição de acolhimento de rapazes cometidos por um padre que teria sempre um preferido

O preenchimento deste questionário baseia-se no testemunho desse e de outros rapazes que acompanhei na instituição, enquanto colaboradora, na primeira década do século XXI. Tem bastantes lacunas, mas procurei partilhar toda a informação de que disponho sobre o assunto. Houve duas ou três conversas sobre estes abusos. Aquela que melhor recordo ocorreu num Verão, na sala onde trabalhava, onde me encontrava reunida com um pequeno grupo de rapazes, que me comunicaram a saída do Padre X, então diretor da instituição. O rapaz que me fez o relato mais consistente chamava-se A tinha cerca de 15 anos na altura, frequentando o 8º ou 9º Ano. Outros rapazes corroboraram o seu relato, inclusive um rapaz chamado B, um pouco mais novo.

Segundo estes relatos, o Padre X, responsável pela instituição, teria sido chantageado por antigos rapazes (alguns fora do País), que lhe exigiam dinheiro em troca de manterem silêncio sobre abusos sexuais cometidos pelo Padre contra eles. A cedência a esta chantagem teria esvaziado os cofres da Casa, que se encontraria falida. A situação teria sido tardiamente detetada pela direção, que teria tido de intervir (na pessoa do então diretor, Padre Y) e afastar o Padre X. Desconheço a veracidade dos relatos. Sei que eram consistentes com os acontecimentos e ambiente institucional de enorme tensão e instabilidade que se vivia nesse Verão “quente”.

O Padre X, que vivia há vários anos em permanência na Casa, desapareceu abruptamente de um dia para o outro, sem despedida, e o Padre B mudou-se para a Casa, assumindo pessoalmente a sua direção. Nunca falámos abertamente sobre a situação, mas percebia-se que vivia em grande sofrimento. Ao fim de algum tempo, a diocese assumiu a direção da Casa, enviando uma nova direção. Após esse Verão, passei a colaborar apenas como voluntária ao fim de semana, para manter alguma relação com os rapazes. No seu relato, os rapazes contaram que os abusos cometidos pelo Padre X ocorriam à noite, depois do jantar, quando se reuniam numa das camaratas (aquela que era também partilhada pelo Padre, conhecida como “a camarata do Senhor Padre”).

Segundo contaram, havia contactos impróprios com os rapazes, por iniciativa do Padre, sob as mantas com que se cobriam no sofá em frente à televisão. Os rapazes contaram que havia geralmente um rapaz especial, que merecia do Padre uma proteção especial. Nessa época, seria o “N” (sei apenas a alcunha), um rapaz de 15 anos. Os rapazes manifestavam algum ciúme, diziam que era “o filho do Padre”, que o Padre fazia tudo o que ele queria, que numa viagem à EuroDisney o Padre o tinha escolhido para dormir no seu quarto, e que muitas vezes dormia no quarto do Padre na camarata. Contaram que o N tinha sido preso, e que o Padre lhe levava à prisão tudo o que ele queria (inclusive uma televisão). Não sei aferir o grau de exatidão destes relatos. Procurei saber até que ponto esta situação tinha sido partilhada com outros adultos, e percebi que havia mais pessoas que tinham conhecimento destes relatos, nomeadamente funcionários da instituição.

“Meu Deus, quantos, quantos terão sido tocados desta forma por abuso por ele?”

Homem nascido na década de 90, pertencia ao Corpo Nacional de Escutas e participou num acampamento quando andava no 9.º ano, tinha 15 anos. Foi abusado por um padre, de cerca de 30 anos, a quem chama “o padre massagista” 

Chamava à sua tenda para nos fazer massagens após atividades e caminhadas chamava todos, quem não estaria cansado?”. No inquérito que preencheu, assinala várias modalidades de abuso de que foi vítima: exibição de zonas genitais; manipulação de órgãos sexuais; toque de outras zonas erógenas do corpo e/ou beijos nas mesmas zonas; masturbação (a si). “Era em silêncio. Ia subindo pelo corpo, das pernas, até cá acima, virilhas e ia começando a aproximar-se dos genitais onde acabava por tocar, primeiro por baixo da roupa, depois chegava a estar mais à vontade e por último já baixava a minha roupa de baixo”. “Aconteceu várias vezes durante os dias desse acampamento e houve tentativas depois”. Não foi a única vítima, como também a Comissão Independente pode comprovar através da sua base de dados. “Como disse, penso desta forma: então se foi assim comigo, se havia muitos rapazes muito mais “excitados” do que eu à época, se o homem tinha essa tara e andou nisso dos escuteiros tanto tempo, penso: meu Deus, quantos, quantos terão sido tocados desta forma por abuso por ele?”.

“Revolta por manter papel de relevo na Igreja e ser conceituado professor universitário”

Mulher, nascida na década de 70, era escuteira. Quando frequentava o 9.º ano de escolaridade, com 16 anos, participou num acampamento de escuteiros. Foi vítima de abuso por parte do seu chefe, então com 25 a 27 anos

Sente uma grande revolta “por ver que continua a ser (embora sem contacto com miúdos) escuteiro no ativo, com papel de relevo em situações da Igreja; é um conceituado professor universitário”.

Crianças de dois anos, abusos por todo o país (e no estrangeiro) e reiterados. Quem são (e como foram abusadas) as vítimas da Igreja?

“Houve alguns escuteiros que iam viajar pela Europa com ele como prémio”

De uma família de classe média, este homem, nascido na década de 70, participava nas atividades dos escuteiros da paróquia em que vivia, perto de uma grande cidade. Andava no 1.º ano do ciclo, tinha 11 anos, quando começou a ser regularmente abusado por um chefe de agrupamento, que o fotografava nu

“Era chefe dos escuteiros, por isso actuava normalmente. Costumava organizar algumas actividades só para alguns de nós. Dizia que era um prémio por sermos bons escuteiros. Geralmente era ir passear no seu barco. Houve alguns escuteiros que iam viajar pela Europa com ele como prémio”.

“A Igreja Católica é cúmplice. Muitos anos mais tarde, já nesta década, vim a saber que houve um chefe regional do escutismo que recebeu suspeitas da mesma pessoa e que abordou os padres responsáveis pelo movimento e que lhe disseram para abafar, porque só ia dar mau nome ao escutismo e à igreja. Também sei que esse chefe regional o expulsou do escutismo, mas que não teve nenhum apoio dos padres responsáveis. Até foi criticado por isso. Se não fosse este chefe regional, não sei se não haveria mais escuteiros a ser levados para o barco daquele senhor e a ser fotografados nus como eu fui”.

“Fui-me embora e nunca mais entrei numa Igreja”

Nascido na década de 30, este homem preencheu o inquérito online com a ajuda de um neto. Conta que, com 14 anos, foi uma vez confessar-se, numa igreja importante de uma cidade do Norte e o padre lhe fez perguntas “impróprias e sexuais”.

