Alia Trabucco Zerán já se tinha notabilizado com Limpa, publicado em Portugal pela Elsinore, a mesma editora que nos traz A subtração, que foi finalista do Man Booker International Prize e recebeu o Premio Mejor Novela Inédita del Ministerio de las Culturas de Chile. Nascida em 1983, a autora chilena tem impressionado a crítica e os leitores.

Em A subtração (originalmente publicado antes de Limpa, em 2015) prosa e encaixe da prosa impressionam no mesmo movimento. Narrada por dois amigos, a história vai ultrapassando os seus dias, sendo, em vez disso, um relato, um mergulho, sobre a história do Chile. Iqela e Felipe são filhos de ex-militantes da resistência contra Pinochet. No que contam, o passado acaba por ser sempre presente, e os traumas sociais aparecem por serem traumas pessoais. O mote para a narrativa, aliás, é o regresso de Paloma, que Iqela conhecera anos antes, e que volta do exílio para repatriar o corpo da mãe, entretanto desviado para a Argentina.

Os três lançam-se numa viagem para o país vizinho e o leitor viaja com eles, através de uma prosa escorreita, bonita (se bonita é adjectivo para isto), forte, e de um enredo cujo movimento é muito mais do que o das rodas a girar: em vez disso, o que Trabucco Zerán traz ao diálogo é o movimento dos tempos, das imposições de poder, das resistências. A memória, por isso, é quase personagem principal, estando em cada momento, em cada parágrafo.

Os capítulos vão sendo escritos à vez entre Felipe e Iquela. Os do primeiro têm o seu quê de sombrio, com o narrador obcecado com os mortos que o regime de Pinochet foi deixando. O pós-Allende aparece, por isso, como um período grotesco, sombrio, e o Chile é apresentado como tendo o cheiro de cadáveres. Para o leitor, fica claro o trauma social em causa, assim como o impacto do golpe de Estado que depôs Allende. Por sua vez, os capítulos de Iquela têm uma narrativa mais convencional – mesmo incluindo com frequência os seus pensamentos, a personagem vai fazendo com que o enredo avance. Filha de militantes durante a era Pinochet, é também ela que vai trazendo, em segunda mãos, os eventos traumáticos – ou em primeira, se considerarmos também traumático ter crescido com aquele passado às costas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR


Título: “A subtração”
Autora: Alia Trabucco Zerán
Tradução: Isabel Petermann

Editora: Elsinore
Páginas: 192

Ao longo do romance, o ambiente tecido sabe a opressão, e aqui Trabucco Zerán conjuga bem os elementos. A nuvem de poeira que envolve o céu, e que se baseia nas erupções vulcânicas do Chile, cria um panorama quase metafórico, com um cobertor de pó em cima do país que ainda lida com o luto, a dor e a morte dos anos em que Pinochet estava no poder.

A parte mais interessante, ao longo de todo o enredo, será a forma como a memória é trabalhada, e como o impacto da política se estranha na pele. Aliás, logo no início, temos a descrição da noite de 1988 em que Pinochet perdeu as eleições: as crianças brincavam, os adultos viviam o momento como um dos cruciais das suas vidas. Assim como assim, a guinada que a vida deu foi de tal forma que a noite aparentemente inócua, para as crianças, se tornou também fundacional. É que, vivendo-a, sentiram ali também o nervosismo, a histeria:

Atropelando-se, passando frenéticos de um lado para o outro, os convidados falavam cada vez mais alto, mais depressa, ouvindo-se cada vez mais barulho e menos palavras. O rádio sobrepunha-se às suas vozes: segunda contagem de votos. A minha mãe deslocava-se nervosamente, ia e vinha. O que é que acham?, perguntava para o vazio, para quem quisesse responder-lhe. Perguntava se achavam que os militares iam respeitar as eleições, se queriam beber mais, se queriam mais gelo, o som do rádio mais alto, e depois soltava umas gargalhadas metálicas, um riso de que me lembro bem.” (p. 16/17)

Preparando-se para a vida pós-Pinochet, as então crianças nunca deixam de sentir o peso daqueles anos macabros, de obcecar com mortes, com exílios, com gente que teve de desistir da vida que tinha por causa de um ditador sanguinário. A autora trata com mestria tudo isto, equilibrando a narrativa diante de um cenário desequilibrado, criando relações empáticas com o leitor – que assiste, participa, que se mexe com elas. A prosa, limpa, vai ao osso: depurada, exerce impacto emocional. E, ao longo da leitura, texto e contexto fundem-se para darem a quem lê uma experiência de recepção artística completa.

Alia Trabucco Zerán escreveu um romance forte. Partindo de raízes históricas, voou como só a ficção sabe fazê-lo – mantendo as pernas no chão. Por isso, em A subtração, tudo é chão: a dor do dia-a-dia, a relação com a morte, a necessidade de se avançar apesar das amarras, a esperança de que há um futuro claro apesar do passado negro. A juventude, que herdou tempos mais pacíficos, usa a memória da guerra e tem a certeza de que a paz pode ser dada, mas que nunca é um dado adquirido com projecção garantida no futuro.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia