Os portugueses gostam do calor. Dêem-nos sol e fazemos a festa. Chuva nem tanto. Mas talvez as coisas mudem neste Europeu. Às 22h30 da noite, estavam 26º, com sensação térmica de 28º na Arena Auf Schalke, em Gelsenkirchen. Uma noite quente, verdadeira de verão, mas com futebol negativo, frio e sem sequer um ligeiro sol de inverno para a nossa Seleção. Portugal vai para os oitavos-de-final em primeiro lugar do grupo, mas com o peso da derrota frente à Geórgia, equipa com pior ranking deste Euro 2024 — mas que engana, não se enganem. À vista ficaram novamente as fragilidades já demonstradas anteriormente, mas também uma nova: as segundas linhas não são mesmo as mesmas das primeiras.

Roberto Martínez rejeitou fazer revoluções no onze inicial para a última jornada da fase de grupos, mas foi mesmo isso que fez: só três jogadores — Diogo Costa, João Palhinha e Cristiano Ronaldo — continuaram na escala face aos escolhidos para o embate com a Turquia. Todos os outros saltaram do banco e as diferenças fizeram-se sentir, principalmente na comunicação e no conforto com e sem bola. E isso viu-se desde o primeiro minuto. Aliás, desde o segundo. António Silva — numa exibição para esquecer — tocou para o meio, sem olhar, e não viu que por lá só jogadores de vermelho, que hoje não vestimos. Mikautadze esticou na corrida de Kvaratskhelia, que atirou para o golo de um país. Explosão gigantesca na Veltins Arena, para uma Geórgia que precisava de ganhar para poder passar. Ronaldo aplaudiu o defesa do Benfica, que não resistiu a pedir desculpa aos colegas.

Portugal começava a perder e, já diz o nosso ditado, o que nasce torto jamais se endireita. Portugal até tinha bola e fluxo ofensivo — aos 20′ minutos eram 75% de posse e 23 ataques, contra 25% e 2 ataques apenas dos georgianos —, mas sempre inconsequente e, principalmente, a ritmo de domingo. Diogo Costa alertou para isso mesmo, no fundo da sua impotência: não foram raras as vezes em que gritou com Danilo ou João Neves, muitas vezes os primeiros a construir, para a falta de velocidade a sair com a bola. E a meio da primeira parte era isso mesmo: muita parra, pouca uva, um remate de Palhinha de meia distância, um livre de Ronaldo e pouco mais. E muito, muito calor. Aos 25′, os jogadores portugueses tiveram mesmo de ir ao banco para beber água, mas nem isso ajudou. Sobravam as boas arrancadas de Pedro Neto e Chico, e a exibição de Palhinha. Félix foi também aparecendo a tempos, para se eclipsar na segunda parte.

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A equipa não estava confortável no jogo — nunca esteve — e isso notava-se a léguas. Muitos passes falhados, um marasmo de ideias no jogo interior — mais uma vez — e muita ânsia. Nos duelos, nas faltas, no último passe. E nos protestos. Aos 27′, Cristiano Ronaldo caiu na área, agarrado por um defesa georgiano e foi esse gesto que fez questão de mostrar ao árbitro. Ao árbitro, ao árbitro assistente, ao quarto árbitro e só escapou o VAR por estar longe. O capitão esteve sempre muito ansioso ao longo de toda a partida e nota-se que o facto do frasco de ketchup ainda estar fechado não está a ajudar. Recebeu amarelo por protestos e mesmo 20′ minutos depois, quando o árbitro apitou para o final da primeira parte, ainda estava a quente: gritou de novo com o assistente e com o quarto árbitro. Até Martínez teve de gritar e pedir calma. Demasiada ânsia para tão pouco futebol da equipa, que saiu para o intervalo com mais bola, mas sem plano para marcar.

A segunda parte não saiu melhor. Palhinha saiu, com o risco de receber amarelo com tamanha intensidade da primeira parte e falhar os oitavos, e entrou Rúben Neves. Não ajudou. Portugal perdeu aí a capacidade de destruição que o número 6 estava a dar e que evitava males maiores. Não só a Seleção manteve o bloqueio de ideias, como permitiu maiores aventuras à equipa da Geórgia, principalmente em contra-ataque. Kvaratskhelia só não fechou o jogo aos 50′ porque o remate saiu frouxo. Três minutos depois, a equipa de Martínez não teve a mesma sorte: António Silva — de novo — tocou ao de leve na perna de Luka Lochoshvili. A decisão pareceu forçada, mas o VAR deu penálti e o central do Benfica voltava a estar na imagem dos ecrãs gigantes do estádio. Da marca dos onze metros, Mikautadze marcou e voou para o topo da tabela dos melhores marcadores do Euro 2024. Voou mais que Diogo Costa, que bem se esticou, mas não chegou ao penálti exímio do jogador do Metz.