Disse: “Já namoras? Já puseste as mãos nas maminhas da tua namorada? e nas coxinhas?” (…) “Fui-me embora e nunca mais entrei numa Igreja.” Contou aos pais que lhe pediram “para não falar”.

“Nunca contei e nem ao meu marido. Só a uma amiga, já em adulta”

Esta mulher, nascida na década de 40, filha de um fiscal e de uma dona de casa, telefonou para a Comissão Independente para prestar o seu testemunho. Chorou ao falar do abuso de que fora vítima em criança, aos 10 anos, quando frequentava o 2.º ano do antigo liceu numa cidade do Norte. Aconteceu no confessionário

Quando entrava para se confessar, o padre religioso, com cerca de 40/50 anos, aproveitava-se da situação: tocava-a em zonas erógenas, beijava-a e estimulava-a “no clitóris… aquilo arranhava”. “Nunca contei e nem ao meu marido. Só a uma amiga, já em adulta, que me disse: ‘meninas pouca sacristia e mais igreja’. E confessa: “É triste pensar que as pessoas serias se aproveitavam de um ser indefeso. Sofri em silêncio… Nunca contei nada fechei em sete chaves”.

“Pedia para eu dizer os meus pecados e tocava-me em todo o lado”

Mulher, nascida nos anos 1960, filha de comerciantes, foi vítima de abuso durante a confissão. Tinha então 11 anos e o abusador era um padre “velhinho de 80 e tal anos”, muito conhecido na comunidade.

“Pedia para eu dizer os meus pecados e quando eu dizia que fiz asneiras e disse palavrões, e tocava-me em todo o lado, maminhas, punha me as mãos nas cuequinhas e tocava no pipi. (…). Tocava, tocava, Foram 5 vezes até que comecei a mentir ao meu pai e deixei de ir… aquele ordinário!!!!”.

“O padre insistia em perguntar o que eu fazia com as mãos”

Mulher, nascida nos anos 1960, filha de artesãos, foi à confissão pascal quando tinha 12 anos. O padre fez-lhe várias perguntas íntimas, cujo significado só entendeu mais tarde

“O padre perguntou-me onde punha as mãos quando ia dormir. Fiquei sempre com essa pergunta na cabeça, que não entendi na altura. O padre insistia em perguntar o que eu fazia com as mãos e depois de eu, ingenuamente, dizer que as punha na almofada por baixo da cara, ele perguntou se não arrefeciam ou ficavam dormentes e, se sim, se não as metia dentro da roupa para aquecerem. Não me lembro o que respondi a seguir, mas guardo esse episódio até hoje na minha cabeça.

Tenho 56 anos. Apesar de não lembrar o que respondi na totalidade, lembro bem o nojo, a indignação, a dor que senti quando, anos mais tarde, descobri o que ele queria saber com aquela pergunta e o que provavelmente estaria a fazer dentro do confessionário à medida que ia fazendo perguntas e ouvindo as minhas respostas inocentes. Creio que não terei sido a única vítima, pois essas confissões eram organizadas pela escola no último dia de aulas do 2º período, em plena quaresma.”

“Perguntas íntimas, inapropriadas, sobre o meu desenvolvimento”

Filha de profissionais liberais, esta mulher, nascida na década de 60, quando tinha 9 anos, e andava no 4.º ano, ia confessar-se à igreja da sua paróquia, situada numa grande cidade, onde o Padre X, com cerca de 40 anos, ia fazer confissões. Fazia-lhe perguntas íntimas e chegou a tocar-lhe

“O toque foi só uma vez, as perguntas íntimas, muitas vezes, a mim e a outras meninas da família (…) Muitas meninas, perto da idade da adolescência, eram incomodadas com as mesmas perguntas no confessionário. Como estranhávamos as ditas perguntas, na rua, comentávamos umas com as outras. Para além de perguntas como: ‘Já te veio o período?’, ‘Tens dores de barriga’, ‘Tens feito coisas feias?’, um dia fomos à confissão depois da catequese, como era habitual. Nesse dia eu vestia um vestido de alças largas e decote quadrado. Estava ajoelhada no banco junto ao padre, tinha os meus braços apoiados no apoio do banco e o padre X chegou-se bem perto de mim e com o seu dedo polegar pôs-se a acariciar a minha pele quase junto do peito que já dava sinais de crescimento.

Eu fiquei muito incomodada, senti que algo de errado se passava com aquele padre e disse à minha mãe o que tinha acontecido e as perguntas que ele habitualmente me fazia. Ela ficou admirada, disse para eu na próxima vez ir a outro padre. Acho que me disse que ia falar com o nosso pároco, Y. Porém o padre X continuou durante vários anos a fazer as confissões nesta paróquia”.

“Mandava que fizesse atos obscenos com outras crianças, nomeadamente o meu irmão”

A vítima é um mulher, nascida na década de 70 e filha de trabalhadores rurais. Ia confessar-se todas as semanas à igreja da paróquia para a preparação da primeira comunhão, a um padre catequista com cerca de 30/40 anos e com uma posição de destaque numa diocese no Norte. Era sempre abusada no interior do confessionário

“Palavras e ditos obscenos, convidando a que eu fizesse atos obscenos com outras crianças, nomeadamente meu irmão. (…) Era no confessionário, como o de muitas outras meninas da época que toda a gente sabe muito bem identificar dado que a pessoa em causa era um animal, molestador em larga escala, um monstro que nunca ninguém quis acusar dado o seu poder que por agora ainda o detém. (…)

A gente estava no confessionário e ele começava a tocar-nos pelas pernas acima até chegar bem onde queria e pelo meio dizendo obscenidades para nós e para meu irmão mais velho que estaria pelos 13 a 14 anos (…)

Por exemplo, ele sabia que o meu irmão já era rapazito crescido e disse certa vez: — ‘Sabes que as mulheres tem de aprender a tirar leite aos homens? Como se faz às vaquinhas, nas tetas’.

E não me recordo as palavras, dizia que o meu irmão era como um bicho de uma só teta (o seu órgão íntimo) e que eu fosse lá mugir… E isso eu fiz certo dia quando ele estava a tomar banho. Ele riu-se e ao mesmo tempo ficou assustado, mas eu não sabia, juro mesmo, o que estava a fazer, só dizia que o senhor padre queria que eu lhe tirasse o leite. O meu irmão ria-se e dizia-me assim: ‘Olha, tira, tira´ e aquilo lá saí, o esperma claro (…) Que me lembre aconteceu três a quatro vezes.

Certo dia, o meu irmão deve ter ganho tino e disse-me: ‘Mana, tu não deves fazer isso. Era de brincadeira, mas agora parece que estais a sério. Quem te ensinou isso?’ Eu expliquei quem era e ele aí disse: ‘Nunca hás-de voltar a fazer isso a ninguém e se ele voltar a dizer isso eu conto ao nosso Tio e vamos lá para lhe partir os cornos a esse filho da…’

Então um homem tão idoso, foi cónego em A, que toda a vida fez isto, pois pensai vocês, é uma coisa que nem imagino, centenas, centenas, centenas.”

