O grupo de trabalho criado pelo Governo para analisar e alterar os mecanismos de proteção de crianças e jovens entregou um relatório em junho e, três meses depois, o documento ainda está a ser analisado em três ministérios. Ao Observador, o gabinete de Ana Mendes Godinho, ministra que tutela a Segurança Social, deu uma resposta semelhante à enviada em julho deste ano, referindo que o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, o Ministério da Justiça e o gabinete da Ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares “estão a analisar o relatório e as propostas de reforço e aperfeiçoamento do sistema de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo que foram apresentadas”.
Este grupo de trabalho foi anunciado há mais de um ano, em junho do ano passado, poucos dias depois da morte de Jéssica Biscaia, de três anos, na sequência de múltiplas agressões, em Setúbal. E o objetivo das mudanças seria precisamente evitar cenários semelhantes ao de Setúbal, que resultou, aliás, na condenação da mãe de Jéssica e de mais três arguidos a 25 anos de prisão. Apesar do anúncio célere, o grupo só foi constituído cerca de cinco meses mais tarde, no início de novembro.
De acordo com o despacho publicado em Diário da República, a 8 de novembro do ano passado, o grupo de trabalho teria quatro meses para apresentar um relatório e respetivas propostas ao modelo de acompanhamento e proteção de crianças e jovens. O prazo podia, no entanto, estender-se por mais dois meses, desde que fossem indicados “ponderosos fundamentos”. Ou seja, no total, o prazo máximo para apresentar o documento era de seis meses — período que foi ultrapassado.
Modelo de proteção atual é complexo e CPCJs não têm autonomia sem autorização dos pais
No mesmo despacho, a tutela reconheceu que o modelo atual de proteção de crianças e jovens é complexo, sobretudo em casos mais graves e mais urgentes. E, por isso, foi pedido ao grupo de trabalho que fosse feita a “identificação dos principais fatores de perigo associados às fragilidades/vulnerabilidades das crianças e jovens” e a “planificação de um modelo uniforme, visando a aplicação articulada pelas diversas entidades” e, sobretudo, a formulação de propostas, que podem incluir alterações legislativas.
O caso de Jéssica despertou a atenção para o modelo atual, em que, por exemplo, a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) não tem autonomia para atuar, caso não tenha autorização dos pais ou representantes legais. Nestes casos, o processo é entregue ao Ministério Público, que abre um inquérito e, a partir daí, será sempre o tribunal a tomar as decisões sobre o futuro da criança.
Foi, aliás, o que aconteceu com a criança de três anos, que morreu no ano passado. Jéssica foi sinalizada pela CPCJ quando nasceu, em 2019, uma vez que todos os seus irmãos tinham sido sinalizados e já nenhum deles vivia com a mãe. Mas este acompanhamento só durou um ano, como confirmou no ano passado o Observador, por falta de autorização dos pais. O caso passou então para o Ministério Público em 2020, “com base numa sinalização de violência entre os progenitores ocorrida na presença da criança”, informou, também no ano passado, o tribunal de Setúbal.
O processo foi, no entanto, arquivado em junho de 2022, poucos dias antes de Jéssica morrer, depois de duas visitas a casa da criança. Na última visita, o Ministério Público determinou o arquivamento do processo, por já não existir uma “situação de perigo”, tornando “desnecessária a aplicação de medida de promoção e proteção”.