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"O que acontece na infância não fica lá". Os desafios com crianças e jovens institucionalizados aumentam quando deixam casas de acolhimento

Miguel voltou a viver com a família, mas depois veio o arrependimento e acabou “posto na rua”. Juliana percebeu que estar institucionalizada entre os 15 e os 18 anos foi a sua “maior sorte”.

Miguel Pinto (nome fictício), utente da Plataforma de Apoio a Jovens Ex-acolhidos (PAJE), em entrevista à agência Lusa, em Lisboa, 22 de abril de 2024. A Plataforma tem o propósito de dar expressão organizada ao dever de solidariedade e de justiça social entre os indivíduos que em crianças foram vítimas, tendo vivido um longo período em acolhimento residencial. Propõe-se orientar, apoiar, e formar jovens e adultos com vivência de acolhimento residencial, promovendo uma autonomização bem sucedida, transições favoráveis e inclusão social. (ACOMPANHA TEXTO DA LUSA DO DIA 01 DE JUNHO DE 2024). ANDRÉ KOSTERS/LUSA
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Em 2020, 2.228 crianças e jovens deram entrada no sistema de acolhimento

ANDRÉ KOSTERS/LUSA

Em 2020, 2.228 crianças e jovens deram entrada no sistema de acolhimento

ANDRÉ KOSTERS/LUSA

Quase 30% das crianças e jovens que vivem em instituições precisam de acompanhamento psiquiátrico e os desafios aumentam quando deixam o acolhimento, com casos de prisão, toxicodependência, sem-abrigo ou suicídio. Porque o que acontece na infância não fica lá.

Em 2022, 2.228 crianças e jovens deram entrada no sistema de acolhimento, mais 19% do que no ano anterior. Segundo o relatório sobre a “Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens em Portugal”, nesse ano havia 6.347 menores no sistema, 84% dos quais em instituições.

Em média, estas crianças e jovens permanecem institucionalizados quase três anos e meio, mas uma percentagem elevada (21%) fica seis anos ou mais. No caso de Miguel Pinto (nome fictício), foi toda a infância e juventude, já que entrou para uma instituição “a fazer 1 ano de idade”, com um irmão de 2 e outro de 4, levados pelo pai por falta de condições económicas para cuidar dos filhos. Da instituição, que sempre viu “como um lar”, guarda “memórias bastante boas”: “Foi onde me vi a andar e a falar. Eu cresci ali, era a minha vida, a minha família”.

Miguel conta que o pai sempre fez questão de visitar os filhos — enquanto a mãe só o visitou três vezes. Cerca de dois anos depois da morte do pai, e um ano antes de Miguel completar 18 anos, a mãe pediu autorização ao tribunal para o filho ir viver com ela. “Na altura pareceu-me o mais conveniente, mas mais tarde veio o arrependimento“, admite.

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Recorda que a relação dos dois “nunca foi muito próxima” e que se sentia “como um filho bastardo” por causa da má relação com o padrasto. Até que um dia foi “posto na rua” e ficou a “viver na situação de sem-abrigo”. Para se “conseguir manter minimamente” arrumava carros em várias zonas do Porto e acabou por “entrar no mundo das drogas”, tendo consumido durante cerca de dois anos, até alguém o ajudar a encontrar alojamento. Mais tarde encontrou emprego e, a partir daí, começou “a endireitar a vida”.

João Pedro Gaspar trabalhou durante cerca de 25 anos em acolhimento, quando percebeu que “fora do acolhimento é que as necessidades eram maiores”. Por isso criou a Plataforma de Apoio a Jovens (Ex)Acolhidos (PAJE), para apoiar a transição e o pós-acolhimento, quando os jovens deixam as instituições.

João Pedro Gaspar, presidente da Plataforma de Apoio a Jovens Ex-acolhidos (PAJE)

João Pedro Gaspar trabalhou durante cerca de 25 anos em acolhimento

ANDRÉ KOSTERS/LUSA

Segundo o relatório CASA 2022, “mais de metade das crianças e jovens com medida de acolhimento encontra-se na fase da adolescência ou idade adulta”. Acrescenta que 79% dos jovens com mais de 15 anos estão em casas de acolhimento e que é neste grupo etário que há mais problemas de comportamento.

O presidente da PAJE destaca também outros dados preocupantes, como o acompanhamento psicológico regular em 38% do total de crianças em acolhimento, o acompanhamento psiquiátrico (27%) ou a medicação (28%).