Ocultação e poder. O que os historiadores da Comissão Independente descobriram nos arquivos secretos da Igreja

“Mas a sacristia era “sagrado” para mim”

O abuso aconteceu numa cidade da região centro com uma mulher, que à altura do abuso tinha 7 anos e frequentava o 1.º ano. O abuso terá acontecido na sacristia da Sé.

Um dia um dos padres da Sé informou que em vez de fazer o ato de Confissão no Confessionário como habitualmente acontecia o faríamos na Sacristia. E fui. Era muito nova, tinha 7 anos. Mas a sacristia era “sagrado para mim”. O padre, “não faço ideia; talvez á volta dos trinta anos” sujeita-a a uma série de abusos: mostra-lhe os genitais, obriga-a a manipulá-los e a fazer sexo oral. Aconteceu uma vez. Mais tarde, aos 14 anos, foi vítima de novo abuso nas aulas de música, por parte de um padre religioso. “Colava-se” ao meu corpo pelas costas, fazendo pressão e deixando transparecer que estava alterado. Tocava simultaneamente no meu cabelo o que era absolutamente desconfortável, eu já tinha uns 14 anos, e apercebia-me do que senhor estaria a fazer. Mais tarde soube que deixou a via eclesiástica.”

“Na sacristia, no átrio, no carro dele, em casa da minha madrinha”

Filha de emigrantes, esta mulher, nascida na década de 60, vivia habitualmente com familiares numa aldeia do interior Norte. Com 11 anos, estava no ensino básico e foi vítima de um abuso regular, que durou anos, por parte do padre

Era o padre “que dava a missa, na casa dos 30-40”, “conhecido e muito amiga” da família: “manipulação de órgãos sexuais”.

Era “sempre que tinha oportunidade”. “Na sacristia, no átrio, no carro dele, em casa da minha madrinha”.

“Sempre me senti culpada por não o revelar e evitar que fizesse isso a outras”.

“Nunca consegui ter uma relação íntima”

Filho de operários, este homem tinha 9 anos e frequentava a 3.ª classe numa cidade média do interior. Ao longo de dois anos, foi vítima de várias formas de abuso sexual. O abusador era padre, teria uns 45 anos

O abuso tinha uma regularidade bem definida: semanal, “todos os meses do ano menos julho e agosto, sábado às 15h”. O abuso termina quando regressa a casa dos pais, emigrantes 2num país europeu. O impacto na sua vida foi devastador: “Nunca consegui ter uma relação íntima não aceito ser tocado impossível vejo o sexo como coisa suja não suporto ser beijado e não gosto beijar ninguém”.

“I still be haunted by this”

Nascido na década de 60 numa Região Autónoma, esta vítima partiu em criança para a América do Norte, instalando-se com os pais e os irmãos numa grande cidade, no bairro dos emigrantes portugueses. Bem perto de casa, situava-se a Igreja da Virgem, coordenada por padres açorianos. Ele e o irmão gémeo começaram por ser acólitos e, depois, altar boys

Iam todos os dias à missa das 6h: “Os meninos tratavam da roupa dos padres, arrumavam cacifos, flores, tratavam dos círios. etc.”. Tornam-se vítimas de abuso sexual por parte de um colaborador da Igreja, aos 11 anos — Esta pessoa estava sempre na sacristia e mesmo em lugar de destaque no altar, durante a celebração da missa. “O homem andava sempre por lá, acompanhado de dois meninos”. Os abusos eram muito frequentes, “sempre que o padre se ausentava”. Aconteciam em “qualquer sítio: salão paroquial, escritório do padre, sacristia, até por trás do altar”: manipulação de órgãos sexuais (ambos), toque de outras zonas erógenas do corpo e/ou beijos nas mesmas zonas (ambos), sexo oral (ambos), sexo anal (a si). “Essas situações aconteceram a todos os meninos que ajudavam na Igreja. O padre sabia, mas nunca fez nada para afastar o homem”. Contou aos pais, não acreditaram: “Estão malucos!!”. E o pai deu-lhe “com o cinto”.

“Sentava-me ao seu colo num cadeirão e fazia movimentos”

Residente numa cidade do Centro Interior, a vítima tinha 8 anos quando o abuso aconteceu a primeira vez. Ocorria na sacristia da igreja matriz. O padre, com cerca de 40 anos, pedia-lhe para o ajudar a “cortar hóstias”

“Sentava-me ao seu colo num cadeirão e fazia movimentos. Só mais tarde percebi o que significava”. O abuso ocorria de vez em quando, até o padre mudar de paróquia.

“Conhecia-o desde sempre”

Nascida na década de 70 numa vila rural de um distrito litoral do País, tinha 14 anos na altura, estudava e trabalhava

Por ocasião das festas religiosas locais, o pároco da freguesia, que “conhecia desde sempre”, então como cerca de 60 anos, atrai-a ao auditório e sujeita-a a toques e beijos em zonas erógenas. Aconteceu uma vez.

“Deu-me uma sensação de aflição, de nojo, de repulsa, de verdadeiro asco pelo padre”

Esta vítima nasceu na década de 1970 e o abuso aconteceu com o padre da aldeia

Não esqueço o que se passou comigo quando tinha 6 anos.

Depois da catequese e com a desculpa da preparação para a primeira comunhão, o padre da aldeia onde eu morava chamou meninos e meninas à vez, para estar sozinho em sala fechada com cada um/uma. Não sei o que se passou com os outros, apenas sei que o menino antes de mim saiu da sala em pranto, mas comigo o padre sentou-me no seu colo, abraçou-me, beijou-me, acariciou-me por todo o corpo e nas partes íntimas, enquanto ele gemia e eu conseguia sentir-lhe a ereção nas minhas coxas e depois a humidade quente da sua ejaculação.

Na altura a bem da verdade creio que nem percebi o que se passou. Deixou-me uma sensação de aflição, de nojo, de repulsa, de verdadeiro asco pelo padre em questão, por toda a vossa igreja, por todos os vossos rituais hipócritas, por toda a vossa soberba mesquinha, por toda a vossa ostentação balofa, por todas as vossas mentiras execráveis, por todas as vossas atitudes que só deturpam os ensinamentos de Cristo.

Como consequência, mal pude, abandonei por completo toda e qualquer ligação à vossa instituição (…)

Hoje o padre em questão já morreu. Na morte, dou-lhe o respeito que ele não teve para comigo e para com a minha inocência aos 6 anos e não o nomeio, mas se querem realmente a verdade, coisa que reitero não acreditar nem por um segundo, aqui vos deixo o meu testemunho. O perdão será talvez o maior e mais nobre dos ensinamentos de Cristo, mas aqueles 10 minutos com o dito padre pedófilo deixaram-me para todo o sempre a absoluta certeza que o imperdoável também existe.

