O Espião que Saiu do Frio, Chamada para a Morte, A Toupeira, A Casa da Rússia, O Espião Perfeito, A Rapariga do Tambor, O Alfaiate do Panamá, O Fiel Jardineiro. Quase não há livro de John Le Carré que não tenha sido um bestseller, recebido adaptação ao cinema ou à TV e tido, a determinado momento, por título de trabalho The Pigeon Tunnel (à letra, O Túnel dos Pombos). Agora, o nome, que se refere ao corredor por onde são lançados os pombos em direção à morte ou à salvação, por entre os disparos de caçadores de fim-de-semana, acaba, finalmente, em qualquer coisa de John Le Carré: o novo documentário de Errol Morris para a Apple TV, derradeira entrevista do escritor falecido no final de 2020.
Morris é um documentarista muito experimentado que ganhou o Óscar em 2004 por The Fog of War, filme em torno do antigo secretário norte-americano da Defesa e estratega da Guerra do Vietname Robert McNamara. Muito antes disso, nos anos 80, quando ainda lutava por financiar os seus filmes, foi detetive privado, um legado que torna ainda mais peculiar e apetecível o diálogo que aqui mantém com Le Carré, ele próprio, como sabemos, um antigo espião dos Serviços Secretos britânicos. Por um lado, entrevista, por outro, interrogatório, um jogo do gato e do rato, porém, consentido pelo rato – ou por aquele que, na vontade do realizador, deveria ocupar esse lugar.
Ora, sucede que John Le Carré, pseudónimo literário de David Cornwell, é, como saberá qualquer leitor minimamente familiarizado, um manipulador, um sedutor, de modo que The Pigeon Tunnel, do título até final, e malgrado todos os artifícios da edição, nem por um segundo lhe foge ao controlo.
É um bom exercício, The Pigeon Tunnel. Estabelece-se desde cedo entre o ambiente noir e a banda sonora de Philip Glass. Costura eficazmente, a partir de uma só entrevista, a vida e a obra de Le Carré, entre trechos dos livros, das adaptações ao grande ou ao pequeno ecrã, recriações de momentos da vida, regresso hipnótico ao simbolismo dos pombos e à visão poliédrica do entrevistado, estilhaçado entre espelhos e ângulos de câmara. Le Carré, um raro caso de escritor milionário praticamente desde a primeira hora, parece verdadeiramente apreciar a inteligência do seu entrevistador e responder-lhe com sinceridade.
[o trailer de “The Pigeon Tunnel”:]
Que a sua vida não teria interesse algum se não fosse pela escrita, que uma e outra se confundem, que o mundo da espionagem que conheceu no MI6 não tinha metade da excitação que procurou dar-lhe nos livros. Que escreveu O Espião que Saiu do Frio quando se desencantou de um mundo que, afinal, deixava velhos nazis passearem livremente dos dois lados de Berlim. Que o que se procura num espião é o fino e raro equilíbrio entre uma certa maldade e muita lealdade e que ele correspondia exemplarmente ao perfil. Que os espiões de verdade são, tipicamente, traidores sem qualquer espécie de interesse adicional (já suspeitávamos). Que beneficiou da popularidade das histórias de espiões devida ao sucesso de James Bond, ainda que o seu George Smiley fosse precisamente o oposto e, acima de tudo, o pai que Le Carré não teve.
E é quando fala da história familiar do autor que The Pigeon Tunnel mais tem a nossa atenção. Quando conta a história da mãe Olivia, que desapareceu da vida dos filhos quando o protagonista não tinha mais de cinco anos de idade, e que, durante muito tempo, não soube se estava viva ou morta, até a descobrir e perguntar porque o abandonara: porque não suportava mais o marido, as amantes, a vida que a fazia levar e os advogados que arranjaria e que não lhe dariam qualquer espécie de hipótese em tribunal, caso decidisse avançar com qualquer outra espécie de opção que não a fuga. E quando nos conta a história desse homem, aquele a quem Le Carré nunca trata por pai, mas por “Ronnie”, o vigarista que teve muito dinheiro, muitas mulheres e acabou entre a prisão e o pedido de uma fatia dos lucros ao filho pela educação que lhe pagara.
John le Carré, o espião-escritor que foi criado e treinado entre mentiras
Se não soubéssemos mais nada, talvez chegássemos satisfeitos ao fim de The Pigeon Tunnel. Sentido ter tido o privilégio de escutar a última entrevista de um dos mais bem-sucedidos escritores do nosso tempo, uma confissão honesta de um artista brilhante que retratou, como poucos, a era da Guerra Fria. Mas o documentário da Apple TV+ sai já depois de The Secret Heart, livro de memórias de Sue Dawson, antiga assistente de Le Carré, e ao mesmo tempo que uma nova biografia, The Secret Life of John Le Carré, de Adam Sisman, oito anos depois de uma primeira, oficial, autorizada, que o mesmo biógrafo escreveu, mas que, sabemos agora, estava amputada do que o biografado então não deixou passar. Um e outro, escreve o The Guardian esta semana, põem a nu as múltiplas traições de Le Carré às esposas legítimas com secretárias, assistentes, mulheres de outros escritores, abortos e silêncio pagos às escondidas, leitoras que procurava nos confins do globo, a pretexto de viagens de pesquisa por lugares que acabavam, frequente e ironicamente, por vir a figurar, de facto, nos romances.
Afinal, The Pigeon Tunnel parece acabar precisamente onde estes livros começam: na insistência com o fascínio de Le Carré pela traição e pelos traidores, e aquele a chutar tranquilamente para canto, sem que Morris tenha a habilidade ou as condições para mais.
No fim de contas, não foi apenas o trauma do pai nem a relação com Kim Philby, agente do MI6 ao serviço do KGB, a inspirar a imaginação de Le Carré. Havia muito trabalho de campo do próprio no tema dos homens de duas caras. Como o próprio disse: os espiões são, essencialmente, traidores. E este, pelos vistos, não gostava mesmo nada do frio.