Portugal terá de construir novas cavernas de gás dedicadas exclusivamente ao armazenamento de hidrogénio. O Governo já tinha dado luz verde ao reforço da capacidade de armazenagem no Carriço em resposta à crise energética provocada pela disrupção no abastecimento do gás russo. Mas esse reforço, inicialmente pensado para gás natural, ou para um mix de gás com hidrogénio, terá de envolver cavernas apenas para o hidrogénio verde. O armazenamento é uma das peças do novo corredor europeu que vai ligar Sines à Alemanha — atravessando ainda a Espanha e a França — o qual foi reconhecido no final do ano passado como sendo de interesse europeu, o que abre a porta ao financiamento comunitário.
A parte portuguesa tem uma componente para adaptação da infraestrutura do gás natural à integração do novo gás renovável e a gestora da rede, a REN, já chegou à conclusão de que não será possível misturar 15% a 20% de hidrogénio com o gás natural armazenado no Carriço, sem custos adicionais significativos, e ao contrário do que inicialmente estava planeado. As duas novas cavernas para gás natural foram aprovadas em 2022 e nos planos para o desenvolvimento da rede estava previsto um investimento da ordem dos 90 milhões de euros.
Segundo o presidente da empresa, Rodrigo Costa, e na sequência de vários meses de estudos realizados por especialistas na área, foi possível concluir que um blending (incorporação) de hidrogénio no gás natural, implicaria gastos equivalentes a 30% a 40% face ao custo inicial de cada caverna. Face a esse resultado, a REN concluiu que seria mais seguro e eficaz dedicar as cavernas adicionais na instalação do Carriço, no centro do país, apenas ao hidrogénio. O projeto está ainda em avaliação e só terá andamento quando chegar a nova equipa governativa.
Em declarações feitas à margem da conferência da Enagas, gestora da rede de gás em Espanha, sobre hidrogénio verde, que se realizou em Madrid esta quarta-feira, Rodrigo Costa não quis quantificar para já o valor do investimento adicional, tendo apenas sinalizado que andaria na ordem das dezenas de milhões de euros. O presidente da REN usou este exemplo durante a conferência para ilustrar a dificuldade e complexidade dos processos que envolvem o desenvolvimento do hidrogénio verde, numa mesa redonda que reuniu os líderes das gestoras das infraestruturas de Portugal, Espanha e França, que estão a trabalhar na construção do novo corredor verde.
A parte portuguesa deste investimento está estimada entre 250 e 300 milhões de euros, correspondendo à construção do troço que vai ligar Celorico da Beira a Zamora do lado espanhol. Mas os custos para cada país e as fontes de financiamento só ficarão definidos depois da aprovação final dos projetos, que terá de passar pelo Parlamento Europeu. Rodrigo Costa acredita que o montante de apoios europeus será clarificado num horizonte até 2025 e diz que o resto depende sobretudo da decisão política, ainda que seja também necessária uma avaliação de impactos por parte do regulador, a ERSE.
O projeto anterior, o MidCat, que previa um gasoduto de ligação entre Espanha (e Portugal) e França, chegou a ter financiamento europeu assegurado, mas esbarrou na falta de vontade francesa e nos chumbos dos reguladores por causa do custos e financiamento. Foi este gasoduto, que permitia ligar a Península Ibérica à Europa central, que Portugal e Espanha, com o apoio empenhado do Governo alemão, procuraram reativar durante a crise do gás russo. E que gerou uma troca de acusações entre o Governo e o PSD sobre quem era responsável pelo facto do projeto ter encalhado.