Abusos na Igreja. Comissão independente recomenda à Igreja uma revisão do segredo de confissão

“Durou 3, 4 anos este pesadelo!”

A história acontece com um acólito e um recém ordenado. A vítima, nascido na década de 1970, estava a passar por uma fase difícil, o divórcio dos pais, e sabe que não foi o único a ser abusado 

Os acólitos e o seminarista recém-ordenado M, nascido na década de 1970 «Muito difícil falar nisto, semana muito mal dormida»

Tinha 14 anos. Os meus pais separaram-se e foi uma separação muito conflituosa e traumatizante, eu estava frágil. Tinha integrado os acólitos nesse ano. O Bairro onde eu residia era muito pujante e dinâmico, tinha às portas o seminário, muito ligado à vida da paróquia.

Havia um seminarista com muito carisma que foi ordenado e coincidiu com o divórcio dos meus pais. Ele foi-se aproximando de mim e puxando-me para fazer coisas. Aproximação física. Começou devagar, as suas mãos primeiro, com o tempo, masturbação, sexo oral, a ele, nunca houve penetração porque não deixei. Durou 3, 4 anos este pesadelo! Dos meus 14 aos 17 anos.

Acabou porque ele foi para diácono, e passou para X, depois para Y, Z e voltou para a minha paróquia. Por onde passou, deixou estragos. Havia mais rapazes, nunca falamos disso e também raparigas. Deviam saber porque houve um dia que o cónego da paróquia substituiu o sofá por cadeiras. Na minha paróquia foram muitos acólitos, raparigas. Entre amigos falamos por piadas, mas nunca de cada um!

“A questão é porque é que ele fez aquilo?”

Homem nascido na década de 1960 abusado aos 10 anos por um enfermeiro da igreja em serviço no hospital de uma ordem religiosa quando esteve internado

Aos 10 anos, foi-me detetado um problema e fui operado num hospital infantil que recebia muitas crianças de todo o mundo e que ficavam a viver meses e anos no hospital para recuperar de coisas graves . O meu caso foi pontual e podia andar e circular pelo hospital. Havia um responsável dos enfermeiros, irmão X muito simpático, alto, prestável, 5 estrelas! Criei afinidade por ele. Tinha brinquedos, gostava de ler como eu. Só mais tarde percebi o que me fez, quando aos 14 anos me masturbei pela primeira vez! Esta é a primeira vez que conto isto! Como eu era mimado pelos meus pais e me beijavam eu achava que os beijos que me dava eram normais, mas quando começa a fazer força com movimentos sexuais e percebo que fica todo molhado, estranhei! E como dizia para não contar eu também achei muito esquisito.

Beijava sem dizer nada. Esfregava-se todo. Quando tive que voltar ao hospital ao fim de um ano porque a cicatriz não tinha ficado bem estranhei o facto daquele homem me ter desprezado, estava diferente comigo, mais tarde percebo que alguém deve ter descoberto o que se passou comigo e acredito que com mais! Havia um enfermeiro que se chamava Y e que ainda é vivo e que sabia de tudo. Outro auxiliar V também dizia umas coisa tipo, “cuidado com os padres e com as festas”! Tento viver a vida à procura de fios condutores na procura da razão disto tudo. Apesar de tudo este episódio não foi o que marcou a minha vida. A questão é porque é que ele fez aquilo? Mais do que a minha revolta. Foram 3 vezes! Eu sou pai e não percebo! É mais estranhesa do que revolta!

“O que me deixava verdadeiramente desconfortável era toda aquela aproximação física”

Mais uma vítima que quando era acólito viu o padre ter conversas intrusivas e toques demasiado íntimos 

A razão que me leva a deixar este depoimento concentra-se essencialmente nos momentos que sucediam ou antecediam as missas, sobretudo no período em que o padre aproveitava a ausência de qualquer beata ou ajudante na sacristia, para realizar as sessões individuais de confissões, numa espécie de confessionário improvisado, que não era mais que uma pequena zona fechada, que servia de passagem, entre a sacristia e a casa de banho. Era um espaço reduzido, salvo erro, tinha espaço para ter pouco mais que um armário e uma mala, onde se guardavam roupas e os panos da igreja, e uma cadeira, onde o padre se sentava. Tenho ideia de que nestas sessões eu nem sequer me sentava, ficava em pé junto do padre e quando não estava suficientemente perto, ele fazia questão de me puxar para junto dele. Era um contacto muito próximo, demasiado íntimo e desconfortável.

Ele pedia baixinho ao meu ouvido para que eu revelasse os meus pecados e a conversa ia sempre parar ao sexo. Sempre. E quando isso acontecia, ele tocava-me ao de leve com a sua mão na zona da minha genitália: “Tens-te portado bem, por aqui?”, “Não tens feito umas malandrices?”, etc. Qualquer coisa deste género. Eu respondia desconfortavelmente sempre que não. Achava aquela conversa demasiado intrusiva, mas o que me deixava verdadeiramente desconfortável era toda aquela aproximação física, porque os toques, se não eram permanentes, eram pelo menos constantes. Não me recordo de ter havido grandes avanços para além disto que relato, mas também já coloquei a hipótese de ter acontecido algo um pouco mais traumático que a minha memória tenha feito questão de limpar, para me proteger…

Estas sessões aconteciam à vez, com todos os elementos do grupo e com alguma regularidade, mas não consigo me lembrar de qual seria. Enquanto um dos acólitos estaria na sessão, os outros rapazes aguardavam na sacristia. Não havia a permanência naquele espaço de qualquer outro adulto, para além do padre. Como estávamos sempre a tagarelar uns com os outros, não conseguíamos ouvir o que se estava a passar no confessionário, no entanto recordo-me de vez em quando ouvir umas risadas que vinham de lá de dentro. Os abusos aconteciam regularmente e prolongaram-se durante meses.

“Anda, vamos fazer aquilo que gostas, não tem mal”

Esta vítima, nascido na primeira década do século XXI, foi abusado aos 12 anos de idade, ao longo de todo um ano letivo, pelo seu padrinho de batismo (familiar pelo lado do pai), jovem seminarista, que começou a dar-lhe explicações em casa para melhorar as notas da escola e conseguir passar de ano.

“A certa altura era sempre que ele ia dar explicações, duas vezes à semana, acabava sempre naquilo anda, vamos fazer aquilo que gostas, não tem mal, sou teu primo e padrinho isto é uma brincadeira, aquando estiveres com uma mulher já sabes mais que isto não é nada de paneleiro, desculpe era assim que ele explicava (…). Acabei o 6º ano e disse a minha mãe que já estava a estudar bem não era preciso explicações e também mudei de escola e acho que ele foi para outro seminário, disso dele já não sei (…)

Havia mais miúdos: não sei, ele também dava explicações ao X que era meu vizinho ao lado que tinha um irmão um ou dois anos mais velho, o Y. Por vergonha e sentir culpa, não contou a ninguém: eu deixava que ele fizesse, pensei até se será que eu gostaria daquilo, então tinha vergonha. ‘Deixa, isto não é paneleirisse, tu és paneleiro? Eu não, isto é só brincar para também te dar explicações disto’.

