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"O Corno do Centeio". Um filme sobre a maternidade e a liberdade de uma mulher no franquismo

Este artigo tem mais de 6 meses

Estreia-se esta semana "O Corno do Centeio", que venceu a Concha de Ouro em San Sebastian. Um filme que começa na maternidade para caminhar longe. Falámos com a realizadora, Jaione Camborda.

Janet Novás é a atriz quem dá corpo à destemida mulher que protagoniza "O Corpo do Centeio"
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Janet Novás é a atriz quem dá corpo à destemida mulher que protagoniza "O Corpo do Centeio"

Janet Novás é a atriz quem dá corpo à destemida mulher que protagoniza "O Corpo do Centeio"

Há determinados filmes que nunca sabemos realmente o que nos vão trazer até os créditos rolarem e as luzes voltarem a ligar-se na sala de cinema. Não são de Hollywood, não vêm com trailers que explicam, tim tim por tim tim, o que se vai passar, estragando toda a surpresa. Há filmes que são puro mistério. À segunda longa-metragem, depois de Ons (2020), sobre um casal que tenta restabelecer a sua relação numa ilha de Atlântico, Jaione Camborda fez O Corno de Centeio, uma produção entre Espanha, Bélgica e Portugal, através da Bando à Parte de Rodrigo Areias.

A cineasta espanhola criou uma história que explora o mistério que é a gestação de uma vida para uma mulher. O seu impacto, a sua natureza animal e o seu som. Para as que podem gerar outro ser humano, para as que não conseguem, para as que ajudam no parto mas também para os homens que, não podendo nunca saber o que é ter alguém a crescer dentro de corpo, são figuras presentes no ser que há de existir. O Corno do Centeio estreia-se esta quinta-feira, depois de ganhar a Concha Dourada no Festival de San Sebastian em 2023. É um filme para se ir descobrindo, colocando-nos de frente com aquilo que pensamos sobre questões tão centrais como a maternidade ou o sexo feminino, sem dogmas ou moralismos. Uma hipótese cinéfila de observar a beleza crua da nascença e de todos os seus capítulos póstumos de quem a gerou. A acrescentar a tudo isto ainda temos a fotografia natural de Rui Poças. O Observador falou com a realizadora.

[trailer oficial do filme “O Corno do Centeio”:]

O filme, que se estabelece em 1971 no fim do Franquismo em Espanha, começa com um parto numa casa rural. Uma mulher vagueia pelo quarto, com a filha mais velha à espreita, o marido que surge por uns minutos e uma aparente parteira. Há um baile que se estabelece, a respiração da mulher anuncia que o bebé está prestes a nascer. Não estamos num hospital onde a cama é o objeto principal do nascimento. O tempo é outro. A dor de mão dada com a expectativa de uma nova vida. O jogo de sofrimento antes da alegria a que todos estamos sujeitos como animais que somos.

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A câmara preocupa-se em cristalizar esse momento, como se estivéssemos a ser espectadores de um parto em tempo real. Maria, a parteira, é imune a todo este ambiente. Nota-se no olhar que não é o primeiro parto que faz. Nem será o último. O Corno do Centeio é sobre ela, geradora de vida e carrasco de quem não é suposto vir para este mundo. É ela a protagonista desta exploração da capacidade da mulher gerar ou não vida que Jaione Camborda quis trabalhar.

Achei que era importante falar da necessidade de decidir o que fazer com o nosso corpo. Da liberdade que devemos ter. Quis ter um parto que estivesse mais ligado à parte física porque ainda existe uma certa dúvida sobre esse ato no cinema. Tem sido representado de forma pouco mamífera. É algo que se revela pela força, um feito mamífero. Quis ter a dor presente, que os momentos de contração fizessem o tempo ficar suspenso”, diz a realizadora.

