Em tempo de comemorações abrilinas, celebra-se Maria Teresa Horta (que esta segunda-feira, 20 de maio, faz 87 anos), figura que abriu caminho para o 25 de abril – revolucionária na forma como, em Portugal, trouxe a questão do corpo e do erotismo para o plano literário. As suas obras anteciparam a Revolução – no sentido culturalmente libertário do termo.

A biografia A Desobediente, de Patrícia Reis, publicada há poucas semanas, inserida na coleção da Contraponto de biografias de autores portugueses, chega em altura oportuna. Leitores de diferentes gerações podem conhecer a história de uma autora que, nascida em 1937, começou a publicar em 1960, com Espelho Inicial, e que, em 1971, editou Minha Senhora de Mim, livro valioso para gerações diversas de leitores — e escritores. Miguel Esteves Cardoso, numa crónica recente, escreveu que Maria Teresa Horta é “muito importante” na sua vida, e na “vida de rapazes” como ele, que nasceram em Portugal nos anos 50. “A poesia dela era uma habitação erótica e afirmativa, aventureira e misteriosa, onde qualquer adolescente se podia refugiar, e sentir em casa, e partir dali para o seu próprio caminho”.

Outro escritor, um pouco mais novo, Francisco José Viegas, dá um depoimento no mesmo sentido para a biografia: “Sigo-lhe a obra desde Minha Senhora de Mim, um livro que requisitei na biblioteca itinerante da Gulbenkian, no Pocinho, antes de vir para a Faculdade, por volta de 78 ou 79 (…) Não era habitual ver uma mulher escrever assim. Nem os homens escreviam assim, pensei, e fiquei impressionado”. Impressionou, Maria Teresa Horta, um país habitual e historicamente púdico e, na segunda metade do século XX, provocado por mulheres audazes como a escritora de Ambas as Mãos sobre o Corpo e a “erótica e satírica” Natália Correia.

A Desobediente é uma biografia que concretiza aquilo que, notoriamente, pretende ser: a história, escrita em modo desenvolto e empático, de uma figura assertiva e polémica (“amam-na, detestam-na”, escreve a biógrafa) que fez um percurso público, entre o artístico e o político, no sentido da libertação de costumes — à semelhança do que fez, de outra maneira, noutro tempo, a sua penta-avó, Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, a Marquesa de Alorna. Um registo que faz uso do episódio vivido que, no modo como é contado, ganha, perante o leitor, contornos ficcionais.

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Título: “A Desobediente”
Autora: Patrícia Reis

Editora: Contraponto
Páginas: 424

Sobre o ponto da empatia, Patrícia Reis, no prefácio, faz notar que, ao concretizar o gesto, sentiu um misto de privilégio e sentido de responsabilidade e refere que a biografia está contaminada pela relação, de amizade, que mantém com a biografada. Os que conhecem o “lado lunar” de Maria Teresa Horta reclamarão que essa dimensão estará pouco exposta – ou se encontra justificada por ocorrências antigas ou encoberta por um manto extenso de qualidades. Para esses, remete-se a honestidade da declaração de interesses da biógrafa e refira-se que a empatia não a impede de registar fúrias e outros momentos de impetuosidade. Questões de feitio.

[Já saiu o segundo episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio.]

A biografada é múltipla, utópica na sua perseguição da liberdade, insubmissa em relação a regulamentos convencionais. “Uma das suas palavras de eleição é ‘Desobediência’”, conta Patrícia Reis, ao justificar o título. “Não queria que lhe dissessem para fazer isto ou aquilo. Queria ser livre. Ao longo da vida, será seu timbre manter-se ativa, atenta, ruidosa, desobediente. Sempre a fazer perguntas”. Uma pulsão que faz com que, à semelhança do que aconteceu com outra biografa da mesma coleção, a da autora de A Ilha de Circe, a sua personagem seja muito mais conhecida do que a sua obra.

Vários tópicos no livro. A fundação da sua personalidade ao mesmo tempo brava e vulnerável. A relação com uma mãe afoita e sombria, a quem muito se ligou e a quem sempre requereu afeto. O relacionamento, difícil, com um pai, muito concentrado no seu ofício de médico, que não a compreendia na sua “diferença”. Os primeiros poemas, escritos na pré-adolescência. O contacto com o “mestre” António Ramos Rosa. A cumplicidade literária com Gastão Cruz e a integração na Poesia 61. O nascimento do desejo. O primeiro casamento, com o qual conquistou a liberdade. O amor absoluto, definitivo por Luís de Barros. A cinefilia. O jornalismo. A crítica literária. A militância no PCP. As ameaças da PIDE. O feminismo. As afamadas Novas Cartas Portuguesas, gesto de denúncias várias, políticas e sociais, de diferentes géneros, que partilhou com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, editado à conta da bravura de Natália, e o subsequente processo judicial. A agressão física de que foi alvo na rua.

Também estão as recusas em receber um prémio das mãos do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho – o D.Dinis, pelo romance A Luzes de Leonor – por discordar, fundamente, das suas opções políticas. e em aceitar o 4.º lugar ex-aqueo do Prémio Oceanos, organizado pelo Itaú Cultural no Brasil, por achar um desrespeito para consigo e para com os seus leitores.

Uma persistente “necessidade de amor”, bastante sublinhada – “ela, com todo o seu dramatismo, numa mística muito própria, é ainda a menina abandonada pela mãe” —, leva que se possa dizer que o título da biografia (também) poderia ser “Carente e Desobediente”. Nas últimas páginas, destaca-se que, em anos recentes, depois de décadas de silêncio institucional, Maria Teresa Horta tem recebido reconhecimentos importantes. A biografia, habilmente escrita por Patrícia Reis, também jornalista e escritora, é mais um deles.