Foi uma tristeza. (…) Quando acontecia anal doía muito…uma vez eu tinha o treino de futebol as terças e quintas e sextas, quinta também era explicação. Estava a correr e deitei sangue pelo ânus mas não percebi e fui gozado por outro rapaz que disse olha o D tem sangue pelo cu, os outros riram se e um mais velho disse assim olha ele anda a tomar no cu (…) Aquele gaijo uso me para tudo não lhe posso dar perdão e as vezes ainda o via no Natal e na Páscoa e festas da família e ele nada, ali na boa, a rir a conversar com todos, a viver do bem e do melhor e eu, olhe, lixei me!”.

“Aconteceu algumas vezes, até eu começar a fugir dele”

Os abusos aconteceram numa aldeia rural do interior. O padre era amigo e vizinho da família

Na aldeia onde nasci, freguesia de A, concelho de B, havia um padre, X, que após uma longa missão numa antiga colónia portuguesa, se fixou nessa aldeia. Era amigo da minha família e também vizinho. Este padre faleceu há cerca de 60 anos.

Era eu uma criança de 6/7 anos e o referido padre, já idoso, se me apanhava sozinha tinha a prática de me agarrar, levantar as saias e meter uma das suas mãos pelas minhas pernas acima, encostando-me a ele e afagando os seus genitais, com a outra mão. Aconteceu algumas vezes, até eu começar a fugir dele. O padre está morto e enterrado e os crimes prescreveram. No entanto há marcas que ficam para a vida.

“Mexeu com a minha sexualidade”

Foi abusado pela primeira vez aos 8 anos pelo padre que lhe dava explicações. Os abusos duraram quatro anos

Tratava-se de um padre jovem, na casa dos 30-40 anos, considerado amigo da família, tido como muito culto e que lhe vinha dar explicações às disciplinas em que tinha mais dificuldade, bem como ajudá-lo a organizar para o estudo, “pois era distraído e desorganizado”. As explicações ocorriam no escritório da casa e aí, depois de lhe perguntar “começamos por brincar ou por estudar?”, eram praticados os abusos.

“Não imaginam, desculpem a imagem pois estudo arte, o que é uma criança em posição fisicamente mais baixa, claro, a olhar para cima e ver em cima da sua cara um pénis durante anos e anos e ter que o chupar e mexer e ver aquela coisa a crescer, peço desculpa, fico por aqui”. Por medo (de o padre divulgar a todos os seus colegas que era “um mariquitas, que era amigo de 250 um mariquitas que gosta de mexer na pi…”) nunca contou a ninguém este abuso, que se prolongou durante quatro anos e tinha um carácter regular: nos dias de semana, ao fim do dia, a hora da explicação.

O abuso teve um impacto devastador na sua vida “mas o mais importante foi o que mexeu com a minha sexualidade. Sinto-me por vezes homossexual, já repeti várias vezes ao longo da vida com outros rapazes o que esse monstro me pedia (o sexo oral indiscriminado) mas não sei, é tudo muito muito confuso ainda para mim (…). Tudo o que alguém passa nestes momentos deve ser tão horrível como o que me aconteceu.”

“Era um tarado por debaixo daquela pele”

Nascido nos anos 1960, foi vítima de abusos pelo padre quando passou férias em casa dos avós: andava no 8.º ano e tinha 13 anos

Esse abuso aconteceu “quase todos os dias ao longo de talvez duas semanas que nessas férias estive em casa dos meus avós (…) final da tarde quando ele visitar os meus avós que davam muito dinheiro para a paróquia que estava em obras (…) sim…dizia os meus avós que ida dar uma volta comigo na quinta e ensinar algumas coisas pois eu portava-me muito mal na escola e andava revoltado (os meus pais tinham emigrado nesse ano) (…) Ele já morreu, se não dizia o nome dele para o irem confrontar, penso muito em outros a quem ele pode não ter dado descanso.”

Ao passearem pela quinta, o padre levava-o para um canto e sucediam-se modalidades de abuso: “Tinha uma tara, atava-me o pénis e os testiculos com uma fio a volta, dizia que assim “tudo esprimidinho” era melhor para ficar “grosso e deitar mais” era nogento, ficava a achar que isso podia ter queimado os meus testículos”. “Dizia que era bonito demais para ser um rapaz e que o meu rabo era muito redondinho”.

Conclui: “Foi um nojo aquilo por que passei. tinha medo que os empregados dos meus avós descobrissem o meu esperma no chão, voltava depois atrás para tapar com terra, que lhe tentava fugir e ainda hoje penso, como? De um homem que se mostrava tão bom pela frente e era um tarado por debaixo daquela pele.”

“As mãos tremiam, só muito mais tarde percebi que ele estava sexualmente excitado”

Filha de uma família católica de classe média alta, nascida na década de 1950, os pais, com formação superior e profissionalmente ativos, desempenhavam papéis importantes no movimento católico português dos anos 60. Recebiam a visita de sacerdotes e religiosos ao fim do dia. Um deles abusou dela. Tinha 6/7 anos

“De vez em quando vinha cá um monge, não me lembro bem da minha idade, devia ter à volta dos 6/7 anos, não me lembro.”

O monge acompanhava-as (a ela e a outra irmã) ao quarto, bem longe da sala naquela casa grande, depois do jantar, na hora de deitar. Gostava de as ver fazer o pino contra a parede, de as ver brincar com almofadas, saltar de uma cama para a outra. Com aquelas “Camisas de noite branquinhas, com alcinhas”.

“Depois, sentado na cama, enquanto uma fazia o pino, sentava a outra ao colo, colocava as mãos nas suas pernas e virilhas. As mãos tremiam, só muito mais tarde percebi que ele estava sexualmente excitado”.

“Educação sexual na família era zero, até mesmo na adolescência”.

A idade do abusador situar-se-ia na casa dos 40-50 anos “e aquilo durou semanas e semanas. Esteve por muito tempo. Mas acabou de um dia para o outro”. Só 47 anos depois conseguiu falar disto a um psicoterapeuta.

"Da ultima vez acredito que eu possa ter mostrado alguma resistência pela minha incompreensão dos factos, e sobretudo pelas ameaças que exigiam o meu silêncio. Da ultima vez mostrou-me a faca de cortar papel que tinha sobre a secretária, em tom de aparente brincadeira, mas evidentemente com um fim intimidatório, de forma a que eu não falasse mesmo no assunto."

“Foi só uma delicadeza, um gesto de carinho, não te magoei, pois não?”

