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Alia Trabucco Zerán

Alia Trabucco Zerán

"Limpa": a memória de uma mulher que Alia Trabucco Zerán transformou em livro

Nas páginas de "Limpa", o insustentável peso do trabalho doméstico ganha uma voz — e um nome. É a primeira vez que a autora chilena é publicada em Portugal.

“Tudo se resume a saber quem limpará quem.” As palavras de Camus estão na primeira página de Limpa, romance de Alia Trabucco Zerán que acaba de ser publicado em Portugal, e são o primeiro embate com o conflito de classes que percorre todo o terceiro livro da autora chilena: o trabalho doméstico.

A epígrafe é categórica e desafia-nos a posicionarmo-nos entre o preto e o branco, os que limpam e os que sujam, mas “o livro lida com os cinzentos”, assevera a escritora em entrevista ao Observador. “Uma empregada doméstica devia usar outras palavras, não é? Uma voz apressada e desajeitada, cheia de ches e de jes. Outra voz para se distinguir das restantes vozes. Para ser identificada sem ser preciso vestir a bata”, diz Estela, a protagonista e narradora de Limpa, o primeiro livro da autora disponível em Portugal (edição da Elsinore), que conta a história de uma doméstica que trabalha para uma família de classe média no Chile contemporâneo, mais precisamente em 2019, tempo de uma revolta histórica que levou mais de um milhão de pessoas a tomar as ruas para protestar contra a desigualdade social no país.

Limpa é um retrato desse mal estar social profundo, de uma convulsão que começa dentro de casa e que culmina na Alameda de Santiago do Chile. É um olhar pela fechadura do dia-a-dia de uma mulher. “Chamo-me Estela, estão a ouvir? Eu disse: Es-te-la-Gar-cí-a.” É um retrato com um nome, contrariando o apagamento criado pelos discursos que reduzem não raras vezes personagens a “empregada”, “ama”, “homem do lixo”. “Os nomes são importantes”, adverte a mãe de Estela, a dada altura. “Os teus amigos não têm nome, Lita? Chamas-lhes rapariga, rapaz? Chamas animal à vaca?”

Ainda que a sinopse do livro não anuncie, Limpa é um monólogo. “Para mim é um monólogo. É basicamente uma mulher a falar, sem parar”, admite Alia Trabucco sobre as 248 páginas que num só fôlego relatam sete anos passados entre camas para lavar, comida para fazer, camisas para passar, fraldas para mudar. Sete anos relatados por quem, tal como sua a mãe, sai do campo e vai para a cidade para ser doméstica e ama de uma família composta por um casal e uma filha recém-nascida. “Esta não é uma família que a trata mal. Não é uma família posh, é classe média-alta, profissional. Tratam-na bem, pagam-lhe o salário”, avisa a escritora. “São as microagressões, este tipo de microviolência com que os leitores se vão identificar às vezes”, continua.

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"Limpa", de Alia Trabucco Zerán; tradução de Isabel Pettermann; edição da Elsinore

Se não há abuso, se não há terror, se não há tragédia, “esperavam uma [voz] mais mansa e agradecida?”, interroga então Estela, expondo preconceitos, abrindo feridas. Ela que também diz: “Se calhar somos isso quando nascemos, nunca me tinha ocorrido, somos uma enorme cicatriz que antecede as que virão depois”. O trabalho doméstico é uma ferida que está longe de sarar. Em 2018, existiam em Portugal 109 mil trabalhadores domésticos, e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimava que cerca de 106 mil eram mulheres (97%). “A pandemia da Covid-19 expôs as vulnerabilidades persistentes do trabalho doméstico no mercado de trabalho”, revelava um relatório publicado em 2021.

“Sabem o que há no coração de uma história como esta? Meias sujas, camisas com manchas de sangue, uma menina infeliz, uma mulher que vive das aparências e um homem calculista”, sumariza a protagonista da história, cheia de tarefas invisíveis, repetitivas, envoltas numa falsa intimidade entre habitantes do mesmo espaço. Quando Zerán a começou a desenhar no seu imaginário, algures em 2017, questionou-se: “E se eu criasse esta mulher com um nome, com uma voz, com uma voz particular, e não uma voz genérica de como nós achamos que as empregadas domésticas devem falar?”