“Os problemas não desaparecem quando atingem a maioridade ou saem da casa de acolhimento porque o que se passa na infância não fica na infância e acompanha-nos ao longo da vida”, alerta. Sem alguém que ajude a ultrapassar “algumas nódoas negras sentimentais, as dificuldades são mesmo muito grandes”, defende.

A PAJE, criada em 2016, trabalha em “três grandes pilares”: emprego, habitação e apoio na saúde mental. Mas luta também por alterações legislativas que possam fazer a diferença na vida destes jovens. Uma delas — “a mais recente e talvez a que tenha mais impacto” — é a que prevê o direito ao arrependimento.

Juliana Oliveira foi uma das pessoas que inspirou João Pedro Gaspar na proposta que fez chegar ao Parlamento. Após alguma mágoa inicial, percebeu que ter estado institucionalizada entre os 15 e os 18 anos foi a sua “maior sorte”.

Juliana Oliveira, utente da Plataforma de Apoio a Jovens Ex-acolhidos (PAJE)

Juliana Oliveira é utente da Plataforma de Apoio a Jovens Ex-acolhidos

ANDRÉ KOSTERS/LUSA

Entre os 18 e os 20 voltou a viver com a tia que a acolhera entre os 13 e os 15, mas um problema de saúde da tia deixou-a sem suporte familiar estável e a vontade de continuar a estudar ficou em causa. Estava a concluir o 12.º ano e na iminência de ter de começar a trabalhar quando, em conversa com o psicólogo da escola, surgiu a PAJE.

“Com alguma luta da PAJE consegui voltar à minha casa de acolhimento, só que noutra vertente (…), consegui entrar numa que era para a saúde mental, apesar de fisicamente estar na casa de acolhimento”, contou Juliana. Para isso foi preciso dar “voltas ao sistema” porque a legislação então em vigor não permitia que um jovem que pedisse para sair — algo que pode acontecer a partir dos 18 anos — pudesse depois arrepender-se e voltar ao sistema de acolhimento.

“Percebi, com mais um ou outro caso, que não tínhamos de contornar a lei, tínhamos era de alterar a lei e daí que tenhamos insistido tanto”, disse João Pedro Gaspar.

Em 1 de janeiro de 2024 passou a ser possível os jovens regressarem ao sistema, desde que para estudar ou ter formação, no máximo até aos 25 anos. Um apoio importante porque, “apesar de ter algumas ferramentas para lutar pelo futuro”, Juliana sabia que, sem voltar ao acolhimento, os seus “objetivos iam ficar para longo prazo”.

Para Carina Figueiredo (nome fictício), acolhida durante 15 anos e que deixou o sistema há nove anos, “a questão da preparação no pós-saída era uma falha muito grande”. No seu caso, conseguiu um acordo com a instituição onde vivia para prolongar a estada durante o primeiro ano da faculdade e organizar melhor a saída. Lembra também toda a ansiedade de pensar se teria bolsa de estudos ou como seria quando acabasse a faculdade: “Era sempre e depois, e depois?”.

Na PAJE, João Pedro Gaspar tem acompanhado “casos que correram mal” e em que jovens ex-acolhidos acabaram a viver como sem-abrigo, com problemas de saúde mental, com dependências, presos. Há até casos de tentativas de suicídio.

É dos jovens ex-acolhidos que estão detidos que o presidente da PAJE diz receber “os abraços mais fortes e mais emotivos”, uma vez que, em muitos casos, a associação é a “única visita” que têm na prisão. “Estou preso há dois anos e três meses e a PAJE tem sido importante porque tem dado aquele apoio moral. Tem-me ajudado psicologicamente”, conta Miguel, que sente mágoa e solidão.

João Pedro Gaspar diz que continua a olhar para todos estes jovens como crianças e “enquanto vítimas, da família e da sociedade”. Tal como o Instituto de Segurança Social que, no relatório CASA 2022, o responsável admite a necessidade de proteger e acompanhar os jovens que saem do acolhimento.

Segundo o relatório, dos 989 jovens com 18 anos ou mais que saíram do sistema de acolhimento, foram identificados 61 casos em se poderia alterar a “situação de meio natural de vida em que o jovem vive para uma medida de colocação”, o que “traduz uma maior vulnerabilidade dos jovens com percurso em acolhimento”. Em 2022, saíram 2.250 crianças e jovens do sistema de acolhimento, 1.469 dos quais com 15 anos ou mais.

Reportagem de Susana Venceslau (texto), André Kosters e António Cotrim (fotos), da agência Lusa.

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