Quase cinco meses depois, “fumo branco” numa das mais longas disputas laborais de sempre em Hollywood. A greve do sindicato dos argumentistas norte-americanos, o Writers Guild of America (WGA) que, juntamente com um protesto idêntico por parte dos atores, parou a indústria do cinema e televisão nos EUA, está, ao que tudo indica, prestes a chegar ao fim, após o anúncio, esta segunda-feira, de um acordo entre o sindicato e as gigantes do entretenimento norte-americanas.
Para chegar aqui, foram necessários 146 dias de protestos, demonstrações, palavras de ordem e de um longo processo de negociação que visava salvaguardar os interesses dos cerca de 11 mil membros da WGA. Questões relacionadas com pagamentos residuais, condições materiais de trabalho e o uso futuro das tecnologias de inteligência artificial estavam no centro da discussão e, ao que tudo indica, terão sido acauteladas num novo acordo coletivo de trabalho que o comité de negociação dos argumentistas descreveu como “excecional”.
A greve refletiu ainda uma série de questões mais profundas relacionadas com o futuro de Hollywood, numa era em que as plataformas de streaming vão ditando cada vez mais o ritmo e exacerbando as desigualdades na indústria, que por seu turno são comportadas com o rápido acelerar das novas tecnologias digitais, com potencial para resultar na perda de milhares de postos de trabalho.
O fim da paralisação não responde a todas estas questões, e por si só não vai levar à retoma da produção cinematográfica – sobretudo porque a greve do sindicato dos atores, a SAG-AFTRA, ainda está para durar, sem novas rondas de negociação anunciadas no futuro próximo (para já). No entanto, o acordo alcançado entre a WGA e a AMPTP, a associação dos estúdios e produtores de cinema, pode servir de matriz para desbloquear a greve dos atores, bem como salvaguardar os interesses dos profissionais de Hollywood face a um futuro desconhecido e repleto de incertezas.
Em que consiste o acordo entre argumentistas e estúdios?
Essencialmente, os pontos fulcrais da disputa laboral incidiam sobre três temas: condições de trabalho, pagamentos residuais e a regulamentação do uso de tecnologias de inteligência artificial (IA). Todos estes pontos foram acautelados na proposta negociada entre a WGA e a AMPTP, num acordo que foi, em larga medida, ao encontro das pretensões dos argumentistas.
“Podemos dizer, com grande orgulho, que este acordo é excecional, com ganhos substanciais e proteções para os argumentistas de todos os níveis do sindicato”, podia ler-se num email enviado pela WGA aos seus membros esta segunda-feira, de acordo com o New York Times.
A questão das condições e oportunidades de trabalho, preocupação menor durante a última greve, (em 2007/08), assumiu em 2023 importância capital, em grande parte devido à ascensão meteórica das plataformas de streaming nos últimos anos. Se serviços de subscrição como a Netflix e a Amazon Prime Video vinham sendo cada vez mais incontornáveis no período anterior a 2020, a verdade é que a pandemia da Covid-19 teve como “efeito secundário” para indústria uma verdadeira explosão no setor.
Impedidas de sair de casa, milhões de pessoas acorreram aos serviços de streaming, com um aumento de 26% na base de utilizadores das plataformas só em 2020 (ano em que superaram pela primeira vez os mil milhões de subscrições) e objetivos de crescimento a cinco anos alcançados em apenas dois.
Este boom trouxe consigo a consolidação de práticas comuns a todas as plataformas. Um exemplo pode ser encontrado nos modelos de séries televisivas popularizados pela Netflix, com o seu número mais reduzido de episódios e maior tempo de espera entre projetos – uma realidade que, para os argumentistas que neles trabalham, se traduziu em salários mais baixos e na perda de oportunidades de trabalho estável, substituída por um ecossistema que força os argumentistas a saltarem de projeto em projeto.
Outra das práticas laborais visadas pela greve prendia-se com o conceito das minirooms. Estes departamentos, assim chamados por contraste com as writers rooms de Hollywood, vinham tornando-se cada vez mais comuns, estandardizando a contratação de cada vez menos argumentistas para trabalhar num determinado projeto.
O acordo coletivo de trabalho anunciado esta segunda-feira prevê concessões da parte dos estúdios face a esta realidade, estipulando um mínimo de staff contratado para trabalhar nos departamentos de argumentistas em séries televisivas, bem como uma duração mínima dos vínculos contratuais.
O novo fenómeno das plataformas teve também impactos no que diz respeito ao pagamento de residuais aos profissionais do setor. Se, no passado, um argumentista recebia um pagamento de cada vez que um episódio do filme ou série em que tinha trabalhado era transmitido na televisão, mesmo que tivessem passado anos desde a sua estreia ou emissão original, o mesmo não acontecia nas plataformas, onde os estúdios eram os únicos beneficiários da venda dos direitos de exibição. Também isso deve agora mudar, com o acordo entre sindicato e associação de produtores a garantir um “aumento substancial” nas compensações aos argumentistas pela exibição do seu trabalho nas plataformas digitais.
Mas o ponto de maior discórdia no braço-de-ferro entre WGA e AMPTP prendia-se com o uso da inteligência artificial, vista como uma ameaça existencial para milhares de postos de trabalho para os criativos de Hollywood. Os argumentistas queriam estabelecer limites à utilização da IA na produção de guiões; os estúdios não estavam dispostos a dar essas garantias, levando muitos a temer um futuro não tão distante em que o trabalho humano de escrita seria feito por uma inteligência artificial.
