Têm em comum serem apresentados como projetos âncora para a transição energética, os mesmos decisores políticos e agora estão também no centro do furacão judicial que tem como alvo um ministro em funções — João Galamba — mas que chega até ao primeiro-ministro cujo amigo e advogado Lacerda Machado e o chefe de gabinete, Vítor Escária, foram detidos. O papel do próprio António Costa será objeto de um inquérito no Supremo Tribunal de Justiça.

Já tinham sido noticiadas investigações judiciais envolvendo algumas decisões e projetos relacionados com o lítio e o hidrogénio verde. A grande novidade desta investigação, além dos suspeitos, é o data center de Sines que está em construção desde o ano passado e deverá começar a operar em 2024.

No lítio, as primeiras suspeitas surgiram a propósito da atribuição de uma licença de exploração a um consórcio que tinha concessão da pesquisa em Montalegre, uma decisão tomada por João Galamba quando era secretário de Estado da Energia em 2019.

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A Procuradoria-Geral da República veio entretanto esclarecer que estão a ser investigados factos relacionados com as concessões de exploração de lítio das minas de Montalegre e Boticas, dois projetos que foram autorizados já este ano, mas nos quais teve intervenção João Galamba, enquanto secretário de Estado da Energia.

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Para além de João Galamba, agora ministro das Infraestruturas, também o presidente da APA, Nuno Lacasta, foi constituído arguido neste inquérito que envolve mais um eixo fundamental da política de transição energética: o hidrogénio verde.

Hidrogénio verde

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O hidrogénio verde é hidrogénio produzido a partir de fontes renováveis de eletricidade e é a principal aposta para descarbonizar o setor industrial, substituindo combustíveis fósseis como o petróleo e o gás natural. Por ter acesso a energias renováveis baratas (sobretudo pela grande disponibilidade de sol), Portugal tem-se procurado posicionar como um player importante nesta nova tecnologia. Há projetos de muitas centenas (e até milhares) de milhões de euros e fundos públicos (para já mais europeus do que nacionais). Sines tem sido epicentro destes projetos pela proximidade às indústrias que o vão usar o hidrogénio verde (como a Galp) ao mar e pela capacidade de injeção na rede elétrica que ficou disponível com o fecho da central a carvão da EDP.

Outro projeto na mira do Ministério Público é o de uma central de hidrogénio verde em Sines que foi apresentada por um consórcio que se candidatou ao estatuto de Projetos Importantes de Interesse Comum Europeu (IPCEI). O projeto em causa não é identificado, mas tinham sido noticiadas suspeitas relacionadas com o primeiro grande projeto de hidrogénio para Sines que envolvia um promotor holandês e grandes empresas nacionais de energia. A propósito destas suspeitas, o então secretário de Estado João Galamba divulgou, em 2020, a lista de todos os contactos que manteve com responsáveis empresariais e políticos que tiveram como tema o hidrogénio.

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O consórcio em causa acabou por se desfazer com as empresas Galp e EDP a avançarem com um projeto que envolve um total de 13 parceiros, incluindo a Martifer e a Efacec, mas também grandes empresas internacionais como a Vestas e a Engie. De fora ficou o promotor original, o holandês Marc Rechter que chegou a contratar um adjunto do gabinete de João Galamba.

O projeto da GreenH2Atlantic para a antiga central a carvão da EDP em Sines foi selecionado em 2021 para receber um apoio de 30 milhões de euros do fundo europeu Horizon 2020 Green Deal.

As suspeitas no lítio

Após alguns retrocessos e reavaliações, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) acabou por dar a autorização ambiental, condicionada, aos dois projetos de exploração a céu aberto de lítio no norte de Portugal, ambos com forte contestação local. No caso de Montalegre, já eram conhecidas investigações judiciais suscitadas por uma queixa de um dos sócios originais do consórcio que obteve o contrato inicial de prospeção ainda no tempo do Governo PSD/CDS). As suspeitas ganharam força com a decisão do então secretário de Estado João Galamba de dar luz verde à concessão da exploração, uma consequência legal do contrato original, argumentou então.

A importância do lítio

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O lítio, mais concretamente o concentrado de lítio (que é obtido através do processamento em lavaria) é a matéria-prima do produto mais usado no fabrico de baterias elétricas. O carbonato e hidróxido de lítio são fabricados sobretudo na China e a estratégia portuguesa e europeia passa por explorar o lítio localmente, desenvolvendo toda a fileira da extração à produção industrial. Portugal é apontado como tendo as maiores reservas da Europa. Para além dos dois projetos com luz verde para a exploração, havia planos para lançar um concurso nacional para prospeção. A Galp tem um projeto de construção de uma unidade de processamento em Setúbal.