A vítima vivia numa família de classe média alta e o abuso ocorreu numa sessão de orientação espiritual de casais. Ela frequentava o 6.º ano, tinha 10 anos. Os pais nunca a levaram a sério

Quero identificar este sacerdote, já falecido: X (paróquias de A e B) e que teria hoje mais de 100 anos. Era orientador de casais e foi quem casou os meus Pais. Quero ainda referir que, nos anos 70, as equipas de Nossa Senhora ou casais acompanhados de mais perto por um orientador do clero, recebiam-nos muitas vezes em suas 252 casas, sobretudo à noite, para jantar. Era uma situação que os pais consideravam sinceramente familiar e simpática, por desconhecerem (creio eu) a índole ambígua desta pessoa.

No ambiente familiar (…), enquanto esperávamos a chegada do meu pai para jantar, o P X (cerca de 50 anos) brincava connosco e via desenhos animados, etc. No meio de nós tentava TOCAR e, uma vez apenas percebi a intenção que me repugnou: acariciar os seios por debaixo do meu pijama enquanto eu jogava. Parei, fugi para o meu quarto e ele seguiu-me, mas eu já tinha fechado a porta à chave. Falando baixinho do outro lado da porta, ele disse algo parecido com ‘foi só uma delicadeza, um gesto de carinho, não te magoei, pois não?’. Nunca lhe respondi, nem nesse momento, nem depois.

Já não jantei à mesa, não apareci mais, disse estar com uma dor de cabeça. Quando ouvi fechar a porta da rua, altas horas, fui ao quarto dos meus pais e contei o ocorrido: julgo que não conseguiram acreditar-me, ficaram em silêncio uns segundos e mandaram-me deitar. Nunca mais tocaram no assunto comigo: nem quando, um pouco mais velha — talvez 13 anos –, cansada das habituais visitas deste padre (e, consequentemente, da minha fuga para o quarto em cada uma dessas vezes) senti o dever de iniciar de novo o tema, o que foi abafado imediatamente por eles, com desinteresse e mutismo. As suas tentativas comigo duraram meses. Adverti algumas das minhas irmãs, que nem tinham idade para perceber bem o assunto, tendo eu tido ao mesmo tempo receio de ‘lhes encher a cabeça com porcarias’, pois eram todos muito pequenos… Felizmente, uns anos depois a família foi viver para fora da cidade. Porém, muitos anos depois, a minha irmã mais nova (…) disse-me que o mesmo se passara com ela. O tema (ou similar) nunca foi falado em casa (no ambiente clerical e estranho daquela época). Havia uma espécie de pavor ou paralisia sobre os assuntos sexuais, mais ainda no contexto família-igreja. Não fiz mais, por mim ou por elas. Infelizmente.

“Certo dia sentou-me ao colo dele e…”

Os abusos aconteceram num colégio de um instituto religioso quando frequentava a 3ª. classe. Era chamado para ter conversas pessoais no gabinete do padre. O colégio pediu aos pais para não contarem que afastariam o abusador

Quando era criança estudei num colégio de Lisboa fundado e dirigido ate aos dias de hoje por uma ordem religiosa. Quando frequentava a 3ª classe, o que penso ter ocorrido em 1979 (teria eu 9 anos), tive um problema (repetido) com um professor que, não sendo padre, era um membro ativo da comunidade da ordem (…). Perdi-lhe o rasto desde há muitos anos, por total desinteresse sobre o seu paradeiro, mas há alguns anos soube por alguém que estava vivo e julgo que a residir noutra cidade. Desde então nunca quis fazer nada com esta história, muito embora possa e tenha podido sempre falar nela com algum “à vontade” ou pelo menos sem ter feito dela um tabu na minha vida.

Tinha um gabinete próprio, coisa que julgo que apenas o diretor do colégio tinha, e era normal chamar alunos ao gabinete para conversas mais pessoais, muitas vezes com o pretexto do clube; da Fé; dos comportamentos, etc. Certo dia sentou-me ao colo dele, num ato afetuoso e aparentemente inofensivo. Os meus pais tinham-se separado já há uns anos e eu tinha pouco contacto com o meu pai (…). Poderia assim existir alguma fragilidade ou carência de atenção masculina da minha parte, e terei criado ou cedido facilmente à aproximação afetiva deste homem.

Lembro-me que comigo ao colo, “prendia” os meus pés por trás das pernas dele (na zona dos gémeos), abria-me o fecho das calças, deixando-as acima dos joelhos, e masturbava-me lentamente. Eu não sabia bem o significado daquilo porque não deveria ter ainda uma noção clara da componente sexual daquele ato. Mas sabia que era estranho e por isso fui guardando para mim. Este episódio ter-se-á repetido pelo menos três vezes, mas não saberia precisar isso, ao longo de duas ou três semanas, ou algo parecido. De todas as vezes a porta era trancada à chave antes dele iniciar este ritual e a mesma ficava guardada no bolso dele.

Da ultima vez acredito que eu possa ter mostrado alguma resistência pela minha incompreensão dos factos, e sobretudo pelas ameaças que exigiam o meu silêncio. Da ultima vez mostrou-me a faca de cortar papel que tinha sobre a secretária, em tom de aparente brincadeira, mas evidentemente com um fim intimidatório, de forma a que eu não falasse mesmo no assunto. Comecei a ter muito medo e o silêncio passou a ser insuportável. Um dia comecei a chorar em casa do B, o meu melhor amigo da época, a quem acabei por contar tudo. Ele conhecia bem o professor porque éramos da mesma aula. Nesse momento a mãe dele entrou na sala e perguntando o que se passava, obteve a explicação por parte do B, que lhe repetiu o que eu lhe havia acabado de contar. Ela ligou à minha mãe e deixei de ir ao colégio a partir desse dia. Terminei esse ano escolar em casa, com uma professora particular, e os meus pais tiveram várias reuniões com o colégio (…).

O professor começou por negar, e o colégio exigiu que eu fosse a um psiquiatra para termos a confirmação da veracidade do meu testemunho. Uma vez confirmado, o diretor pediu aos meus pais que por favor não falassem no assunto e que o colégio se comprometeria a afastar o professor das instituições de ensino da Ordem.

“Punha-se por trás das nossas cabeças, metia a mão dentro das nossas blusas”

Tinha dez anos e era filha de empregados dos serviços. Os abusos ocorriam durante a aula de português

O Padre X mandava-nos ler um texto e ia passando entre as mesas das alunas. Punha-se por trás das nossas cabeças, metia a mão dentro das nossas blusas/camisolas e apalpava-nos as maminhas. Ficava claramente excitado e ia roçando o pénis nas nossas cabeças.

Outras vezes, em simultâneo metia os dedos que tresandavam a tabaco nas nossas bocas e ia mexendo dentro na nossa boca e na nossa língua. Íamos adotando estratégias: camisolas de gola alta, alguns colegas rapazes que percebiam o nosso desconforto interrompiam a leitura e faziam perguntas, para o fazer parar.