“Durante muito tempo, achei que este romance tinha outra voz. Achei que não ia ser só um monólogo, mas que haveria um voz em coro, uma voz plural. Escrevi tanto, tentei tanto, mas não funcionava. Era uma voz plural, abstrata”, recorda. Concluiu que precisava de caminhar para o concreto, de particularizar, de lhe dar um rosto, um corpo – o que sofre com o peso do trabalho de manter uma casa asseada e ordenada. “A limpeza a fundo era feita às segundas. Que disparate, eu disse ‘era feita’. A limpeza era eu quem a fazia”, descreve a protagonista do romance, marcado por passagens carregadas de fisicalidade. Alguns momentos evocam Monólogo de Uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa, espetáculo de Sara Barros Leitão que se estreou no final de 2021 e que questiona o funcionamento do trabalho doméstico hoje. A comparação não é descabida. Zerán reconhece o tom teatral e admite que já recebeu chamadas para levar o livro à cena. “Provavelmente vai ser adaptado para teatro, é algo que está agora a ser discutido”, confirma.

"Quem é o dono da linguagem? Porque é que assumimos que algumas palavras podem ser ditas por algumas pessoas de determinadas classes, mas não outras? Há um classismo nisso'”

Tal como em palco a atriz e encenadora portuguesa tentou fazer — e Marco Martins fará também com Pêndulo, que se debruça sobre o mesmo tema e se mostra no São Luiz em junho —, o grande motor na criação de Limpa foi “tentar criar uma voz para uma personagem que normalmente é silenciada”, afirma a autora. A figura de quem desempenha este tipo de trabalho “é alguém que quando aparece, em representações, seja em romances ou em fotografias, filmes, é sempre uma personagem secundária. Sempre que é uma protagonista, há este tipo de voz de que estamos à espera. O desafio para mim foi trair esse pacto”.

Zerán fê-lo, também, através da linguagem. “Esperamos ouvir um tipo de voz com a utilização de determinadas palavras e uma certa atitude passiva e agradecida, de não usar palavras compostas. Essas são questões que fiz a mim mesma e que o leitor vai fazer. Quem é o dono da linguagem? Porque é que assumimos que algumas palavras podem ser ditas por algumas pessoas de determinadas classes, mas não outras? Há um classismo nisso. Ela trai esse pacto e usa estas palavras e depois perguntar-nos: ‘quê, não posso usar isso?’”

Foi na sua obra anterior, Las Homicidas, vencedora do prémio British Academy, em 2022, e por enquanto sem edição portuguesa, que Alia Trabucco encontrou o ponto de partida para este romance. “É normalmente o que acontece com livros, um livro chama o seguinte, de alguma forma”, explica a autora. Para Why Women Kill (título da tradução inglesa), Zerán mergulhou na história de vários homicídios cometidos por mulheres e analisou a forma como a sociedade chilena reagiu aos crimes, numa série de ensaios que explora a relação entre crime, género e feminilidade. “Havia um caso em particular sobre uma empregada doméstica que nos anos 1960 basicamente matou os filhos e filhas dos seus patrões. Foi um caso no qual fiquei bastante interessada e escrevi uma pequena história sobre tentar perceber a sua posição”, conta. “Começou com o meu interesse em mulheres assassinas, mas fiquei ainda mais interessada na posição dela enquanto trabalhadora, naquelas condições”. Por isso, ao primeiro virar de página de Limpa, o desfecho da história já lá está: “Querem mesmo saber? A menina morre”, “a menina morre e continua morta seja qual for o meu início”, lê-se.

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Alia Trabucco Zerán nasceu em Santiago de Chile, cidade sul-americana onde se passa a narrativa de "Limpa"

Getty Images

Alia garante que o melhor que já lhe disseram sobre o livro é que é um “romance incómodo”. Será esse o seu propósito enquanto escritora, incomodar? “Este é o meu terceiro livro e nunca me senti confortável, nunca. A literatura é onde consigo explorar o desconforto”, diz a autora que vive em busca de ocasiões “em que acabamos o livro, mas o livro não acaba”. “Gosto quando acabamos livros cheios de questões. Talvez com tristeza, com alguma angústia, e perguntamo-nos: porquê? A literatura que prefiro escrever e ler é a literatura que interpela, que te faz questões, que te faz repensar a tua posição, os teus valores. Fechar um livro e sentir-me satisfeita era algo que para mim, hoje, seria suspeito.”

Zerán nasceu em Santiago do Chile em 1983, no seio de “uma família que sofreu as consequências da ditadura muito profundamente”. Filha de um pai cineasta, Sergio Trabucco, e uma mãe jornalista, Faride Zerán, “todas as minhas memórias de infância são da ditadura”, lembra. Talvez por isso soubesse desde sempre que queria ser advogada “para fazer justiça num país em que não havia justiça para pessoas que eram torturadas ou que estavam na prisão ou em exílio”. Formou-se em Direito na Universidade do Chile, mas bastou-lhe as primeiras experiências em tribunal para perceber que não era por ali. ”Foi demasiado doloroso trabalhar em direitos humanos, demasiado doloroso, demasiado pessoal. Decidi que preferia trabalhar com linguagem de uma forma diferente, com o poder da linguagem e não com a linguagem do poder.”