O projeto andou para trás quando a primeira avaliação de impacte ambiental não passou no crivo da APA e poderia ter perdido o direito à exploração, mas a agência tutelada pelo Ministério do Ambiente aceitou que o proponente alterasse o projeto que foi submetido à avaliação ambiental tendo acabado por aprovar, com condições, a mina já este verão. Meses antes, a APA também autorizou a exploração de lítio em Boticas, uma concessão explorada pela Savannah, empresa com sede em Londres que apresentou o projeto para a mina de Barroso, onde estarão localizadas as maiores reservas de lítio da Europa.

Comissão de Avaliação dá parecer favorável à mina de lítio em Montalegre

A Agência Portuguesa do Ambiente é tutelada pelo Ministério do Ambiente e Ação Climática à frente do qual esteve João Matos Fernandes entre 2016 e 2021. Foi substituído por Duarte Cordeiro após as eleições de janeiro de 2022. João Galamba teve a pasta da energia (que acumulou com o Ambiente durante um ano) entre 2018 e 2022, período decisivo para o desenvolvimento de todos projetos que estão no centro da investigação judicia. Mas as autorizações dadas pela APA às minas de lítio foram atribuídas já depois de ter ocupado a pasta das Infraestruturas.

Centro de dados, a “Autoeuropa” de Sines

Foi anunciado pelo Governo como o maior investimento estrangeiro no país desde a Autoeuropa. Primeiro logo em abril de 2021, na assinatura do contrato para a sua instalação em Sines. A referência mais recente à “nova Autoeuropa” surgiu na semana passada, no encerramento do debate na generalidade do Orçamento do Estado para 2024, pela voz de João Galamba, ministro das Infraestruturas, constituído arguido esta terça-feira.

Mas afinal, o que é este mega investimento, que prometeu injetar em Sines 3,5 mil milhões de euros em investimento e criar até 1200 postos de trabalho diretos na região? O Hyperscaler Data Center, ou Sines 4.0, é um projeto da empresa Start Campus, que é detida pelos norte-americanos da Davidson Kempner Capital Management LP (Davidson Kempner) e pelos britânicos da Pioneer Point Partners. Tem como CEO Afonso Salema, que terá sido detido esta terça-feira juntamente com Rui Oliveira Neves, o outro administrador da empresa, segundo avançou o Eco. A PGR confirma apenas que “em face dos elementos recolhidos na investigação e por se verificarem os perigos de fuga, de continuação de atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, o Ministério Público emitiu mandados de detenção fora de flagrante delito do chefe de gabinete do primeiro-ministro, do presidente da Câmara Municipal de Sines, de dois administradores da sociedade Start Campus e de um advogado/consultor contratado por esta sociedade”. Este último caso deverá ser Diogo Lacerda Machado, que, conforme noticiado, foi consultor do centro de dados.

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O plano da Start Campus para Sines é ambicioso. Na cidade alentejana, está a nascer um mega centro de dados com capacidade até 450MW. Além dos 1200 postos de trabalho diretos, e qualificados, o projeto prevê gerar 8000 empregos indiretos até 2025. A totalidade do projeto deverá estar concluída em 2028.

Apresentado como um dos maiores campus de centros de dados da Europa, tem como objetivo dar resposta a uma procura cada vez maior por parte de tecnológicas por centros de armazenamento de dados. A empresa chegou a falar em ter como clientes empresas como Amazon, Google e Netflix.

No total, serão construídos nove edifícios, tendo já arrancado, em abril do ano passado, a construção do primeiro. O Nest deveria ter ficado operacional ainda em 2023, mas só deverá funcionar em 2024. Esta primeira fase tem capacidade de fornecer 15 MW aos servidores e já tem os primeiros clientes fechados, mas a sua identidade não foi revelada pela Start Campus.

Na génese do projeto está também a sua componente “verde”. Desde o início que foi propalada a “pegada de carbono líquida zero” do projeto. A empresa chegou a admitir utilizar a antiga central termoelétrica a carvão da EDP em Sines, já que o projeto fica localizado nos terrenos contíguos. O objetivo era desenvolver um sistema de refrigeração com água do mar. A localização não foi escolhida ao acaso. A start campus justificou a escolha de Sines pela “muito boa conectividade com a rede elétrica nacional e com fácil acesso a energia verde competitiva, incluindo solar, eólica e (no futuro) de hidrogénio.

Foi atribuída ao projeto, em março de 2021, a classificação de Potencial Interesse Nacional (PIN), o que lhe dá vantagens ao nível dos licenciamentos necessários. O Sines 4.0 tem como parceira, além do Governo, a AICEP, Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, e a Câmara Municipal de Sines. A empresa sublinhou, logo ao início, “o envolvimento ativo e o apoio do Governo português”, através do Ministério da Economia e Transição Digital, do Ministério do Ambiente e da Transição Energética, do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Internacionalização e do Ministério das Infraestruturas.