O estado do Rio Grande do Sul enfrenta uma das maiores catástrofes da sua história. Cheias devastadoras provocaram 136 mortos no estado brasileiro, com as autoridades a admitir que esse número pode subir numa altura em que há registo de pelo menos 125 desaparecidos. A situação poderá piorar este fim de semana, já que, para este domingo, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres (Cemaden) emitiu alertas para deslizamentos e chuvas intensas.
Mais de 2,15 milhões de pessoas foram afetadas pelas cheias, segundo o balanço mais recente divulgado pela Defesa Civil na tarde de sábado. Isso equivale a cerca de um quinto de toda a população gaúcha. Outras 537 mil pessoas estão desalojadas e, desde o início das operações de socorro, já foram resgatadas mais de 74,1 mil pessoas e 10,3 mil animais.
Na imprensa brasileira, pelo rastro de destruição que está a deixar e o caos que está a gerar nos hospitais, a tragédia tem sido comparada ao furação Katrina, que em 2005 atingiu vários estados norte-americanos e provocou mais de mil mortos. Mas o que está a provocar estas fortes inundações e o que se espera para os próximos dias?
O que está por trás das chuvas intensas que provocaram as cheias sem precedentes?
Os especialistas têm explicado, em declarações aos meios de comunicação social brasileiros, que a intensa chuva que provocou as cheias é resultado de uma rara combinação de fatores. Por um lado, o estado do Rio Grande do Sul foi afetado por uma frente fria vinda do sul do continente que criou um clima instável na região. Por outro lado, o centro do Brasil enfrentava uma onda de calor muito intensa, que fez com que os termómetros marcassem valores cerca de 5ºC a cima da média para esta altura do ano.
A massa de ar quente no centro do Brasil atuou como uma espécie de muralha contra a frente fria, como explicaram especialistas à BBC Brasil. Acabou, assim, por impedir que esta se espalhasse do Rio Grande do Sul para outras zonas, provocando chuvas intensas e contínuas naquele estado. Chuvas que foram potencializadas por um corredor de humidade proveniente da Amazónia.
A acrescentar a tudo isto, alguns especialistas apontam também a possibilidade de alguma influência do El Niño. O fenómeno cíclico é responsável pelo aumento das temperaturas a nível global e um aquecimento das águas do Oceano Pacífico. No entanto, ao Observador o climatologista Mário Marques refere que é pouco provável ter tido uma influência significativa, já que este fenómeno está agora numa fase neutral.
Entre a primeira e a segunda semana de maio a intensidade da chuva foi tão significativa que em algumas das principais cidades do estado do Rio Grande do Sul registou-se em apenas dez dias o triplo das chuvas esperadas para um mês inteiro. Várias apareceram mesmo num ranking do instituto meteorológico Ogimet entre as que tiveram um índice de precipitação mais elevado no mundo.
Devido às chuvas intensas, o rio Guaíba, que passa por Porto Alegre, ultrapassou a marca histórica de 1941 e alcançou um nível inédito de 5,33 metros. Se o nível da água já baixou entretanto, poderá voltar a atingir os 5 metros devido às chuvas que recomeçaram na sexta-feira e que se espera que se mantenham ao longo de domingo, segundo um relatório da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) citado pela CNN Brasil.
O climatologista Mário Marques refere que as cheias são um fenómeno comum naquela região. “O próprio nome foi batizado assim porque se trata de uma grande bacia hidrográfica”, explica, lembrando os três episódios de chuvas fortes e cheias de junho, setembro e novembro de 2023. Aliás, de acordo com a Agência Pública, o Rio Grande do Sul foi, no ano passado, o estado com o maior número de decretos de situação de emergência e de calamidade pública relacionados com a chuva no Brasil.
As cheias são um novo recorde no Brasil?
Especialistas no Brasil têm comparado as graves inundações às históricas cheias de 1941 no Guaíba, em Porto Alegre. No entanto, explicam que este desastre natural está a ser ainda mais devastador do que o anterior. O próprio nível do rio Guaíba é um indicador disso.
Durante o fenómeno de 1941, o rio chegou a atingir os 4,76 metros, um número muito significativo já que se considera que existe uma enchente a partir dos 3 metros. Na semana passada esse recorde foi batido por várias vezes e estabeleceu um novo recorde: 5,33 metros. No entanto, isso aconteceu num período de tempo muito inferior.
Segundo uma avaliação da empresa Rhama Analysis — especializada em recursos hídricos — partilhada com o Globo, em 1941 o nível do Guaíba levou 10 dias para passar de 1,16 metro para a marca histórica de 4,76 metros. Este ano, mesmo com a proteção adicional de comportas, construídas na década de 70, foram necessários apenas 6 dias para o nível do rio passar de 1,24 metros para 5,33 metros.
Isso aconteceu porque, apesar de em 1941 a chuva ter sido mais persistente, tendo atingido Porto Alegre durante cerca de 12 dias, os volumes diários de precipitação foram baixos. Desta vez a tempestade teve maior intensidade e foi mais concentrada particularmente em quatro dias seguidos. Como consequência, as autoridades tiveram menos tempo para comunicar com a população na área de risco e pôr em marcha um plano de contingência.
As alterações climáticas tiveram um papel nas chuvas mais intensas?
Um estudo divulgado esta semana aponta que este foi um fator que contribuiu para tornar as chuvas do Rio Grande mais intensas. Segundo uma estimativa do ClimaMeter, um grupo liderado por investigadores do centro de ciências climáticas da Universidade Paris-Saclay, as chuvas que atingiram a região Sul do Brasil entre final de abril e início de maio foram 15% mais intensas devido às alterações climáticas.
Este número tem por base uma análise de dados meteorológicos dos últimos 40 anos. Os investigadores compararam os padrões climáticos no final do século XX com os observados nas décadas mais recentes — de 2002 a 2023. Concluíram que as depressões atmosféricas semelhantes à que afetou o Rio Grande do Sul são atualmente 15% mais intensas.
“Apesar de o El Niño-Oscilação Sul poder ter favorecido a forte precipitação, não chega para explicar as mudanças associadas a este evento quando se comparam os períodos do passado e presente. Interpretamos as cheias no Brasil como um fenómeno cujas características locais podem ser atribuídas principalmente às alterações climáticas provocadas pelo homem”, referem.
“Um dos efeitos da mudança climática é justamente este: ter chuvas mais intensas e em duração menor. O que aconteceu agora foi um sinal muito claro disso”, disse ao Globo Carlos Eduardo Morelli Tucci, professor emérito do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e diretor de hidrologia da Rhama Analysis.
Por esta altura as autoridades começam a preparar um plano de reconstrução da região, mas esperam grandes dificuldades. “É um cenário de guerra no estado. E, como cenário de guerra, vai ter de ter também um pós-guerra”, dizia esta semana o governador do Rio Grande do Sul durante um conferência de imprensa ao lado do Presidente Lula da Silva. Em declarações ao jornal Globo, Marcelo Dutra, professor de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apontava no mesmo sentido: “Vai ser a maior operação de reconstrução de infraestrutura pública, residencial e de indústria.”