E assim vivemos um ano lectivo, sem percebermos bem o que se passava e sem que alguém qualificasse isto como abuso. Contou aos pais e a outros familiares: Não sei se faziam de conta que nao percebiam ou se simplesmente achavam aceitável. Ainda hoje rejeita “o toque no peito em relações adultas (consentidas obviamente).

“O padre tinha contactos impróprios com as crianças que confessava”

Os abusos aconteceram no colégio católico da cidade onde estudou, nas aulas de catequese e sobretudo durante a confissão. A vítima nasceu nos anos 80 e pensa que o padre ainda pode estar no ativo

Dos 6 aos 14 anos estudei num colégio (…) que se assume no seu Regulamento Interno como sendo “de inspiração cristã”. Hoje, tal como nesse tempo, dá opção aos seus alunos de frequentarem a disciplina de “Iniciação Cristã”, vulgo Catequese, sob responsabilidade de um sacerdote que a escola designa. Entrei para a escola na década de 90.

Não me recordo, ao certo, de quando comecei a frequentar a Iniciação Cristã. Talvez logo nesse ano, talvez um ano ou dois depois. Portanto, com 6, 7 ou 8 anos. (…) Não pelas aulas de Iniciação Cristã, que, pelo que me lembro, decorriam com normalidade, mas pelas sessões de confissão a que os alunos eram sujeitos em alguns momentos do ano. O Padre X aproveitava esses momentos para contactos impróprios com as crianças que confessava. Eu fui uma delas.

Pedia que deitássemos a cabeça sobre o seu colo. Pegava-nos, beijava-nos, acariciavanos, tocava-nos. Não eram abusos sexuais per se, pelo menos visíveis, mas eram contactos 257 íntimos, altamente impróprios entre um homem de, na altura, cerca de 40 anos e crianças em idade de escola primária. Eu, que tenho péssima memória para episódios felizes passados nesse colégio, tenho vívidas memórias dessas sessões que aconteciam não na igreja, mas num gabinete do colégio. E que pareciam demorar horas.

Não sabia, na altura, que não era suposto ser assim. Era uma criança. Mas um dia disse à minha mãe que o padre tinha comentado alguma coisa acerca do meu peso. Ela perguntoume como é que ele sabia. E eu disse que ele nos pegava e sentava ao colo. A minha mãe disse-me que me recusasse a fazê-lo caso ele o voltasse a pedir. E comentou o caso com uma das professoras (…).

Deixei de frequentar a Iniciação Cristã pouco depois. Sei que houve outras denúncias — percebi mais tarde que o comportamento do padre era do conhecimento geral, na escola. Apesar disso, o padre não foi denunciado nem afastado completamente — apenas deixou, a certo ponto, de praticar as confissões. Continuou a celebrar as missas e a estar envolvido na vida do colégio. (…). Não faço ideia se este padre continua a ter contacto com crianças em virtude das funções que desempenha. Seja no colégio ou nas paróquias onde trabalha. Espero que não.

Viola

A casa do padre religioso As roupas novas que chegaram de Portugal F, nascida na década de 1970, numa ex-colónia portuguesa em África «Sentia raiva da minha mãe que devia de me proteger e que me fazia tanto mal, como aquele padre que me violou». Tive uma infância muito feliz apesar de ter nascido num país como X (em África), das poucas lembranças que me vem à mente ainda me lembro das boas coisas da minha infância (…)

"Eu estava com tantas dores que as minhas pernas tremiam, ajudou-me a vestir e lembrou-me mais uma vez que eu não podia contar a ninguém o que se tinha passado."

“Não podes contar a ninguém porque é pecado”

Estava matriculada numa escola católica em África e até queria ser freira. A sua casa ficava ao lado do padre. Ele chamou-a para ir buscar roupa nova que tinha chegado de Portugal. Violou-a e obrigou-a a manter segredo

A minha infância transformou-se completamente na década de 80 quando os meus pais se mudaram para outra região de Y. Fomos matriculados na escola católica. Comecei a catequese e todos os domingos ia à igreja com o meu pai que era cristão e muito crente em Deus, a minha mãe era muçulmana, mas nunca se opôs à minha ida à igreja católica e eu participava em todas as atividades da igreja e sentia que estava mais perto de Deus e até pensei ser freira.

Começo a frequentar a igreja que era colada à casa do padre A. Era uma vivenda grande e do outro lado era a escola primária. Havia só raparigas, não havia rapazes. Muitas raparigas. Ele era branco devia ter uns 40 e poucos anos, grande e gordo! Um certo dia, tinha 8 anos, na saída da catequese o padre chamou-me e disse que tinham recebido roupas novas que vieram de Portugal para as crianças da igreja e disse para eu passar lá por casa. Fiquei muito feliz porque ia receber roupas novas e lindas que vieram de tão longe, Portugal. Fui a casa do padre como combinado, pegou na minha mão e levou-me para um quarto onde estavam as roupas e fechou a porta à chave.

Havia tantas roupas que eu não sabia como escolher, de repente, ele disse-me para eu me despir e assim podia experimentar e escolher as roupas que eu queria. Ajudou-me a tirar a roupa e disse para eu também tirar as cuecas. Fiquei toda nua mas a pensar que ia experimentar aquela roupa nova e bonita mas estava com medo. O padre acalmou-me dizendo para eu não ter medo que eu ia receber todas as roupas que eu quisesse, mas antes tenho que fazer uma coisa que não podes contar a ninguém porque é pecado. Não podes contar a ninguém e se contares aos teus pais ou a outra pessoa vais para o inferno. Não percebi nada, mas aceitei o “nosso segredo”.

O padre puxou-me e começou a tocar no meu corpo, deitou-me numa cama pequena que estava lá e introduziu o seu sexo no meu corpo. Comecei a chorar e queixei-me com dores e ele disse-me para me calar porque podiam ouvir-me e eu poderia ter problemas com ele e com Deus. Eu continuava a chorar e ele tapou a minha boca com as suas grandes mãos e continuou até ejacular. Levou-me depois para o banheiro para eu tomar banho e mais uma vez violou-me.

Eu estava com tantas dores que as minhas pernas tremiam, ajudou-me a vestir e lembrou-me mais uma vez que eu não podia contar a ninguém o que se tinha passado. Peguei num saco cheio de roupa e saí, nem conseguia correr. Cheguei a casa e fechei-me no meu quarto para ninguém perceber como eu estava, com dores e com muito medo. Naquele momento descobri o BEM e o MAL através das palavras daquele padre. Tinha pesadelos e comecei a fazer xi-xi na cama. (…) Os maltratos foram tão grandes que ainda hoje tudo está na minha cabeça. Não entendia porque fazia xi-xi só sabia que tinha pesadelos, mas não contava a ninguém o que se tinha passado comigo, tinha medo de ir para o inferno. Sentia raiva da minha mãe que devia de me proteger e que me fazia tanto mal, como aquele padre que me violou. (…) Se o inferno existe, ele vai lá parar!