Paris acabou por viabilizar uma versão diferente e o projeto de corredor entre Sines e a Alemanha ganhou o nome de verde, porque foi concebido já para receber o hidrogénio produzido com fontes renováveis. E a conexão entre Espanha e França, inicialmente concebida para atravessar a acidentada fronteira terrestre nos Pirenéus, foi transferida para o mar, ao largo da costa mediterrânica entre Barcelona e Marselha, o novo BarMar. No quadro deste corredor, Portugal candidatou o H2Med/Celza, um projeto a desenvolver ao longo de 242 quilómetros, dos quais 162 quilómetros do lado nacional, e que tem um valor de referência de 204 milhões de euros. Também este projeto chegou a estar previsto no quadro da terceira interligação a Espanha e teria financiamento comunitário, mas não foi para a frente por falta de autorização ambiental.
A infraestrutura de transporte é fundamental para as ambições ibéricas de exportação de gases renováveis para a Europa central e está nas equações dos promotores de investimentos nesta área. A Península Ibérica é apontada como dos centros produtores com maior potencial de exportação de hidrogénio verde, essencialmente por causa do recurso sol que permite obter energia renovável a preços muito baixos e em grande quantidade. Um levantamento realizado pela Enagas identificou 206 empresas e mais de 600 projetos que poderão representar entre 1,6 milhões de toneladas a 7,9 milhões toneladas no cenário mais otimista.
Em Portugal, os projetos estão concentrados nas bolsas industriais do Alentejo, mas também entre Leiria e Estarreja, muito ligados à descarbonização de unidades industriais, tendo como foco principal o autoconsumo, mas também há projetos a pensar na exportação, sobretudo para Sines. A REN tem uma noção clara destes projetos porque recebeu recentemente manifestações de interesse dos promotores na interligação à rede de transporte em Sines.
Tendo por base os projetos previstos do lado da produção, Portugal terá potencial para abastecer 3% da meta de consumo estabelecida pela União Europa para 2030, de 20 milhões de toneladas, e ainda 5% a 6% da meta de produção própria, que é de 10 milhões de toneladas, referiu ainda Rodrigo Costa. Mas estes números vão depender muito de qual vai ser a evolução da indústria, que se encontra ainda numa fase ainda muito pouco madura.
Apesar da ambição que se esconde por trás dos números e do hidrogénio ser considerado como a principal fonte de descarbonização dos gases e combustíveis industriais, persistem as incógnitas sobre financiamento, o preço e e tecnologia. Outra dúvida é a falta de eletrolizadores (necessários para libertar a molécula de hidrogénio da água) que existe neste momento no mercado mundial e que pode complicar os planos dos promotores. “Ainda estão muitas peças no ar e confesso que deve ser difícil para um governante tomar as decisões”, admite o presidente da REN.
Crise política? “O nosso trabalho obriga-nos a não estarmos demasiado preocupados com os partidos”
Questionado sobre o impacto da crise política na execução destes investimentos, por trás das quais esteve o empenho pessoal dos líderes dos governos ibéricos, António Costa e Pedro Sánchez, o presidente da REN reconhece que o momento é complexo, mas sinaliza que neste momento “não estamos à espera de uma decisão do Governo português para que tudo aconteça amanhã”. Se é certo que o Governo está sob gestão, a Europa também está numa fase de avaliação “e não está pronta para carregar no botão”.
Sobre o risco que um novo Governo pode representar para o rumo da política energética, o gestor defende que a empresa não trabalha para o amanhã, mas para o futuro. “O nosso trabalho obriga-nos a não estarmos demasiado preocupados com os partidos que nos governam. Temos de dar continuidade a um serviço de fornecimento de energia”. Rodrigo Costa tem ainda a “certeza absoluta de que sejam quem forem os governantes, esta prioridade não muda para nós nem muda para eles”.
Ainda assim, reconhece, a velocidade com que estes projetos são executados depende da decisão política, mas refere também outro tipo de constrangimentos, nomeadamente do lado do licenciamento ambiental. “As pessoas têm de perceber que precisamos de energia e que não há decisões sem nenhum impacto. O que podemos fazer é minimizar e controlar os custos”.
A jornalista viajou a convite da REN.