Enviado especial do Observador em França, Paris
Sem modalidades coletivas depois do futebol em 2016 e o andebol em 2020, havia somente dois locais um pouco mais afastados da zona de Paris quando víamos as competições da Missão de Portugal. É aí que, até sábado, entroncam as grandes esperanças nacionais em pódios em Paris-2024 depois do bronze de Patrícia Sampaio no judo. Sim, de forma inevitável há Pedro Pablo Pichardo na final do triplo no Stade de France na noite desta sexta-feira, mas era no ciclismo de pista e na canoagem que todos os outros olhares estariam para já focados. Rumo ao Vélodrome National de Saint-Quentin-en-Yvelines, numa viagem mais longa do que tem sido normal e neste caso à boleia de um dos autocarros da organização para garantir uma chegada certa.
Longe da confusão de Paris, numa diferença que se estende também ao número de efetivos policiais (sendo que os que cá estão fazem questão de mostrar que estão mais do que prontos para resolver qualquer possível problema que possa existir), aqui encontramos muito mais sossego, pacatez, até acalmia na hora de tentar comer qualquer coisa sentado sem aquela corrida do costume de agarrar a primeira coisa. Não é apenas no ruído que se notam as diferenças – é mesmo um mundo à parte. Quem vem, vem porque sabe e gosta da modalidade, porque está habituada a seguir, porque tem conhecimentos para perceber quem faz o quê. Isso não impede que a única zona de entradas do recinto tenha algumas cadeiras de praia para relaxar um pouco antes do início das competições e é esse know how do ciclismo de pista que permite entrar um pouco depois.
As cadeiras vermelhas e bordeaux ao longo da pista com capacidades diferentes mediante a zona em que se encontram ainda estão em grande parte por preencher quando tudo ali no meio está montado. Ali encontra-se quase tudo: as boxes das equipas sinalizadas com as bandeiras que cada um traz e que são bem visíveis da bancada para concentrar tudo a parte logística e mecânica, o equipamento de aquecimento espalhado por duas zonas, outras boxes com atletas, treinadores e preparadores. Desta perspetiva, Iúri Leitão está mais à direita. Descontraído, sobe para uma bicicleta estática a cerca de meia hora do concurso de omnium para o primeiro aquecimento num pavilhão cada vez mais quente pelo calor do dia e da chegada das pessoas. Mesmo ainda com o pavilhão a menos de metade, já existem duas bandeiras de Portugal. Aqui está a aposta.
Aos 26 anos, Iúri Leitão chegava a Paris como campeão do mundo (o primeiro em ciclismo de pista para Portugal) e uma das esperanças de medalha não tão óbvias como Fernando Pimenta e Pedro Pablo Pichardo pelo currículo e pelo momento. Não, este não é um atleta apenas de ciclismo de pista e até anda mais pela estrada, como aconteceu este ano pela Caja Rural onde ganhou a camisola dos pontos da Volta ao Algarve com uma vitória em Évora e quatro top 4 em cinco etapas, fez dois top 5 na Volta à Turquia e ganhou uma etapa no Tour da Grécia. Depois de duas clássicas em junho na Bélgica, as atenções voltaram às pistas onde o currículo, título mundial do omnium à parte, era de peso com conquistas em Europeus no scratch e medalhas não só nessa especialidade como a corrida por pontos, o madison ou a eliminação. No omnium, e só aí, tinha a vitória nos Mundiais de 2023 e o bronze nos Europeus de 2020. Agora ia à procura de mais.
Em Paris, com o aproximar das provas e com o pavilhão a encher (com predominância de bandeiras de França e Grã-Bretanha), o apoio português também se ia começando a sentir mais também com camisolas de equipas onde militam portugueses como a Team UAE Emirates e bandeiras. Aquelas bandeiras não estavam apenas a marcar presença, eram um sinal de confiança no que se iria passar. Puuuuuufffffff, ouvia-se mais uma vez. As rodas das bicicletas voltavam a ser testadas para que tudo estivesse pronto para a primeira prova. E não sendo esta uma modalidade com tanta divulgação, o melhor era ir explicando o objetivo de cada prova para depois falar sobre ela. Na zona de partida, aí, vários atletas iam começando a assumir os seus lugares. Um com máscara, outro a beber água, outro com um colete para refrescar. Iúri Leitão e o treinador tiveram aquela fotografia com a esperança de que fosse a primeira de um dia que ficasse para a história.
