É um processo técnico complexo — mas uma peça central da política ambiental em Portugal — e está no centro de várias das suspeitas do inquérito judicial em curso que levou esta semana à demissão do primeiro-ministro, a buscas na residência oficial de António Costa e nas casas e escritórios de outros elementos do Governo, e ainda à detenção de figuras do núcleo duro do chefe de Governo.

Mas o que é uma Avaliação de Impacte Ambiental? Qual a sua importância para a política ambiental? Que processos implica? E que suspeitas existem em torno da realização destes processos por parte da Agência Portuguesa do Ambiente, cujo presidente, Nuno Lacasta, também foi constituído arguido no caso entretanto batizado como “Operação Influencer”?

Como o Observador tem escrito extensamente ao longo dos últimos dias, a investigação em curso tem origem na confluência de dois inquéritos anteriores, nos quais estavam a ser investigados os contornos da concessão de licenças de exploração de lítio em Trás-os-Montes e de hidrogénio verde em Sines. Além disso, surgem também aqui suspeitas relacionadas com o projeto para um enorme data center em Sines.

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Na mira da justiça estão o ex-ministro do Ambiente João Pedro Matos Fernandes, o atual ministro das Infraestruturas, João Galamba, o consultor Diogo Lacerda Machado (conhecido por ser o melhor amigo de António Costa), o até hoje chefe de gabinete de António Costa, Vítor Escária, o ex-secretário de Estado da Justiça João Tiago Silveira, o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, o presidente da câmara de Sines, Nuno Mascarenhas, e ainda os empresários Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, da empresa responsável envolvida no projeto do data center. Todos eles terão estado, segundo o Ministério Público, envolvidos numa rede de influências que terá incluído a prática de crimes de corrupção e favorecimento nestes negócios de grandes dimensões, todos em torno de projetos centrais para a transição energética em Portugal.

Além destes suspeitos, o próprio primeiro-ministro, António Costa, está sob investigação pelos serviços do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, depois de a Procuradoria-Geral da República ter mencionado que durante a investigação foi detetada a “invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos”. A existência de um processo contra Costa levou-o a apresentar a demissão ao Presidente da República na última terça-feira.

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Em vários dos casos de contornos obscuros que precipitaram esta investigação estão situações envolvendo procedimentos de Avaliação de Impacte Ambiental, logo a começar pelo caso que espoletou todo este processo: a questão em torno da atribuição de licenças para exploração de lítio nas minas do Romano (Montalegre) e do Barroso (Boticas).

No primeiro caso, terá havido mesmo várias irregularidades no contrato que foi assinado em março de 2019 entre a Direção-Geral de Energia e a empresa LusoRecursos, para explorar aquela mina durante 50 anos. A empresa terá sido criada apenas três dias antes da assinatura do contrato e o seu gestor, Ricardo Pinheiro, será suspeito de ter, alegadamente, corrompido decisores políticos — nomeadamente, o então secretário de Estado da Energia, João Galamba — no sentido de favorecer o projeto.

Uma das suspeitas do Ministério Público é a de que tenha havido irregularidades na atribuição da Declaração de Impacte Ambiental, em setembro deste ano, por parte da Agência Portuguesa do Ambiente, na sequência de alegada interferência política.

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No início de setembro, foi conhecida a notícia de que a Agência Portuguesa do Ambiente tinha atribuído uma Declaração de Impacte Ambiental “favorável condicionada” à exploração mineira por parte da LusoRecursos em Montalegre. Trata-se de uma decisão com condicionantes: nomeadamente, não foi para já encontrada uma localização adequada para o complexo de anexos mineiros (que incluirá, por exemplo, a refinaria), que terá de ser objeto de uma Avaliação de Impacte Ambiental autónoma no futuro. Além disso, a empresa terá de pagar compensações financeiras ao município de Montalegre e cumprir uma série de obrigações destinadas a minimizar e compensar o impacto do projeto sobre a qualidade de vida das populações afetadas. Há 141 medidas de minimização propostas pela empresa que poderão permitir o avanço do projeto.

No caso da mina do Barroso, há suspeitas semelhantes. Como o Observador escreveu recentemente, João Galamba terá interferido no processo levado a cabo pela Agência Portuguesa do Ambiente, no sentido de levar a organização a dar luz verde ao projeto, apesar da discordância inicial por parte da APA. Também no caso do data center em Sines, a dispensa da Avaliação de Impacte Ambiental para a primeira fase do projeto está a ser vista pelo Ministério Público como um indício de um favorecimento por parte dos decisores políticos e de Nuno Lacasta à empresa — para a qual Diogo Lacerda Machado, o consultor e melhor amigo de António Costa, tinha sido contratado.

Processo envolve várias fases e consultas externas

Afinal, o que é uma Avaliação de Impacte Ambiental? Trata-se, como explica a própria Agência Portuguesa do Ambiente, de um “um instrumento de carácter preventivo da política de ambiente que garante que são estudados e avaliados os potenciais efeitos no ambiente de determinados projetos”. Genericamente falando, todos os “projetos públicos e privados que sejam suscetíveis de produzir efeitos significativos no ambiente” têm de ser submetidos a uma AIA, com o objetivo de “concluir sobre a sua viabilidade ambiental”.

A avaliação tem como objetivo identificar os possíveis impactos ambientais de determinado projeto, tanto diretos como indiretos: por exemplo, de que modo afeta os ecossistemas presentes num dado lugar, a exploração agrícola, a viabilidade da atividade humana, as espécies de animais e de plantas que ali vivem, a pegada ambiental do projeto, e por aí fora. É aquilo a que se chama o Estudo de Impacte Ambiental (EIA), que deve ser realizado pela entidade proponente. A avaliação tem, depois, de analisar as medidas que a entidade promotora do projeto propõe para mitigar ou compensar os impactos ambientais, e no final é tomada uma decisão sobre se o avanço do projeto está ou não em linha com as políticas ambientais do país. Essa decisão — a Declaração de Impacte Ambiental (DIA) — pode ser favorável, favorável condicionada ou desfavorável.