“Era a forma de estarmos em união com o divino”

O padre prometeu-lhe a entrada no seminário. Acabou por ser abusado sexualmente aos 15 anos, quando frequentava o 9.º ano. Os abusos aconteciam na casa paroquial e no carro do sacerdote (que teria 35 anos)

“O padre dirigia-se a casa dos meus pais e levavame para acolitar na paróquia dele que era vizinha da minha e levava-me também a passear no carro”. Alimentava uma narrativa segundo a qual esta “era a forma de estarmos em união com o divino, justificando-a com o celibato dos padres na Igreja”.

Dizia “que ficaríamos sempre juntos e que me ajudaria a entrar no seminário e a mudar as mentalidades do cristianismo e que esse era o sinal da minha vocação”. E “pagava-me livros, roupas, pulseiras, passeios e férias e ofereceu mobílias aos meus pais”.

“Sofri um recalcamento emocional e sexual e uma depressão grave aos 25 anos. Porque em consequência deste processo entrei no seminário aos 18 anos, acabando por não pedir em namoro uma rapariga que amava muito e com quem acabei por nunca ter tido relações sexuais. Durante a depressão e o tratamento com a terapia fui tomando consciência do que se estava a passar em mim: saí do seminário nesse ano da depressão para me curar e ser uma pessoa normal. Casei aos 29 anos e ainda hoje tenho pesadelos regulares com acontecimentos desse período de vida. Tomo medicação para controlar a ansiedade”.

O frade que atrai ao quarto F, nascida na década de 1950 «que aguardasse um pouco para me oferecer um “santinho”, ou seja, uma pagela de um qualquer santo, que trazia na sua mala de viagem» Nascida na década de 50, F residia com a família de proprietários agrícolas numa região do Centro. Pequenita, com 6 anos, foi vítima de tentativa de abuso por parte de um frade menor que «foi generosamente acolhido em casa de minha avó e pela família também. Era assim. Nas aldeias havia sempre uma família católica de referência que acolhia os membros da Igreja». E conta: «

“Num ápice, vi-me deitada sobre a cama, sem cuecas”

Aos 6 anos, foi atraída por um frade que altura visitava as aldeias para angariar fundos para o convento. Só não foi violada porque a dona da casa entrou naquele momento

Anualmente, a minha aldeia era visitada por um frade (…) que vinha durante uma semana numa suposta “missão “. Hoje, percebo que mais não era do que um pretexto para angariar bens (em géneros e dinheiro) para ajudar no sustento do convento. Durante o dia descansavam e à noite faziam os seus sermões na igreja, algo tenebrosos para uma criança, confesso. Esses frades eram generosamente recebidos em casa de minha avó, senhora viúva e muito respeitada, que vivia ao lado da casa de meus pais.

Como a Comissão calculou as 4.815 potenciais vítimas de abusos

Em casa de minha avó tomavam todas as refeições, mas iam pernoitar a uma outra casa que estava devoluta e pertencia a um casal que vivia fora. Acontece que, tinha eu 5 ou 6 anos, não recordo bem se já estaria na escola onde entrei com 6 anos, e minha avó me incumbiu de ir indicar a referida casa de pernoita ao frade que, nesse ano, vinha pela primeira vez. Devo referir que, naquela época, era normalíssimo as crianças andarem à vontade pelas ruas da pequeníssima aldeia, onde brincavam, visitavam familiares e vizinhos… sem que houvesse qualquer receio por parte dos adultos.

Conduzi, pois, o referido indivíduo à casa onde foi acolhido pela filha dos donos da casa que residia ao lado. Ao iniciar o meu regresso a casa, fui incentivada pelo “cavalheiro” a que aguardasse um pouco para me oferecer um “santinho”, ou seja, uma pagela de um qualquer santo, que trazia na sua mala de viagem. Assim foi. Mas num ápice, vi-me deitada sobre a cama, sem cuecas, o homem iniciando o toque dos meus órgãos sexuais. Como que por milagre, a senhora da casa voltou, a pretexto de saber se estava alguma coisa em falta e… Salvou-me! Ainda hoje me questiono se aquela aparição repentina foi consciente ou inconsciente por parte da senhora. Anos mais tarde, já ela com bastante idade, tentei saber se ela se recordava do nome dos frades que acolhia, disseme que não e deixou cair o assunto. Creio que ela se recusava a acreditar que algo mau tivesse acontecido com um elemento da Igreja. Seria impensável, na altura. Toda a vida vivi com esta imagem. Na minha infância não percebia muito bem o que tinha acontecido, só mais tarde percebi a gravidade, mas nunca esqueci.

“Pedia-me para sentar no colo e beijou-me”

Nascida na década de 80, filha de professores, esta vítima vivia numa Região Autónoma. Quando frequentava o 5.º/6.º anos, com 11 anos, foi abusada sexualmente pelo padre da paróquia, na altura com cerca de 60 anos

Eu ajudava na igreja e passava muito tempo na casa dele, a minha família tinha alguma influência na terra (…) Pedia-me para sentar no colo e beijou-me. O padre “só” me beijou e não o voltou a tentar porque eu reagi. Disse-me que eu estava confusa, e ainda tentou “seduzir-me” depois, mas deve ter tido receio que eu contasse a alguém. Durante anos não contei nada porque achei que não podia, era o padre e amigo da família. E eu passava muito tempo em casa dele, de certeza que iam dizer que a culpa era minha. Foi uma única vez que tal aconteceu. Quase vinte anos mais tarde, decide contar à Mãe o que se passara: não acreditou.

“Numa sala escura fez o mesmo que o outro padre”

Depois de apanhar boleia de dois padres, um deles colega do tio, também sacerdote, foi abusada sexualmente nessa viagem por um deles. Andava no 2.º ano da escola e tinha 8 anos. Mais tarde, foi vítima de outro abuso, por uma seminarista, numa casa de freiras.

“Levaram-me e a outras pequenas para uma casa de Freiras no Porto, com 1 seminarista. Numa sala escura, enquanto o seminarista falava com uma freira, fez o mesmo que o outro padre e tocou-me nas nádegas e na vagina. Fiz tentativas de suicídio, desabei, fiz terapia (psicologia e psiquiatria). Estou a tomar medicação”.

“A mãe do padre disse que iria matá-lo”

Nascida na década de 1960, numa Região Autónoma, tinha 10 anos e andava na 4.ª classe, quando sofreu os abusos. Começou a ter mais contacto com o padre da freguesia onde residia quando foi aprender música. Tinha 10 anos, andava na 4.ª classe. Durante cerca de um ano foi abusada em vários locais. Dos abusos resultou uma gravidez, que foi interrompida

“A mãe do padre disse a ele na minha frente que ele nunca mais me tocasse ou ela iria matá-lo com as suas próprias mãos”.

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