Enviado especial do Observador em Paris, França

Todos os olhos estavam numa e só numa pessoa. Olhando para toda a qualidade que estava em causa entre os nomes apurados para a final dos 100 metros, que deixou de fora por exemplo a britânica Dina Asher-Smith, os adeptos tinham apenas de escolher uma preferida para torcer. No entanto, e além de cada país que estava representado, todos apontavam para uma figura: Sha’Carri Richardson. Não há dúvidas: os Jogos Olímpicos apoiam e acarinham todos os atletas, idolatram os maiores campeões entre os atletas mas têm uma especial apetência para abraçar e colocar a outro nível todos aqueles que são melhores, maiores e com uma história. Sha’Carri Richardson é exemplo paradigmático disso e esta seria a noite da última coroação.

Com as jamaicanas Elaine Thompson e Shelly-Ann Fraser-Pryce de fora sem sucessoras à altura (muito longe disso), a norte-americana de 24 anos que está literalmente espalhada um pouco por todo o lado em Paris pelo anúncio que faz para a marca desportiva que a patrocina era a favorita. Dos especialistas, de todas as casas de apostas, dos adeptos, até de uma comitiva dos EUA onde não faltam figuras com Simone Biles ou LeBron James. Era por isso quem, ainda nas meias-finais, todos olhavam para aquela pista 8 em que Sha’Carri entrou, contou os passos para corrigir os blocos de saída, apanhou o cabelo e rezou antes de garantir uma passagem direta à corrida decisiva que tinha apenas Tia Clayton como representantes da Jamaica.

Parecia estar tudo feito para a redenção. Quando começou a aparecer na Universidade de Luisiana, com um recorde universitário a 10,75 que era uma das dez melhores marcas de sempre tendo apenas 19 anos, não houve dúvidas de que estava ali um talento em potência, algo confirmado com a quarta melhor marca de sempre a 10,72. No entanto, os fantasmas de uma infância problemática foram-lhe toldando o caminho pelo lado bom da força. “Suicídio? Quando estava no secundário passou-me pela cabeça. Ficava sempre tipo ‘Vais-me deixar?’ para a minha tia. Mas até agora, ela nunca me deixou. Sabia que precisava disso e quando ela me deu, sabia que a minha vida se tinha transformado. Não posso cair agora”, admitiu numa entrevista dada no ano passado, sobre a importância que a tia, Shayaria Richardson, teve na sua vida.

Sha’Carri nunca chegou sequer a conhecer a mãe biológica, tendo sido criada pela avó e pela tia. Contudo, a imagem maternal nunca foi esquecida e, uma semana antes da qualificação dos Jogos de Tóquio-2020, um episódio marcou a carreira da atleta: um jornalista perguntou-lhe pela morte da mãe, algo que nem sabia que tinha acontecido. “Ela deveria ser o meu mundo e agora que não estava lá, costumava perguntar-me ‘Porque estou aqui?’. Isso levou-me até a um lugar muito sombrio”, contou. Para combater os ataques de ansiedade, consumiu cannabis. Acusou positivo. Falhou os Jogos, apesar dos muitos pedidos para que todo o contexto fosse levado em conta, chegou a falar em racismo, acabou por aceitar. O castigo foi apenas de um mês mas suficiente para lhe retirar o sonho de conquistar uma medalha olímpica. Procurou a redenção.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As tatuagens, os penteados, o peso que tem como influencer nas redes sociais, até mesmo as unhas grandes que fazem lembrar Florence Griffith Joyner. Tudo nela atrai pela história que aquele corpo definido com uma alma frágil transporta e a vitória na final dos 100 metros e dos 4×100 metros dos últimos Campeonatos do Mundo de Budapeste só reforçou esse estatuto. Era tudo seu até aparecer a surpresa das surpresas.

Na segunda meia-final dos 100 metros, Richardson tinha perdido apenas para Julien Alfred, da pequena ilha de Santa Lúcia. A marca de 10,84 era um aviso à concorrência mas, em termos realísticos, seriam poucos a acreditar que poderia mesmo discutir a vitória numa pista encharcada depois de uma carga de água valente nos dez minutos que antecederam a decisão (aí já com chuva mais moderada). Partiu bem e isso fez toda a diferença até pela saída tardia de Sha’Carri, com um tempo de reação mais lento do que adversária que estava a correr a seu lado na pista 5. Alfred tinha dado nas vistas sobretudo pela medalha de ouro que ganhou nos últimos Mundiais de Pista Coberta em Glasgow; agora, era a nova campeã olímpica com 10,72, à frente da grande estrela dos EUA na distância (10,87) e de outra norte-americana, Melissa Jefferson (10,92).

É muito provável que, nos próximos dias, sejam conhecidos mais pormenores e histórias sobre a sucessora da jamaicana Elaine Thompson-Herah. Para já, sabe-se que Juju, como também é conhecida, vive e estuda na Universidade do Texas, já ganhou vários prémios a nível universitário e começou a dar nas vistas ainda em Santa Lúcia, que nunca tivera uma campeã olímpica, quando fazia sprints mais rápidos do que miúdos que eram mais velhos e que foram reconhecidos pelo responsável da biblioteca da escola. Ainda esteve longe do desporto depois da morte do pai aos 12 anos, começou aos poucos a voltar à sua paixão da corrida, foi viver sozinha para a Jamaica com 14 para prosseguir esse sonho de ser melhor, rumou depois aos EUA para seguir o percurso académico. A atleta que tem como lema “A dor que estás a sentir não se pode comparar à alegria que se vai seguir” tinha o desejo de dar a Santa Lúcia uma medalha e o sonho tornou-se realidade.