Ao longo dos últimos anos, muito tem sido escrito sobre este processo que é da responsabilidade da Agência Portuguesa do Ambiente para os projetos de maior dimensão (e das CCDR para os mais pequenos) — por exemplo, devido à já longa discussão em torno do futuro aeroporto de Lisboa, cujo impacto ambiental terá de ser avaliado e constituirá um dos critérios fundamentais para a aprovação ou não de determinado projeto.

De acordo com a APA, um processo de Avaliação de Impacte Ambiental inclui várias fases — e é um processo acompanhado, a nível global, por um conselho consultivo que inclui vários ministérios, associações setoriais, municípios e associações ambientalistas.

Trata-se de um processo que pode ser iniciado pelo proponente do projeto em momentos diferentes. Se o pedido de avaliação for submetido quando o projeto ainda se encontra em fase de estudo prévio ou anteprojeto, há uma primeira avaliação do projeto (que conduz à emissão da DIA) e uma verificação complementar da conformidade ambiental do projeto propriamente dito. Esta opção é habitualmente seguida em projetos nos quais existem, por exemplo, várias alternativas de localização e o critério ambiental é decisivo nessa escolha. Por outro lado, o pedido pode ser submetido já em fase de projeto de execução, o que significa que apenas é feita uma avaliação, que culmina com a emissão da DIA.

Este processo é regulamentado pelo Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental, diploma legal onde estão plasmados todos os pormenores do procedimento e que inclui também, em anexo, a lista completa dos projetos que estão obrigatoriamente sujeitos a avaliação. Refinarias de petróleo, centrais térmicas e nucleares, instalações destinadas a produzir compostos químicos, explosivos ou farmacêuticos, autoestradas e estradas, vias navegáveis, portos comerciais, ETAR, condutas de gás, aviários, barragens, aeroportos, pedreiras e minas a céu aberto são apenas alguns dos exemplos que constam da extensa lista.

A primeira fase, com que se dá início ao processo, cabe à entidade proponente, que desenvolve o Estudo de Impacte Ambiental de acordo com as normas que constam do regime jurídico e, depois, submete esse estudo e um conjunto de documentos numa plataforma digital específica para este processo. O proponente tem também de pagar uma taxa para a realização desta análise.

Submetidos estes documentos, cabe à “autoridade de AIA” — que pode ser a Agência Portuguesa do Ambiente ou a CCDR local, de acordo com o tipo e a dimensão do projeto — verificar a proposta, nomear uma comissão de avaliação e instruir o processo. É essa comissão técnica que vai avaliar o EIA desenvolvido pela empresa, podendo validá-lo ou pedir mais elementos.

Se o estudo for declarado em conformidade, então o processo avança para a segunda fase, que inclui uma avaliação mais detalhada do projeto. Nesta segunda fase, o EIA é colocado em consulta pública durante 30 dias e são habitualmente consultadas entidades externas que possam ser afetadas pelo projeto. A título de exemplo, no processo de AIA da mina do Romano foram pedidos pareceres externos a entidades como a câmara de Montalegre (que por seu turno pediu pareceres à Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, que identificaram lacunas no EIA), à câmara de Boticas, à Associação de Desenvolvimento da Região do Alto Tâmega, à Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, à Direção Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural, à Associação Técnica para o Estudo de Contaminação de Solo e Água Subterrânea e à Infraestruturas de Portugal. Todos estes contributos versaram sobre temas tão diversos como o impacto nos recursos hídricos, na biodiversidade, no ambiente sonoro, na qualidade do ar, no solo, na realidade socioeconómica da região, no turismo e em muitos outros aspetos. Além disso, foi também necessário consultar as autoridades espanholas, devido à proximidade com a fronteira.

Com base nos relatórios de todas estas consultas, a comissão de avaliação emite um parecer final — e a autoridade de AIA, nestes casos a Agência Portuguesa do Ambiente, prepara a proposta de decisão final para a Declaração de Impacte Ambiental. O proponente do projeto é convocado para tomar conhecimento dessa proposta e pode aceitar ou contestá-la. Caso a decisão seja aceite, a DIA é emitida de imediato; caso o proponente conteste, a APA tem de avaliar essa contestação, podendo acolhê-la ou não. No final, a DIA pode ser favorável (permitindo o avanço do projeto), desfavorável (impedindo-o) ou favorável condicionada (permitindo o avanço do projeto, desde que sejam cumpridas as condições exigidas, que devem ser fiscalizadas). As regras permitem, ainda, a possibilidade de haver uma modificação do projeto antes da decisão final, de modo a permitir a aprovação.

Terá sido isso que aconteceu, por exemplo, no caso da mina de lítio em Montalegre: uma primeira avaliação não mereceu aprovação da APA, o que poderia ter significado a perda do direito à exploração, mas a agência aceitou uma modificação do projeto e acabou por aprovar a mina com condições.

Segundo as notícias vindas a público nos últimos dias — e algumas já em 2020 —, terá havido influências políticas algures durante os processos de Avaliação de Impacte Ambiental destes projetos estratégicos, embora não sejam ainda claros os contornos concretos dessa alegada influência, nem até que ponto a luz verde, mesmo que condicionada, terá resultado ou não de qualquer interferência política.

O Observador questionou a Agência Portuguesa do Ambiente sobre as eventuais pressões políticas nestes casos e sobre o modo concreto como elas se teriam traduzido, mas não obteve qualquer resposta até à publicação deste artigo.