Prova 1, scratch: andar na cauda, testar um ataque não conseguiu chegar ao “boom” seguinte
A primeira prova do omnium era o scratch. Começa logo mal com um petardo que quem não está à espera dá logo um salto da cadeira no início da prova mas depois lá arrancam todos os corredores divididos numa fase inicial entre quem está mais em baixo ou em cima na pista para evitar confusões para 40 voltas onde existe o objetivo de ficar o mais à frente possível (aqui o objetivo é muito fácil e prático de entender). Iúri Leitão foi ficando para trás, na cauda do grupo, quase que a testar a pista e as sensações sem grandes preocupações entre ir acima ou rolar em baixo. Nas voltas iniciais, ninguém toma iniciativa, ninguém arrisca ataques e quem está muito atrás pode de repente estar na frente. A velocidade a que se corre é quase como uma ventoinha para uma pista com ambiente cada vez mais quente quando os corredores passam a linha.
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A 26 voltas do final, o português, que tem no scratch a sua especialidade, foi para a frente testar como estava o grupo e ainda andou com volta e meia sem qualquer resposta até um conjunto de corredores ir “buscá-lo”. Aí o grupo começou a ir quebrando mas a norma das voltas iniciais com Iúri Leitão a recuar de novo voltou a acontecer, neste caso com uma descida que acabou por não dar tempo de reação a uma saída com Benjamin Thomas na frente que permitiu que quatro corredores viessem a ganhar uma volta. O máximo que Iúri tentou fazer foi lutar pela melhor posição depois desses quatro, com uma sétima posição que lhe valia um total de 28 pontos pela volta a menos. Benjamin Thomas acabou com 40, Niklas Larsen com 38, Fabio van de Bossche com 36, Jan Willem van Schip com 34, Kazushige Kuboki com 32 e Ethan Hayter com 30.
Prova 2, tempo: o sprint inicial, mais uns pontos e a volta que demorou a ser “reconhecida”
Mal terminou a prova, Iúri Leitão foi um dos primeiros a agarrar na bicicleta, deixar na boxe, trocar por uma outra com rodas normais e descer para uma zona de aquecimento com acesso através de uma rampa que fica na parte lateral do interior. O português voltaria depois para uma zona de ativação muscular, não vendo as três corridas dos quartos do keirin feminino e sobretudo uma violenta queda com Steffie van der Peet, Nicky Degrendele e Liying Yuan que provocou grande apreensão na pista até pelo aparato da bicicleta da atleta neerlandesa a partir e pela necessidade de entrada de uma cadeira de rodas que não foi utilizada apesar das dificuldades evidentes da chinesa e da belga. A pista esteve a ser verificada, as marcas da travagem foram limpas, seguiram-se as restantes corridas da keirin antes de chegar a prova de tempo no omnium.
Aí, Iúri Leitão foi cumprindo tudo aquilo que parecia ter como estratégia: andou apenas a rodar enquanto não havia pontuações, foi depois embora com o francês Benjamin Thomas somando três pontos (e apenas um para o gaulês), abrandou o ritmo antes de ganhar fôlego para ir buscar mais alguns pontos na frente, somou os 20 pontos da volta de avanço que o colocariam sempre lá em cima. No entanto, houve uma ponta de algum drama no meio de tudo isso: essa volta de avanço foi inicialmente atribuída ao checo Jan Vones, depois os 20 pontos apareceram contabilizados para Iúri Leitão e só mesmo no final da prova houve essa dedução dos 20 pontos ao checo, deixando o português a terminar em segundo a prova de tempo com 28 pontos, menos três do que Fabio van den Bossche. Na geral, Iúri subia a terceiro com um total de 66 pontos entre as duas provas iniciais do omnium, a dez do belga (78) e a oito do dinamarquês Niklas Larsen (68).
