O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o cardeal Américo Aguiar estiveram esta terça-feira nos estúdios da Rádio Observador para participarem no programa em que João Gil apresentou o seu novo disco, intitulado “Só se salva o amor”.

Durante a conversa, depois de João Gil tocar a canção “O dia mais bonito” — uma referência ao 25 de Abril —, o Presidente da República elogiou a música e lembrou como aquele foi efetivamente “o dia mais bonito”. Marcelo Rebelo de Sousa falou de um “antes a preto e branco, com censura e com repressão“, e lembrou também os tempos da Assembleia Constituinte.

“Acreditávamos mesmo que éramos livres de criar tudo a partir do zero”, recordou o chefe de Estado, que também apontou que houve “uma história” e “condicionantes”. Marcelo Rebelo de Sousa apontou, também, que ainda há vários “saudosistas” que continuam “por aí” — mas que numa democracia não se pode “calar vozes”, mesmo as menos democráticas. “Aprender a não calar essas vozes é fundamental“, disse.

Marcelo Rebelo de Sousa lembrou que, depois do 25 de Abril, houve muitos que ficaram “frustrados”. “Não houve um 25 de Abril, houve vários. Houve ganhadores e perdedores”, assinalou. “Alguns deles nunca mais ganharam, ficaram um bocadinho saudosistas do 25 de Abril de cada um deles. Continuam por aí.

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Para o Presidente, estes saudosistas situam-se mais “à esquerda do que à direita”, já que o regime se foi encaminhando, ao longo dos últimos 50 anos, mais para a direita. “Cada revisão constitucional ia mais para a direita”, afirmou Marcelo. Mas o chefe de Estado recordou também a existência de uma “direita saudosista do pré-25 de Abril“, que tem “saudades” da “vida”, da “conceção do império” e da “conceção de segurança” da altura.

Sobre se o surgimento de vozes que questionam “instituições, aspetos ou pilares da democracia” choca com os valores de Abril, Marcelo disse que não. “Ao aceitarmos a democracia, aceitámos todas as vozes. As que concordam com o Governo e as que discordam do Governo, as que concordam com o Presidente e as que discordam do Presidente“, afirmou. “Aprender a não calar essas vozes é fundamental. Quando começamos a calar as vozes começamos a viver em ditadura.”

O Presidente da República lembrou uma sondagem recente em que os portugueses apontaram o 25 de Abril como “o maior facto da História de Portugal”, facto que o deixou “estupefacto”. Mesmo os “aspetos negativos” da democracia vão mudando de 10 em 10 anos: se já foi o poder de compra e o nível de vida, agora é a habitação, a sensação de corrupção e alguma insegurança.

[Já saiu o primeiro episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui.]

Mas, lembrou Marcelo, “o saldo dos portugueses hoje, surpreendentemente para muitos, é um saldo com perspetiva histórica“. Ou seja: “Isto não está bem, mas mil vezes o que temos a termos uma ditadura. Não é razão para não querermos melhor.”

Américo Aguiar, por seu turno, nascido menos de um ano antes do 25 de Abril, recordou também a importância daquela data e lamentou a inexistência, atualmente, de “vozes encantatórias” que possam inspirar as pessoas. O cardeal deu o exemplo do “povo de Israel” que, quando fugiu do Egipto, também tiveram “saudades da panela de carne“, mesmo “sob o chicote” dos egípcios — e assinalou que também há hoje quem tenha saudades de um tempo anterior.

Maior falha de 50 anos de democracia “chama-se pobreza”

O Presidente da República assinalou, durante a conversa com Américo Aguiar e João Gil, que a maior falha dos últimos 50 anos de democracia “chama-se pobreza”. “A meu ver, o grande problema em que nós falhámos nestes 50 anos chama-se pobreza“, disse Marcelo, lembrando os números dos portugueses em risco de pobreza em Portugal: 3,7 milhões em 1994; 4,8 milhões no tempo da troika e uma diminuição ligeira aos dias de hoje.

Tirando destes número as pessoas que recebem prestações sociais, há hoje cerca de 1,7 milhões de pessoas em risco de pobreza, o que “é muita gente, e só não é mais por causa das prestações sociais, que fazem a diferença entre 41,8% e 17%” de portugueses em risco de pobreza.

O cardeal Américo Aguiar, que lidera a diocese de Setúbal, falou também do drama da pobreza na sociedade contemporânea e lembrou o papel das IPSS, que têm sido uma “almofada social” em vários momentos da história portuguesa. “Se tirarmos da rua as IPSS e os apoios sociais, esta percentagem é capaz  de ser maior“, disse ainda Américo Aguiar, que lembrou as palavras do Papa Francisco sobre a “globalização da indiferença”.

Este é um disco especial do fundador dos Trovante, também por coincidir com os 50 anos do 25 de abril: a evolução do país nestas cinco décadas está presente nas letras das canções. João Gil tocou ao vivo os temas “O dia mais bonito” e “Não era a vida que eu queria”, deste seu novo disco, acompanhado pelo músico Rui Costa. Cantou também o seu velho êxito Saudade.