Foi sobre este diferendo que se concentrou a maior parte da atenção na última ronda negocial, que começou na quarta-feira e continuou sem interrupções durante cinco dias, contando com a atuação direta dos CEOs das gigantes da produção norte-americana, como Bob Iger, da Disney, David Zaslav, da Warner Bros. Discover, ou Ted Sarandos, da Netflix.
Durante o fim de semana, as duas partes acordaram, finalmente, numa linguagem legal que deverá impedir que guiões antigos na posse dos estúdios sejam utilizados para ensinar programas de “machine learning” a escrever argumentos, garantindo assim mais uma proteção ao trabalho dos argumentistas.
O dia seguinte: que impactos tem este acordo na paralisação da indústria?
O acordo celebrado entre argumentistas e associação de produtores deve, nos próximos dias, pôr fim à greve da classe. Tal não significa, contudo, que a indústria de Hollywood, parada há vários meses, assista a uma retoma, pelo menos para já. Primeiro, há a questão da ratificação do acordo, que ainda terá de ser submetido a votação por parte da WGA; até que esse processo seja cumprido, os 11 mil membros do sindicato não deverão voltar ao trabalho.
Mais importante do que isso, o fim da greve da WGA resolve apenas uma parte do bloqueio da indústria. A outra parte, de resolução mais difícil, é a greve paralela do sindicato dos atores, a SAG-AFTRA. A paralisação, decretada em julho, dois meses depois do início da greve dos argumentistas, marcou a primeira vez que atores e argumentistas se uniram em greve desde 1960 e suspendeu por completo a produção de filmes e séries em Los Angeles, com os mais de 150 mil atores que formam o sindicato a também reivindicarem uma melhoria das condições laborais oferecidas pelos grandes estúdios.
As reivindicações dos atores vão ainda mais longe do que as dos argumentistas. Além da já referida garantia de direitos laborais e proteção contra os avanços na IA – uma proposta anterior por parte da AMPTP previa que os atores permitissem ter os seus rostos digitalizados e a ceder permanentemente os direitos de imagem destas “réplicas digitais” para uso futuro dos estúdios, sem qualquer pagamento adicional (o sindicato rejeitou a proposta) – a SAG-AFTRA quer também uma melhoria significativa de salários e um reforço substancial nos pagamentos residuais decorrentes da exibição em streaming.
Uma exigência reiterada várias vezes, que propõe que os estúdios partilhem 2% dos lucros feitos através das plataformas com os atores, bem como um aumento salarial de 11% no primeiro ano de contrato, foram propostas descritas pela AMPTP como “condenadas ao fracasso”.
As negociações entre atores e estúdios estão paradas há mais de dois meses. Tal deve-se, em parte, ao facto de a associação de produtores ter dado prioridade a resolver o diferendo com os argumentistas; por outro lado, é também uma estratégia negocial, que visa levar ao limite a posição dos atores. Dizia em anonimato um produtor à publicação da indústria Deadline, em julho, que o plano da AMPTP passava por “permitir que as coisas se arrastem até que os membros do sindicato comecem a perder os apartamentos e as casas”.
Tal já começou a acontecer, a atores e não só. É preciso não esquecer que a indústria de Hollywood emprega milhares de pessoas, de realizadores a diretores de fotografia, cenógrafos, técnicos de iluminação, som, efeitos especiais e pessoal de construção de cenários, entre outros – a quase totalidade dos quais que não está em greve, mas que ficou na mesma sem trabalhar nos últimos meses.
“Há imensa pressão de ambos os lados para que isto se resolva”, dizia esta terça-feira ao New York Times um advogado especializado na indústria do entretenimento, que já representou vários dos principais estúdios de Hollywood no passado. “O acordo que o sindicato dos argumentistas e os estúdios alcançaram, do ponto de vista económico, podia ter sido tratado em maio, junho; não precisava de ter demorado este tempo todo. Acredito que a massa sindical da SAG-AFTRA vai dizer ‘estamos sem trabalho há meses e queremos voltar ao trabalho, não queremos ser responsáveis por manter toda a gente à margem’”.
Para já, uma vez que o acordo coletivo de trabalho seja votado e aprovado pela WGA, apenas produções que não utilizem atores vão poder voltar ao ativo. Na generalidade, estamos a falar de programas diários e talk-shows noturnos, como aqueles apresentados pelos humoristas Jimmy Fallon, Stephen Colbert ou Seth Meyers. Tal representa um pequeno alívio para a indústria, mas não é suficiente atendendo ao impacto económico que a paralisação já teve para os estúdios e para a própria economia da Califórnia. Um estudo recente apontava para uma perda de mais de 3 mil milhões de dólares na economia estatal nos últimos meses
O sindicato, tem mantido que está aberto a negociar. Nos próximos dias, a SAG-AFTRA irá analisar os termos do acordo alcançado pelos argumentistas que, contemplando algumas preocupações comuns às duas classes, poderá servir de base para futuras negociações com a AMPTP. Na melhor das hipóteses, novas rondas negociais podem vir a ser marcadas para a próxima semana, mas até ao momento tal não aconteceu. No entretanto, e depois de uma pausa para celebrar o novo ano judaico, as demonstrações nas ruas deverão voltar já a partir desta terça-feira, com a presidente do sindicato, a atriz Fran Drescher, a apelar à solidariedade de todos nesta luta laboral.
A WGA, pela sua parte, garantiu que continuará ao lado dos atores. O sentimento foi reforçado na segunda-feira à noite no X (antigo Twitter) por Amy J. Berg, realizadora documental, argumentista e uma das líderes sindicais no protesto da WGA. “Sei que há um grande respirar de alívio a reverberar pela cidade neste momento, mas isto não acabou para nenhum de nós até que a SAG-AFTRA consiga o seu acordo”, escreveu.