Daqui a 100 dias, Paris vai acolher os Jogos Olímpicos, no entanto, os franceses e, especialmente, os parisienses oscilam entre o desinteresse e a oposição devido aos impactos no quotidiano de quem vive e trabalha na capital francesa.
Os preparativos para os Jogos Olímpicos aceleram a cada esquina de Paris, com o presidente Emmanuel Macron a inaugurar esta semana o Centro Aquático de Saint-Denis, a sinalética a ser instalada nos transportes e ainda muitas obras inacabadas, que a organização promete estarem terminadas até julho. Contudo, o que falta na capital francesa é o espírito olímpico.
Uma sondagem divulgada no domingo pelo jornal La Tribune Dimanche, e levada a cabo pela Ipsos, mostra que só 53% dos inquiridos estão interessados nestes Jogos Olímpicos, que decorrem entre 26 de julho e 11 de agosto, e que um em cada dois inquiridos diz mesmo não ter confiança na boa organização deste evento. Mas de onde vem este descontentamento?
“A França é uma democracia singular em que se tem como desporto nacional a crítica sistemática de tudo, e isso não é algo mau, significa que as pessoas estão preocupadas e participam. Os franceses manifestam-se, fazem greves e eu penso que há nisto uma certa saúde democrática, mas claro que gera alguns embaraços. Assim, quer sejam os Jogos Olímpicos ou outro evento, os franceses vão exercer o seu espírito crítico”, explicou Patrick Clastres, historiador olímpico e professor da Faculdade de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lausanne, em declarações à agência Lusa.
Logo em 2020, quando se soube mais sobre a localização exata das grandes infraestruturas para Paris2024 — com uma grande parte a instalar-se nos arredores da capital, nalgumas das comunas mais pobres de França como Saint-Denis, Saint-Ouen ou Aubervilliers —, foi criado o coletivo Saccage 2024, ou pilhagem, em português.
Este é um coletivo anónimo que reúne várias associações do departamento Seine-Saint-Denis, um dos mais pobres de França, e tem-se batido nos últimos quatro anos contra a instalação da Aldeia Olímpica, dos centros de treino ou ainda de novos acessos aos Stade de France por destruírem zonas verdes ou deslocarem associações que dão apoio aos mais pobres nestas cidades.
“Estes impactos ligados à construção de grandes estruturas, começámos a ver desde o início, já que muitos habitantes foram retirados dos locais onde foi construída a Aldeia Olímpica. Outro exemplo é que uma horta comunitária, que existia há dezenas de anos, foi destruída para ser construída a piscina olímpica”, relatou à Lusa Natsuko, membro deste coletivo.
Há quase um século que as autoridades francesas tentam resolver o problema da densidade populacional em Paris e um projeto que começou a ser estudado no início dos anos 2000 é o Grand Paris, que prevê alargar as fronteiras da capital às cidades mais próximas. Para o coletivo Saccage 2024, os Jogos Olímpicos foram só um pretexto para avançar com este projeto.
“É evidente que há uma pressão imobiliária muito grande nestas cidades, mas ela é anterior aos próprios Jogos Olímpicos, com a ideia de alargar a cidade de Paris aos seus subúrbios mais próximos. Os Jogos Olímpicos foram sim um acelerador deste processo e sabemos bem que muitas pessoas foram obrigadas a deixar as suas casas nos últimos anos”, acrescentou Natsuko.
Em Saint-Denis, desde o anúncio da atribuição dos Jogos Olímpicos a Paris (em 2017), o preço das casas subiu 25%, uma tendência que se alargou a toda a região de Paris, Île-de-France, e que coincidiu nos últimos anos com uma crise imobiliária e uma redução do poder de compra que dificulta o clima festivo.
“É importante criar uma identidade nacional para os Jogos Olímpicos, mas à volta do quê? Vive-se uma altura em França em que se expulsam estrangeiros, se perseguem os imigrantes ilegais e os próprios franceses veem todos os dias os seus direitos diminuírem, com o nível de vida a baixar consideravelmente. As pessoas assistem a isto e, ao mesmo tempo, tanto dinheiro público investido num único evento”, indicou Patrick Clastres.
A 100 dias dos Jogos Olímpicos de Paris, tocha olímpica está acesa em Atenas
Paris2024 vai também servir como ajuste de contas para muitos setores descontentes com os últimos anos de governação de Emmanuel Macron, especialmente a reforma do sistema de pensões aprovada a meio de 2023 à revelia da concertação social.
Assim, entre julho e agosto, a CGT, uma das maiores centrais sindicais do país, já apresentou vários pré-avisos de greve, nomeadamente no que diz respeito aos profissionais de saúde nos hospitais, mas também o pessoal das autoridades alfandegárias, cantoneiros ou mesmo transportes públicos.
Para Patrick Clastres, há um falhanço em criar entusiasmo sobre um evento “que permite criar laços” para o futuro e que vai permitir a cerca de 15.000 atletas de todo o mundo reunirem-se num único lugar.
“Nem o Comité Olímpico Internacional, nem o Comité Olímpico francês, nem o governo, nem o Presidente da República souberam criar um discurso que envolva a população. Nós nem percebemos bem porque é que é a França a organizar estes Jogos, nem o gabinete da ministra do Desporto sabe. Em 2017, Paris era quase a única candidata”, comentou o académico.
Já Natsuko espera que Paris2024 sirva para os franceses se mobilizarem contra os Jogos Olímpicos de inverno que a França vai organizar em 2030.
“Acho que as pessoas, em geral, não querem saber destes Jogos Olímpicos. Não há nem uma alegria geral, nem indignação. Há um desinteresse total. Agora, eles vão acontecer, já não é possível anular. O que eu espero é que, numa altura em que a França tem um défice orçamental de 5,5%, haja mais debate sobre a realização ou não dos Jogos Olímpicos de inverno de 2030”, concluiu Natsuko.