Pode uma vitória eleitoral socialista ser um embaraço para os próprios socialistas? A resposta está na reações ao regresso ao poder de Robert Fico na Eslováquia, cinco anos depois. Em poucos dias levantaram-se ameaças de sanções e até de expulsão do seu partido, a Direção Social-Democracia (SMER-SSD), da família europeia socialista a que pertence, caso mantenha a linha pró-Rússia e de defesa do fim do apoio europeu à Ucrânia. A preocupação é tal que o líder do PS enviou uma carta ao presidente do Partido Socialista Europeu (PES) a pedir uma “mensagem clara” para Fico sobre a “linha vermelha” socialista para qualquer membro da sua família: aliar-se à extrema-direita.

A carta seguiu dois dias depois das eleições (a 3 de outubro), dirigida a Stefan Löfven, com António Costa a querer manifestar as suas “preocupações com a situação política na Eslováquia”. Logo à cabeça da missiva a que o Observador teve acesso, Costa avisa: “Vemos como impossível que qualquer membro da nossa família política entre numa coligação com a extrema-direita”.

Esta semana, o presidente do PES veio lembrar que o partido “apoia a Ucrânia e espera que os membros continuem a fazer isso mesmo”. E ameaçou o partido de Robert Fico com a expulsão caso “a retórica” anti-Ucrânia continue e “comece a ser implementada pelo Governo” que vier a ser formado.

Nesta altura, Robert Fico ainda está em negociações para formar Governo, depois de ter conseguido eleger 42 deputados quando precisa de 76 para ter uma maioria no Parlamento. Uma das hipóteses que está em cima da mesa é um entendimento com o ultranacionalista SNS, que tem 10 deputados eleitos — não sendo suficiente, a força de extrema-direita pode vir a ser um dos aliados de Fico e só isso já deve desencadear o processo de expulsão, no entendimento de Costa.

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Na carta enviada a Löfven, o líder socialista apoia a posição oficial do partido, mas também “encoraja” o líder dos socialistas europeus a “passar uma mensagem clara à liderança” do SMER sobre a “existência de uma linha vermelha que não deve ser ultrapassada por nenhum partido membro do PES”.

Mas se para Costa as coligações com a extrema-direita devem logo reabrir o processo com vista à expulsão do SMER, o socialista também diz que, além disso, é preciso “acompanhar de perto as declarações e políticas, bem como os direitos das minorias e política de migração onde os direitos humanos e da solidariedade devem ser mensagens-chave”. E também “continuar a garantir a condenação da Rússia como agressor da Ucrânia”.

Eslováquia. A aliada da Ucrânia que pode tornar-se próxima da Rússia — e abalar a unidade europeia

O problema na família política da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D) não é de hoje, com o partido de Robert Fico a seguir um caminho de cada vez maior endurecimento da linha política, ganhando um cunho nacionalista e conservador. A situação agravou-se nos meses de campanha eleitoral, com o líder populista de centro-esquerda a explorar um sentimento crescente no seu país de fadiga com a guerra num dos seus vizinhos e os gastos que ela está a significar — a Eslováquia é um dos principais doadores europeus da Ucrânia (per capita).

Durante a campanha eleitoral, Fico arrepiou os seus parceiros socialistas ao afirmar que tencionava “cessar imediatamente qualquer entrega de ajuda militar à Ucrânia” caso fosse eleito. No país, uma recente sondagem (do instituto Globsec) veio expor que apenas 40% dos eslovacos inquiridos responsabiliza a Rússia pela invasão da Ucrânia — a maioria aponta culpas à própria Ucrânia, aos EUA ou à União Europeia.

Outro dos pontos que tem incomodado os socialistas é a política de imigração defendida pelo eslovaco. Com o país a duplicar as entradas de imigrantes ilegais no último ano (mais de 24 mil nos primeiros oito meses de 2023, contra cerca de 11 mil no total de 2022), esse foi um tema que também dominou a campanha eleitoral e a linha de Fico volta a destoar da retórica socialista ao comprometer-se com uma renovação dos controlos fronteiriços com a Hungria de Viktor Órban — de quem se transformou num forte aliado político, tanto que foi muito notada a saudação do primeiro-ministro húngaro ao seu regresso, nas redes sociais, descrevendo-o como “um patriota”.

Mas na lista de pecados apontados a Fico contra a doutrina socialista está também o facto de ter baterias sempre viradas contra a comunidade LGBTQI, não reconhecendo o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e classificando mesmo de “perversão” a adoção por esses casais.