Esse primeiro parto terá eco na grande jornada de María, depois de ter realizado um aborto a uma jovem que acabou por morrer, utilizando uma parte do centeio (e que é o título do filme) para fazer uma bebida, dir-se-á, mortífera. Viaja até à Galiza, sozinha porque os costumes e a religião ditavam o pior dos castigos para a pior das ações aos olhos de Deus. Por isso, decide pisar a fronteira para rumar a Portugal. Se o realismo daquela primeira cena é palpável de uma forma quase transcendental, com o recurso de um bebé que então tinha nascido há pouco mais de uma semana e de uma atriz que tinha acabado de ser mãe, Jaione Camborda também quis retratar bem essa época em que a liberdade só podia ser exercida às escondidas.

Não mostrámos a ditadura explicitamente. Ela mostra-se na clandestinidade, na noite, no sussurro e na proibição, de teres de te esconder para exercer a tua liberdade. Queria mostrar esse patriarcado, essa influência da igreja, de uma maneira mais abstrata. Portanto, integrar Portugal foi como um exercício de espelho, um lugar irmão onde não existiam fronteiras reais”, conta.

"Das reações que tenho tido, recebo esse agradecimento de mulheres com um conceito de maternidade diferente, mas também de homens", diz a realizadora

O caminho, sempre rural, sempre feito de contidos maus olhares e censuras civis que a atormentam, através dos quais María é obrigada a perder a identidade, a trabalhar no campo e a contactar com outras mulheres que têm de se despir dos seus direitos para dar uma espécie de oportunidade aos seus bebés, é pintado por décors naturais e pelo reino animal, uma das predileções da realizadora espanhola. Essa ligação com os seres vivos e com a natureza vem de uma viagem à selva amazónica com o seu pai, do Peru.

A realizadora quis que O Corno do Centeio fosse realista e sensível, mesmo estando noutra época: “Queria desenvolver esta ideia de nos reencontrarmos com o animal. Parece que, socialmente, nos distanciámos. Não acreditamos na natureza. E, das reações que tenho tido, recebo esse agradecimento de mulheres com um conceito de maternidade diferente, mas também de homens, habituados a ver o cinema pelos olhos masculinos. Essa ligação com os animais tem a ver com a forma como entendo o mundo. Parece que estou a fazer o mesmo filme a vida inteira”, diz.

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A realizadora Jaione Camborda a receber a Concha de Ouro para Melhor FIlme no festival de cinema de San Sebastian do ano passado

AFP via Getty Images

O Corno do Centeio demorou a existir, ainda que o cinema espanhol viva um momento especial, dentro do espaço comercial mas também de autor. Um momento que se nota pelo regresso de Victor Erice à grande tela com Fechar os Olhos, celebrado tanto no Festival de Cannes como no LEFFEST em Lisboa. Vê-se em A Sociedade da Neve, de Juan Antonio Bayona, o indicado ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e que se estreou na Netflix. E vê-se com mais mulheres como Jaione Camborda a terem vitórias grandes em festivais de cinema internacionais. Quando questionada, em jeito de provocação, se os homens que têm dominado a indústria deveriam ter medo do sucesso das mulheres, a espanhola diz que não:

Deviam estar contentes. Todos os que amam o cinema querem pluralidade porque até agora tem sido unidirecional, só realizadores homens”.

Esse universo está, por isso, rapidamente a mudar, ao contrário daquele em que María, de O Corno do Centeio, vive. Janet Novás é quem dá corpo a esta destemida mulher. A atriz nunca tinha estado diante de uma câmara numa longa metragem. É bailarina profissional, dedica-se à dança e, por mais estranho que possa parecer, o seu ponte forte é mesmo o olhar. Novás carrega o filme, porque o filme é sobre como uma mulher ultrapassa a barreira mental e física de não conseguir ter filhos e de ser julgada por ajudar outras a não os ter. Uma figura em constante luta, contra o mundo, contra o país, contra os seus pares e contra si própria:

Ela é bailarina contemporânea, esta foi a sua estreia. Tem uma presença forte, grande ligação à terra por causa da sua família. Mesmo sendo tudo novo para a Janet, senti que transmitiu as emoções necessárias, que abraçou a loucura, que é a primeira barreira a quebrar para uma atriz”.

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