Das entradas à sobremesa, com a prosa de Jim Harrison (1937-2016) é fácil quebrar o jejum de aforismos para usar como cartada num jantar de amigos. Muitas, muito boas e de improvável enjoo, vão deixando um rasto sólido. “A boa comida é uma arma benigna contra a forma sórdida como vivemos.”, escreverá a páginas tantas desta edição, um pouco antes daquela passagem em que descreve a vida como “uma experiência de quase morte”, e que “as nossas mentes diabólicas farão tudo para torná-la interessante”.
Em 17 de novembro de 2003, o chef Marc Meneau e a mulher Françoise elevaram a fasquia. Acompanhados por uma equipa de 39 elementos, serviram no seu restaurante L’Espérance, na aldeia de Saint-Père-sous-Vézelay, nada mais nada menos que 37 pratos (pelo elenco do menu completo, descrito mais adiante, dir-se-ia que o número até peca por defeito).
Para o “poeta laureado do apetitte”, ensaísta, ficcionista que escreveu Lendas de Paixão em 1979 (adaptado ao cinema em 1995) e numerosos registos das aventuras à mesa, papar quilómetros era a menos indigesta experiência, apesar do estado de habitual semi reclusão entre Michigan, Montana e Arizona. Harrison prezava a natureza, a poesia, a partilha, o prazer do festim, e o apetite da pena que narra todas estas experiências, incluindo as gastronómicas. “A vida é brutalmente curta e queremos comer bem e, para isso, precisamos geralmente de viajar para as grandes cidades ou, melhor ainda, para França”. Haverá, nota ainda Jim, quem considere excessivo viajar desde Montana até à Borgonha para almoçar, “mas eu não”. Lembremos que falamos do homem que se dispusesse apenas de seis meses de vida seguiria tipo flecha para Lyon para saltar “de bistrot em bistrot”, empurrado por “um vegetariano”.
A 29 de agosto de 2004, a revista The New Yorker publicaria “A Really Big Luch”, o resultado dessa deslocação no ano anterior, e o relato de mais uma passagem inesquecível pela terra de maréchal de Richelieu, Nicolas de Bonnefons, Pierre de Lune, Massialot, La Varenne, Marin, Grimod de la Reynière, Brillat-savarin, Mercier, la Chapelle, Menon e Carême. Uma lista de cozinheiros e escritores de comida do passado, nomes decisivos na transição para a modernidade, e ainda dos 17 livros de cozinha publicados entre 1654 e 1823, que inspiraram este almoço reforçado.
“Eu já tinha saído da minha dieta há duas semanas, viajado pelo interior de França com o Guy e Peter Lewis, um restaurateur de Seattle”, regista o escritor naquele que é um dos 47 textos da edição com selo da Quetzal.
O anfitrião de Harrison para este dia singular é Gerard Oberlé, que o nosso escritor conhecera nos anos 90 num festival de vinhos, do qual fizera parte do júri, ao lado de Gerard Depardieu e Alain Robbe-Grillet. Para que conste, e ficar bem claro o grau de glutonice, Oberlé é o mesmo que lhe cozinhou uma torta com 50 focinhos de leitão e que nos seus 50 anos ofereceu um manjar com 50 pratos inspirado no Satyricon de Petrónio. Por esta altura já terá percebido que uma roda viva culinária composta por quase 40 alíneas estava longe de ser um desafio inédito. E que ao longo dos anos e das visitas a solo francês se tornara cada vez mais óbvia a necessidade de um almoço com estas caraterísticas, realizado num dos destinos mais solicitados pelos gourmands. Ao longo dos anos, o L’Espérance ganhou, perdeu e recuperou estrelas Michelin, e em 2024 sucumbiria a um desfecho pouco apetitoso.Para todos os efeitos, vale o que vale, foi aqui que o cantor Serge Gainsbourg passou os seus últimos meses de vida.
Apesar da naturalidade desse encontro em novembro de 2003, o autor admite que a estranheza se instale, em especial entre os seus compatriotas. “Nunca como agora o povo americano se meteu tanto na vida uns dos outros. Se eu disser que partilhei com mais onze comensais um almoço de trinta e sete pratos que provavelmente custou tanto como uma carrinha Volvo nova, os que têm uma natureza crítica deixarão os seus pensamentos resolverem-se em círculos minúsculos e horrorizados de condenação. A minha resposta é que nenhum dos doze discípulos queria um Volvo novo. Queríamos apenas almoçar e, como o almoço durou cerca de onze horas, poupámos dinheiro por não termos de comprar o jantar. A minha defesa fica por aqui”.
