Didier Deschamps é difícil de ler. Tão depressa está a fazer piadas nas conferências de imprensa, entre sorrisos e gargalhadas, como está de semblante fechado junto à linha técnica, sem espaço para grandes emoções. Pelo meio, está nas meias-finais do Euro 2024 à procura de ser tornar o primeiro treinador de sempre a ser campeão europeu e mundial como jogador e selecionador.

Aos 55 anos, já levou França à conquista do Mundial 2018 e procura juntar o Euro 2024 a esse feito e ao Mundial 1998 e Euro 2000 que venceu enquanto jogador. Depois de uma carreira de sucesso como médio defensivo — duas Ligas dos Campeões no palmarés entre Marselha e Juventus, com outras três finais disputadas e perdidas –, começou um percurso assinalável como treinador, levou o Mónaco à final da Champions que o FC Porto ganhou em 2004 e ainda conquistou a Ligue 1 com o Marselha. O que pouco sabem, porém, é o que Didier Deschamps andou para aqui chegar.

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Numa história muito pouco conhecida sobre a vida privada do selecionador francês, o jornal L’Équipe lembra por estes dias a tragédia familiar que afetou o clã Deschamps no final dos anos 80. Poucos dias antes do Natal, quando a família se preparava para celebrar a quadra, o irmão mais velho de Didier apanhou um avião de Bruxelas para Bordéus para se juntar aos preparativos. O voo levantou, mas nunca aterrou: o mau tempo complicou as manobras de aproximação à pista e o avião acabou por se despenhar, provocando a morte dos 16 ocupantes. Incluindo Philippe Deschamps.

O agora selecionador francês tinha 19 anos quando perdeu o irmão mais velho e, embora não tenha por hábito abordar o assunto publicamente, já assumiu que o episódio o “mudou para sempre”. “É inevitável. É algo muito doloroso. O tempo passa, mas é algo que nunca esqueces. Nem sequer vives com o assunto, vives sem o assunto. Eu era muito novo, construí-me à volta daquilo. E foi um acidente, foi violento, foi muito injusto”, recordou o treinador em entrevista ao programa “Sept à huit”, do canal francês TF1, poucos dias depois de conquistar o Mundial 2018.

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Três anos antes, porém, Didier Deschamps já tinha atravessado outro momento difícil — e, curiosamente, com semelhanças trágicas. Tal como ambos já referiram, o selecionador francês e Marcel Desailly têm uma relação fraternal, tratam-se por irmãos e são amigos próximos desde a adolescência, quando se conheceram na formação do Nantes e nas camadas jovens de França. Uma proximidade que terá tido o seu mais importante, assim como mais dramático, em novembro de 1984.

Na altura, quando tinham apenas 16 anos, Deschamps e Desailly estavam num estágio dos Sub-17 de França e tinham acabado de vencer Itália no Mónaco. No hotel onde estavam alojados, os responsáveis da Federação Francesa de Futebol foram informados da morte de Seth Adonkor, meio-irmão de Desailly que era sete anos mais velho e que atuava na equipa principal do Nantes. Com apenas 23 anos, o médio natural do Gana foi uma de duas vítimas mortais de um aparatoso acidente de viação.

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Naquele momento, a dúvida era só uma: quem é que iria dar a notícia a Marcel Desailly? E Didier Deschamps, que partilhava quarto com o melhor amigo, assumiu a responsabilidade. “Naquela altura, o Didier já era um líder. Tinha uma perspetiva diferente. Tinha aquela força silenciosa, era o tipo em quem se confiava. Era consistente nas emoções, na atitude. Um tipo com sangue frio, que controla perfeitamente o lado emocional das coisas, tanto o dele como o dos outros. Naquele dia, para além da responsabilidade de ser o capitão, assumiu a responsabilidade de ser como um irmão para o Marcel”, recordou recentemente David Le Goff, antigo jogador que também fazia parte da mesma equipa.

Ao L’Équipe, há pouco tempo, Marcel Desailly lembrou o momento em que o melhor amigo entrou no quarto para lhe dar a pior das notícias. “Lembro-me de pensar: ‘O que é que se passa com ele? Porque é que está a olhar para mim assim, tão triste, tão pálido? Não entendo’. Percebi logo que estava estranho quando entrou no quarto. Pôs a mão dele no meu ombro e disse-me: ‘Marcel, preciso de falar contigo. O Seth morreu’. Nunca voltámos a falar sobre o assunto. Mas aquela mão no ombro será sempre a maior prova de amizade”, contou o antigo central, que acabaria por conquistar um Mundial e um Europeu ao lado do melhor amigo.