Acabou por estudar literatura hispano-americana na University College de Londres e estreou-se com La Resta, que foi publicado em português no Brasil, através da Editora Moinhos, sob o título A Subtração. É um livro “sobre a dor, a ferida da minha geração, a geração que não experienciou a violência diretamente, a violência da ditadura do Pinochet, mas que tem a ferida da experiência dos seus pais”, resume. Foi publicado em 2015 e finalista do International Booker Prize, importante prémio de ficção traduzida, colocando-a no mapa de nomes a seguir na literatura contemporânea em língua espanhola. Em 2019, lançou Las Homicidas e, nesse mesmo ano, foi galardoada com o importante prémio Anna Seghers. Pese embora tenha largado a advocacia, olhando para a sua obra facilmente se constata que o sentido de justiça a contamina, seja nas temáticas como na abordagem, mas a escritora recusa o rótulo de justiceira e revela pragmatismo na separação entre justiça e literatura: “Não acho que a literatura possa fazer justiça. É para isso que serve a justiça. Escrevi sobre isso quando recebi um prémio na Alemanha, que justiça é como fazer pão, tem de ser feita. A literatura funciona de forma simbólica, é diferente. A ideia do que é justo ou injusto, a violência, quem é culpado de cometer violência, quem recebe essa violência, são tudo questões que estão no meu trabalho. Continuo a trabalhar em coisas novas e lá estão elas de novo. Não é tão claro quanto fazer justiça, mas é um tópico que está na minha literatura”.

"Quem é que está a explorar esta mulher? A resposta geral tende a ser que é a mulher, que é a patroa que a está a explorar. Assumimos que o trabalho doméstico pertence à mulher. É uma leitura que invisibiliza o facto de ser uma exploração mais complexa, que envolve toda a família e toda a sociedade"

O mesmo se aplica ao feminismo, que não é tema dos seus romances, mas antes lente através da qual vê o mundo e o descreve: “É parte de mim enquanto pessoa, enquanto mulher, e isso significa que influencia o meu trabalho. Mas não acredito que a literatura tenha de ser pedagógica nesse aspeto”. “O meu trabalho é envolto nestas questões e é influenciado pelo feminismo, mas não acredito que a literatura, e a ficção em particular, devam ser escritos na perspetiva de serem exemplos a seguir.”

Limpa, por exemplo, convoca uma questão feminista, crê. “Quem é que está a explorar esta mulher? A resposta geral a essa questão tende a ser que é a mulher, que é a patroa que a está a explorar. Porque assumimos que o trabalho doméstico pertence à mulher. E por isso é a exploração dela a que mais notamos. É uma leitura que invisibiliza o facto de ser uma exploração mais complexa, que envolve toda a família e toda a sociedade.”

Já a trabalhar no próximo livro, Alia ocupa-se, por estes dias, com outras leituras. “Como não estudei literatura, sinto-me sempre uma impostora. Estou constantemente a ler clássicos para compensar o facto de ter sido advogada”, admite. Por isso se rodeia de livros, apesar de jurar fidelidade a certos autores, como Herta Müller, a quem sempre torna. “É engraçado, porque a minha escrita não tem nada a ver com a dela. Mas desperta-me, afeta-me de uma forma que a leio e quero escrever, não como ela, mas simplesmente escrever. A escrita dela provoca-me isso”, diz. Um outro autor provoca-lhe o mesmo efeito: o seu compatriota Carlos Droguett. “Sou muito leal a esses autores que me provocam a escrever, mas diria que sou uma leitora muito aberta. Leio caoticamente, ficção e não ficção, leio muitos autores latinoamericanos.”

Elenca Lina Meruane, Nona Fernández, Fernanda Melchor, todas com obra publicada em Portugal pela Elsinore. “Leio muitas das minhas contemporâneas e admiro o seu trabalho, e depois volto e leio Frankenstein.” Com muita literatura do outro lado do Atlântico a chegar às prateleiras — é intenção do editor publicar os inéditos de Zerán, mas sem previsão temporal — a escritora reconhece o “momentum” que hoje vive a literatura latinoamericana e atribui-o “ao movimento feminista que está a tentar questionar o cânone literário”. “Se estudares literatura basicamente só lês homens. Isto está a mudar por causa dessa pressão política, que está a gerar mais interesse numa literatura que sempre esteve lá. Literatura escrita por mulheres e por mulheres latinoamericanas. É uma boa coincidência, de interesse político e o facto de haver muito boa literatura para se ler.”

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