A odisseia poderá parecer ainda mais ultrajante se referirmos que quando finalmente chegou a manhã do evento Jim “não tinha grande fome”. Como se fosse urgente, Gerard ainda se certificou de que Harrison não comia o pequeno-almoço, vigiando o frigorífico como “um gato albino de 100 quilos”.
Ao meio dia, sentaram-se por fim à mesa uma dúzia de convidados, incluindo um desconhecido. Um cavalheiro francês idoso e bem vestido cumpriu o supersticioso rito: qualquer grupo grande deve incluir um estranho, “que pode muito bem ser um anjo disfarçado”. À esquerda de Jim Harrison, ocupou a cadeira o viticultor Didier Dagueneau; à direita, Gilles Brézol, sócio de Gerard. Um grupo de “colecionadores de livros e jornalistas fiéis ao dever de sigilo” em que ninguém era obeso. “Courage”, aconselhou a estrela da cozinha francesa dos anos 70 Marc Meneau, quando saiu da cozinha por breves momentos e se dirigiu aos grupo, em vias de ser conduzido “numa viagem sombria e absorvente ao passado”.
Mas vamos ao menu daquela segunda-feira, elaborado a partir de textos fundadores como Les Délices de la campagne, de Nicolas de Bonnefons, agrónomo e fiel escudeiro de Louis XIV. De acordo com a obra, a Sopa da Saúde é apresentada como um prato convencional complementado com carne de qualidade e reduzido com um pouco de caldo. Mas isso, como lerá, é apenas a ponte do icebergue degustativo.
1.º Serviço
Azeites
- Caldo de aves (arroz, legumes picados, lagostim)
- Sauté de alho francês e batatas
Sopas
- Creme aveludado de pombo com pepinos
- Bisque de lagostins em feuilletage
Hors d’Oeuvres
- Tostas com ostras em Camembert (“o único prato que não consegui comer”)
- Aves de capoeira em gelatina e creme azedo
- Arenque fresco do Báltico com maionese
- Tarte de miolos de vitela com ervilhas sem casca
- Omeleta de Luís XV com ouriço do mar (o monarca adorava cozinhar, incluindo omeletas)
- Filetes de linguado com molho de champanhe (acompanhados de fígado de tamboril)
- Lúcio temperado com salsa e assado no forno
2.º Serviço
- Rodovalho glaceado no forno com creme de funcho com anchovas e groselhas assadas
- Guisado de leitão
- Terrine quente de lebre com ameixas em conserva
- Enguia escalfada (com pontas de asas de frango, testículos, e manteiga de estragão)
- Peitos de perdiz glaceados
- Ovos escalfados com cerveja Chimay
- Mille-feuille de massa folhada com sardinha e alho francês
(Entre o segundo e terceiro serviços um momento de descanso no salão)
3.º Serviço
- Casserole de rodelas de vitela à moda de Maxarine
- Gratinado de bochechas de vaca em fatias finas
- Pombo assado com fios de salsa
- Pato bravo con azeitonas pretas e raspas de laranja
- Cascata de lagostins e pequenas fatias de fígado de ganso grelhado
- Terrine de pontas de orelha de vitela
- Lebre en Musette, cozinhado numa bexiga de vitela com vinho do Porto
- Espargos panados crocantes
- Pão de ló leve com compota de fruta
- Pepino estufado em vinho
Na transição para os doces
- Rodelas de nabo conservado em vinho doce
- Rabanete conservado em vinagre
- Salada quente com amêndoas
- Creme de pistachios grelhados
- Bolos recheados — merengues, mararons, cigarros de chocolate
4.º Serviço
- Rosette de leite de amêndoa com amêndoas
- Queijo suave de natas frescas com geleia de marmelo
- Creme de arroz com claras de ovo açucaradas e casca de limão
- Bolo (savarin) flamejado com rum e servido com ananás de conserva
- Pequenas barras de gelado
- “Estrutura em torre de todas as frutas imagináveis em todas as formas imagináveis”
No capítulo das bebidas, a lista é igualmente generosa, entre um champanhe Krug Grande Cuvée em Magnum, um Pouilly Fumé 1999 ou um Chablis Les Close 1999 em Magnum. A rematar, um “reles brandy dos anos 20 e um Havana Churchill”.
Com Volvo ou sem Volvo na garagem, alguém terá pagado a conta. E o facto é que a identidade de quem a saldou é provavelmente uma das histórias mais fantásticas. Se por acaso for mentira, não deixemos que uma gota de verdade a comprometa. “O rumor mais interessante que ouvi foi que a conta do almoço tinha sido paga por um bilionário do Louisiana, que não pôde estar presente porque um pelicano fora sugado para o motor do seu Gulfstream. O pormenor era tão extraordinário que me pareceu provável ter sido verdade.”