Parte 3, eliminação: o foco das câmaras, a roda partida e o sino que pensou ter ouvido
A segunda prova tinha começado com apito antes de mais um tiro, a terceira começou sem nada mas o tiro voltou a ouvir-se a bem. Depois de ter estado a rodar mais um pouco com o equipamento aberto nas costas pelo calor que se ia fazendo sentir, Iúri Leitão entrou mais uma vez a acertar todos os pormenores, com essa preocupação com o posicionamento do selim. Havia algo que ninguém tinha dúvidas: o português estava no foco de tudo e todos, com as câmaras sempre apontadas ao português na volta de aquecimento e quando estava agarrado ao corrimão antes de partir. Parecia ser um prenúncio para o que se estava a passar.
Com mais um arranque a rodar na frente para puxar o ritmo, Iúri Leitão e os principais favoritos foram vendo vários adversários eliminados e foi também gerindo o esforço com uma colocação que em algumas zonas arrepiava visto da bancada de imprensa pelo risco que comportava estar no meio do grupo e sofrer um toque que pudesse desviá-lo de trajetória, como chegou mesmo a acontecer sem qualquer problema naquilo que estava a ser a sua prova. A certa altura, Iúri Leitão parecia estar quase a brincar com o fogo ao ficar em demasiada para trás mas quando ligava o modo locomotiva por fora fugia sempre ao corte. Até numa guerra muito particular com o australiano ia vencendo os desafios, até que um momento de confusão acabou por ditar a eliminação, com Thomas a ser eliminado, depois a ver essa saída ser atribuída a Gaviria e a seguir a não ouvir o sino, ficando a protestar com os braços quando foi eliminado. Com 28 pontos somados, o português mantinha a terceira posição com 94, atrás de van den Bossche (106) e Thomas (98), sendo que também o alemão Tim Torn Teutenberg tinha aproveitado esta terceira prova para ficar com os mesmos 94.
Parte 4, medalha: pontos cirúrgicos, a espera pelo rival e o sprint justo até à prata
Agora chegava a hora de todas as decisões, com muitos pontos em disputa e o mesmo ritual de outras vezes com algumas massagens do fisioterapeuta e muitas palavras também deixadas pelo técnico Gabriel Mendes. Havia uma diferença, na roda da frente, a mesma que partiu durante a eliminação. Não se tinha percebido ao certo que estrondo tinha sido aquele durante uma passagem pela meta mas até com esse problema o atleta português aguentou bem e podia ter somado mais alguns pontos. Ainda assim, estava tudo em aberto. E, na decisão, houve um gesto que define não só quem é Iúri Leitão como a grandeza de uma medalha.
Depois de ter chegado a cair para a quinta posição nas primeiras duas voltas a contar pontos, o português foi para a frente, assumiu a fuga a partir da 23.ª volta e conseguiu somar 20 pontos extra pela volta de avanço a par de Benjamin Thomas e Fabio van den Bossche. O fosso para o quarto classificado começava a ser cada vez maior, o que dava margem para discutir agora as posições de pódio. Iúri estava bem, Thomas estava bem, van den Bossche tentava estar bem mas já não tinha pernas para ser mais do que aparência. Com isso, e de forma natural, o português somou pontos nas passagens 3, 4, 5 e 6, começando a desenhar uma luta com o gaulês. Aí, Thomas caiu. Houve um toque um adversário que acabaria desqualificado que lhe permitiu ter cinco voltas para regressar à pista, como aconteceu, mas Iúri não quis acelerar para conseguir o avanço que aproveitasse o infortúnio do adversário. Quando teve a certeza que Thomas estava bem, a dez voltas do final, arriscou, tentou de tudo mas o francês acabou por aguentar mesmo a liderança.
Benjamin Thomas terminou com um total de 164 pontos contra 153 de Iúri Leitão e 131 de Fabio van den Bossche, que segurou o bronze por apenas quatro pontos face ao espanhol Albert Torres. 20 anos depois do brilharete inesperado de Sérgio Paulinho em Atenas no ciclismo de estrada, agora foi o ciclismo de pista a levar uma medalha olímpica, também de prata, para Portugal. Aqui, não se pode dizer que tenha sido assim tão inesperado mas sim um reconhecimento de quase uma década e meia de projeto estruturado com o velódromo de Sangalhos que permite fazer com menos o que os outros tentaram fazer com muito mais sem sucesso. No final, além da medalha e da certeza que não virá de forma isolada (e no sábado há nova prova), sobrou uma atitude de ouro que faz de Iúri Leitão muito mais do que um medalhado olímpico.