A partir daqui, a Geórgia jogou com o que tinha e Portugal procurou o que não tinha. Quando aparecia um rasgo, normalmente de Chico Conceição, Pedro Neto ou Diogo Dalot, um braço levantava-se para dizer presente. Atenção a este homem. Giorgi Mamardashvili defendeu tudo o que havia para defender e aos 54′ minutos fez, talvez, a melhor defesa deste Campeonato da Europa, a remate do lateral do Manchester United. Martínez mexeu e retirou Cristiano Ronaldo e António Silva. Foram, porventura, os dois jogadores mais desinspirados em campo. O capitão esteve sempre encaixado no meio dos três centrais da Geórgia e aí faltou também as entradas de Francisco e Félix para criar espaço, sempre muito presos à ala. À saída, Ronaldo não protestou, mas pontapeou uma garrafa. Esperemos que a próxima seja a do ketchup, porque é muito importante que Cristiano ultrapasse a ansiedade que passa até para a equipa por não marcar.

Fotogaleria. Cristiano Ronaldo leva amarelo por protestos contra a Geórgia e não gostou

Aqui, a Geórgia fez marcha-atrás, Portugal teve mais mobilidade na frente, e apareceu mais vezes junto à área de Mamardashvili. E aí já com uma ideia. Uma má ideia: do futebol pastelão que procura uma abertura sem nada abrir, surgiu o cruzabol. A Seleção faz 38 cruzamentos durante a partida, 23 deles na segunda parte e só 8 (21%) encontraram alguém vestido com padrão de azulejos. No final, a Geórgia teve as melhores ocasiões. Atirou três vezes à baliza e Portugal cinco. Soube ser pragmática, secou as alas, sabendo que pelo meio não haveria caminhos lusos, e apostou na genialidade de Kvaratskhelia e na capacidade de contra-ataque. Foi feliz e com justiça. Numa noite com tanto calor e com tantos pedidos de água, a Geórgia deu-nos um balde de água fria. E, quem sabe, um banho de humildade para as batalhas que se avizinham.

A pérola

  • Kvicha Kvaratskhelia. Vamos lá todos aprender a escrever o nome deste rapaz, porque ele merece. Genial. No drible curto, na solidariedade, na finalização. Kvaradona tem vários momentos em que, mesmo encurralado por dois ou três portugueses, sai a jogar como se nada fosse. Era um Kvicha que Portugal pedia hoje e, mais uma vez, Félix não o soube ser. Destaque ainda para Palhinha, que foi o melhor de um meio-campo onde João Neves não foi tão compatível, e Pedro Neto. Subiu e desceu sem se cansar e sempre a agitar o jogo.

O joker

  • Mamardashvili. Quem o conhece, sabe que tem sido das poucas coisas boas dos últimos anos do Valência. A defesa a remate de Dalot foi talvez a melhor deste Euro 2024 e esteve sempre de sangue nos olhos para ir aos duelos na área. Uma barreira que vai ser difícil ultrapassar.

A sentença

  • Não há mais tempo para experiências. Roberto Martínez ensinou-nos que em equipa que ganha não se mexe. Nunca quis arriscar nas convocatórias. Quis sempre ter uma base sólida que se mantinha. Hoje, essa base não esteve presente — e de forma legítima, atenção — e vimos que não é a mesma coisa. Prometeu que não haveria revolução, mas foi o que aconteceu no onze. E aquilo que as segundas linhas demonstraram não deu segurança. A partir de agora, é voltar à gestão de clube, porque a base é mesmo “aquela base”.

A mentira

  • Talvez os gritos aos quatro ventos das obras de altruísmo de Ronaldo tenham sido manifestamente exagerados. Não há como enganar: o capitão está ansioso por ainda não ter marcado. Está muito expectante, muito preso à posição, e com blocos baixos não consegue fugir à linha. Hoje, a cada coisa que não corria bem, Ronaldo protestava e protestava e protestava. Viu um amarelo desnecessário e deu pontos a quem acha que mexe pouco com o jogo. É canalizar a ânsia e a raiva para o pé direito que ainda vai usar neste Europeu. Esperamos.