Fico é Órban dos socialistas, mas PS não quer um “arrastar de pés”

“Fico passará a ser para os socialistas o mesmo embaraço que Órban foi para o PPE“, comenta com o Observador o deputado do PS Luís Capoulas Santos, preocupado como impacto de ter o partido de Robert Fico na mesma família política europeia onde está o PS. “É mais um cavalo de Tróia na Europa, depois dos polacos e dos húngaros”, acrescenta ainda o também e presidente da Comissão de Assuntos Europeus, considerando que isso “enfraquece a democracia europeia”.

A deixa já foi aproveitada pelos rivais do PSD, com Paulo Rangel a tomar a dianteira da frente de ataque ao acusar o PS de tardar na condenação de Fico. “Eu que estive contra a presença de Viktor Órban no PPE durante mais de seis ou sete anos até conseguirmos que ele saísse, nunca ninguém em relação ao PS foi capaz de ter a mesma atitude em relação a Roberto Fico e à sua ideia de democracia iliberal, de um Estado anti-direitos fundamentais e não respeitador do Estado de Direito”.

“Há algum tempo que é difícil considerar o Fico na nossa família política”. A frase é dita ao Observador pela eurodeputada do PS Margarida Marques e Capoulas dos Santos acrescenta que o socialista eslovaco “já era uma ovelha negra. Se a retórica da campanha tiver a mínima aplicação prática, vai ter de sair” do S&D, antecipa o socialista. O eurodeputado do PS e vice da bancada no Parlamento Europeu Pedro Marques garante ao Observador que os socialistas europeus tiveram reuniões com o SMER nos últimos meses e “manifestaram preocupações” com as suas intervenções.

“A retórica foi evidente e é preocupante”, assume Pedro Marques, referindo-se às afirmações eleitorais pró-Kremlin e contra o apoio dado à Ucrânia na sequência da invasão russa. Entre as declarações polémicas de Robert Fico durante a campanha está aquela em que o social-democrata afirma que “a guerra na Ucrânia começou em 2014 quando os fascistas ucranianos mataram vítimas civis de nacionalidade russa.”

É precisamente este posicionamento face à Ucrânia, no atual contexto, que está a fazer os socialistas portugueses a pedirem urgência na ação. Pedro Marques garante que os socialistas “não vão arrastar os pés” em relação a este assunto como “o PPE fez relativamente a Viktor Órban” — recorde-se que António Costa tem sido um dos líderes europeus que tem mantido uma relação próxima com o primeiro-ministro da direita conservadora e nacionalista húngara. A expulsão do húngaro do PPE esteve em cima da mesa durante anos, mas o nacionalista acabou por sair por vontade própria, o que tem sido aproveitado pelos socialistas para atacar os adversários europeus.

Agora, no PS pede-se que a decisão possa ser rápida, para evitar comparações com o PPE. “Os socialistas desfizeram-se em críticas ao PPE pela demora na decisão sobre Órban pelo que seria absurdo fazerem o mesmo“, diz Capoulas Santos. E Margarida Marques acrescenta que a situação “deve resolver-se o mais depressa possível e de preferência com o SMER a ser posto fora” antes de poder vir a sair por vontade própria.

Ainda assim, a linha oficial definida é esperar. “Vamos esperar o próximo passo, mas não vamos esperar dez anos para decidir”, garantiu Pedro Marques esta terça-feira numa conferência de imprensa em Estrasburgo. “Vamos ver o que resulta destas negociações”, acresentou, referindo-se às conversas para a formação do Governo e também para ver se a retórica eleitoral passa mesmo à prática.

Enquanto espera, Margarida Marques mostra-se pouco confiante que Fico venha a fazer diferente do que disse durante o período eleitoral, apesar de admitir que “a retórica de campanha nem sempre é a linha política dos governos que vêm a seguir”. Ainda assim, a eurodeputada reconhece os problemas que a Eslováquia está a sentir, como consequência da guerra no país com quem tem uma fronteira. É por isso que avisa que a situação deve levar a União Europeia a agir com pinças e de forma equilibrada: “Tem de haver equilíbrio entre o apoio à Ucrânia, que tem de ser inequívoco, e a mitigação dos impactos da guerra na Europa, aumentando os apoios europeus”.

Na memória ainda está o efeito que decorreu da última crise financeira a atingir a UE: o crescimento dos populistas e do discurso anti-imigração. Agora a eurodeputada teme que se não existir o tal equilíbrio, essa narrativa populista possa voltar a encontrar neste desgaste alimento para se fortalecer.

A vitória socialista não tem, assim, festejos no PS. É antes um tremendo embaraço. Para Pedro Marques, por exemplo, “os socialistas ganharam mas o que importa é a implementação dos seus valores e não os contrários”. E “não é pelas balas eslovacas que o cenário no campo de batalha ficará diferente, mas no plano político é muito importante” a aproximação de mais um país europeu face à Rússia. “São pérolas para Putin”.