Associações de direitos humanos e grupos feministas pelo mundo inteiro estão a apelar ao boicote da reunião das Nações Unidas no Qatar, depois de a organização ter convidado os talibãs a participar, mas não ter assegurado a presença de mulheres afegãs no encontro.

A Human Rights Watch e a Amnistia Internacional acusam a ONU de ceder às exigências dos talibãs para garantir a presença desta delegação na Doha3, que se realiza entre 30 de junho e 1 de julho. “A ONU, fazendo todos os esforços para conseguir a participação dos talibãs, elaborou uma agenda que exclui os direitos humanos e uma lista de convidados que exclui as mulheres afegãs das reuniões principais”, escreve a HRW em comunicado. “Ao ceder às condições dos talibãs para assegurar a sua participação nas reuniões corre-se o risco de legitimar o sistema de opressão institucionalizado com base no género”, diz ainda a AI.

O jornal Guardian noticiou que teriam sido os talibãs a recusar a presença de mulheres afegãs no encontro. Roza Otunbayeva, a enviada especial da ONU no Afeganistão, garantiu que “ninguém ditou” condições à organização sobre o encontro, mas confirmou que não estarão presentes mulheres afegãs. A organização já indicou, escreve ainda a Reuters, que Otunbayeva e a responsável dos assuntos políticos da ONU, Rosemary DiCarlo, bem como representantes de vários países vão reunir-se separadamente com grupos da sociedade civil afegã depois de se reunirem com os talibãs.

Doha3 é a terceira de uma série de reuniões que as Nações Unidas estão a organizar na capital do Qatar. O objetivo é abordar alguns dos temas que marcam a atualidade internacional. No primeiro encontro, em maio, o secretário-geral da ONU tinha reunido um grupo de enviados ao Afeganistão para debater formas da comunidade internacional lidar com o regime dos Talibã, sem ter convidado o grupo para este diálogo. Já na segunda reunião, apesar de convidados a participar, recusaram. Na altura o secretário-geral da ONU afirmou que exigiram condições inaceitáveis — pediram que representantes da sociedade civil afegã fossem excluídos e que fossem tratados como os governantes legítimos do país.

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Desde que assumiram o poder, em agosto de 2021, o grupo não foi reconhecido pela comunidade internacional, e tem reprimido drasticamente os direitos das mulheres. Estas não podem frequentar o ensino secundário ou superior, ou viajar sem a presença de um guardião masculino.

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A resposta acesa em defesa das mulheres

Para Roza Otunbayeva, a enviada especial da ONU no Afeganistão, é preciso “ser realista quanto aos resultados que cada reunião deste processo pode produzir”. Num discurso no Conselho de Segurança, na passada sexta-feira, a representante das Nações Unidas reconheceu que a “reunião gerou expectativas que não podem ser cumpridas de forma realista de uma só vez”, mas que ainda assim “estão a tentar estabelecer um processo e preservar um importante mecanismo de consulta”.

Otunbayeva indicou que as reuniões se vão focar em algumas das “questões mais importantes da atualidade”, referindo-se a assuntos dos setores dos negócios privados e bancos e da política antinarcóticos. Ambos são sobre as mulheres, sublinhou, explicando que a mensagem a passar aos talibãs será: “As coisas não funciona assim. É preciso ter mulheres à volta da mesa. Também temos de lhes dar acesso [ao setor dos] negócios”. Já sobre a a questão das drogas recorreu a um exemplo. “Digamos que há cinco milhões de pessoas com vício no Afeganistão, mais de 30% serão mulheres”, apontou.

Também o porta-voz da ONU preferiu olhar para os pontos positivos, encarando o encontro como um “processo e não uma coisa única” e que tem “o objetivo de incentivar as autoridades a colaborar com a comunidade internacional em beneficio do povo afegão”. Stepháne Dujarric garantiu, no domingo, que “os direitos das mulheres e das raparigas estarão em destaque em todos os debates, da parte da ONU”.

Fora da organização, as críticas não tardaram. Agnes Callard, secretária geral da Amnistia Internacional, acusou a reunião de não ter “credibilidade” “se não abordar adequadamente a crise dos direitos humanos no Afeganistão e não envolver as mulheres defensoras [dos mesmos]”.

A Human Rights Watch, foi ainda mais vocal. A diretora, Tirana Hassan, também sublinhou a falta de “credibilidade da ONU enquanto defensora dos direitos das mulheres” e identificou a cedência às exigências dos talibãs como “uma legitimação dos [seus] abusos”.

No site, a ONG partilhou um comunicado no qual acusa a ONU de criar uma agenda especificamente para este encontro que exclui os direitos humanos – vai focar-se em negócios privados e no combate ao narcotráfico – num “esforço vergonhoso de apaziguar os talibãs”. A Human Rights Watch lembra ainda que os grupos de mulheres afegãos já apelaram ao boicote.

Os apelos começaram bem antes da ONU ter respondido às críticas, durante o fim de semana passado. Logo no dia 30 de maio, um grupo feminista afegão, o Movimento Sábado Roxo, publicou um comunicado em que defende que as negociações “não devem prosseguir enquanto não forem restabelecidos os direitos, a justiça e as liberdades das mulheres afegãs”. Apontam ainda que, apesar da estratégia diplomática ser às vezes necessária, no caso do regime talibã, isso “mina os esforços internacionais de responsabilizar o grupos pelos crimes cometidos”.

Também o grupo Caravana da Justiça pelas mulheres, Justiça pelo Afeganistão apelou ao boicote. Num comunicado publicado no dia 2 de junho, o coletivo apela às mulheres em específico e cidadãos em geral que enviem mensagens de apoio, vídeos e os seus nomes para se juntarem à caravana. Em menos de uma semana, reuniram uma centena de apoiantes.

Nas redes sociais, multiplicam-se os apelos ao boicote. Heather Barr, uma das diretoras da Human Rights Watch, considera a inclusão dos talibã à mesa da ONU como uma “traição, não só às mulheres afegãs mas a todas as mulheres do mundo”. “O que está a acontecer no Afeganistão é a mais grave crise dos direitos das mulheres no mundo e a ideia de que a ONU convocaria uma reunião como esta e não discutiria os direitos das mulheres e não teria mulheres afegãs na sala é inacreditável”, acrescentou, citada pelo The Guardian.