Italiano é sinónimo de restaurante. Ilustro. Se a minha mulher confessa estar com desejo de um italiano, imagino-a entretida com uma bruschetta ou satisfeita com um linguini. O que quero eu dizer com isto? Que a associação entre Itália e gastronomia é tão forte que mesmo a minha cabeça retorcida não hesita em descodificar aquela mensagem como uma proposta de jantar. Reparem que a simplificação não funciona com tudo. Suécia, por exemplo, é para mim sinónimo de estantes IKEA, e não sei o que imaginaria caso ela me pedisse para montar uma sueca.

Lisboa está cheia de italianos. A comunidade tem crescido a olhos vistos e depois do Brexit passou a ser a maior entre países comunitários – mais que os franceses, mais que os alemães, mais que as mães. Ora, mais italianos significa mais italianos. A oferta de restaurantes aumentou em número e em qualidade na medida em que a cidade acumulou público exigente. Chamemos-lhe massa crítica.

O Fiammetta é um dos embaixadores desta Itália que amadurece em Lisboa. Instalou-se em Campo de Ourique vai para sete anos e eu nunca cá tinha posto os pés, apesar de só lhe ter ouvido boas recomendações e andar amiúde pelas redondezas. Suponho que os locais agradeçam. Fora da calma de Agosto, raramente sobra mesa depois das 12.30, não se consegue jantar sem reserva, e nas três vezes que aqui pousei este Verão não topei um turista que fosse. Estrangeiros sim, mas todos com pinta de cliente habitué a pagar IRS de residente não habitual.

[Já saiu o quarto episódio de “Um Rei na Boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. Também pode ouvir aqui o primeiro, o segundo e o terceiro episódios]

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Estamos num bistrô, meio restaurante, meio mercearia gourmet, salumeria ou o que lhe queiram chamar. Há uma montra erótica de queijos, enchidos e fumados, mais uma dispensa de azeites, vinhos, massas, molhos e uma molhada de outras coisas, de onde é possível trazer boa parte dos produtos que vemos usar ao vivo na cozinha aberta para a sala. Vim de lá com uma tira de guanciale (3,10€/100 gr, que é a forma sofisticada de dizer 31€/kg), mais uma cunha de pecorino romano (preço idem) e um conselho tão velho que me podia ter sido dado por Cícero: nunca faças compras com fome (non taberna cum esurit, diria ele).

Propaganda e comunicação de massas

Pico do Verão, almoço sozinho, escolho a Carbonara. Faço-o por duas razões: porque chego com um apetite adolescente; e porque me diverte a discussão em volta do cânone e das origens do prato. Geralmente, esse tipo de conversa aborrece-me a ponto de escrever massada com cedilha. Mas esta tem a sua piada.

Segundo a mitologia italiana, Carbonara é comida de pobre (aqui não: custa 15€). Ora foi criada por trabalhadores das minas de carvão nos montes Apeninos (os carbonari), ora derivou do cacio e ova (queijo e ovos), velha receita entre pastores da mesma zona. Alberto Grandi, historiador da Universidade de Parma, discorda. Segundo ele, a Carbonara é um entre vários clássicos instantâneos de Itália, um conjunto de criações recentes, nascidas da interação cultural com os Estados Unidos e da necessidade de fortalecer a identidade italiana.

Tudo isso está reunido num livro sugestivamente intitulado Denominazione di Origine Inventata. Entre outros desaforos, o académico sugere que o parmesão original já só se faz no Wisconsin; que a maioria dos italianos nunca ouvira falar de pizza antes da Segunda Guerra; e que os primeiros a comer Carbonara foram, na verdade, os americanos. Grandi não recusa que tudo seja criação italiana, apenas denuncia a propaganda. Por mim, diria que há formas piores de cozinhar as massas nacionalistas (e até preferia que o António Ferro tivesse dado mais atenção ao bacalhau).

Ainda acabo a votar cinco estrelas

O spaghetti chega al dente. Isto soa a chachada do Marco Bellini, aquele fulano de barrete branco que tem a mania que sabe. Sei. Mas é a única forma certeira de descrever a perfeição. Cozinhado al dente não é só o contrário de colado ao dente. É um equilíbrio delicado entre densidade, consistência e untuosidade, e toda a massa que provo no Fiammetta chega-me assim – fresca, gulosa, sem qualquer rasto de farinha, firme na cremalheira.

No caso, chega com pouquíssimo sal, a balancear com o salgado da faceira de porco impecavelmente tostada (o tal guanciale) e da mistura de pecorino e parmesão (perguntei, usam mesmo os dois queijos). O resto é gema de ovo, pimenta preta e alegria infantil a cada garfada. Junte-se um copo de tinto Montepulciano, leve mas frutado, escolhido da ardósia onde se reúnem meia dúzia de ofertas a copo (5 a 7€), e eis um experimentador em êxtase.

Nas outras visitas, fui acompanhado e tentei parecer mais crescido. Demorei-me na carta de vinhos, inteiramente italiana, rica na oferta e na pedagogia, com informação de casta, produtor e região. E fui aceitando as sugestões do serviço, atento, conhecedor e com sotaque original. Ainda desconfiei de um prato do dia feito com salmão e persegui o erro. Em vão. Serviram-me uma massa tonarelli alioli, com alcaparras e pedaços de peixe saboroso, tudo ligeiramente picante e regado a limão (16€). Belíssimo.

Óptimo também o Tartare de Manzo a la Veneziana (24€), dose generosa, o bovino de boas famílias, picado em cubinhos com cebola vermelha e alcaparras, gema de ovo por cima, iogurte e alho por baixo, pala pala caseira ao lado. E magnífico o Ravioli com bochecha de porco preto e ricotta (18€). Umas almofadinhas gordas, carne macia a desfiar-se no soro do queijo, tudo envolvido num pomodoro irrepreensível, sem excesso de ácido nem vestígio de açúcar. Tirei o mesmo prazer dos tomates com a Bruschetta al pomodoro (7€), aí numa versão mais consistente, o fruto grosseiramente triturado.

O molho de tomate é uma instituição que exige bom produto, sabedoria e paciência. Mal feito, é uma coisa pavorosa; bem feito, salva qualquer tragédia. Por alguma razão num certo Alentejo (onde se criam estas bochechas mimosas), se diz de alguém intragável que não se grama nem com molho de tomate (já agora, Grandi diz que o pomodoro é invenção castelhana e que, no final do século XIX, ainda era tratado em Itália por salsa spagnola).

Ao encontro de Espinosa

Nas sobremesas, deparei-me com um caso bicudo (expressão que evito dizer alto, pois a fonética italiana é quase tão traiçoeira como a língua portuguesa. A propósito: sabiam que há um italiano no Martim Moniz chamado Mamma Donna?!). Há cinco doces fixos, mais um do dia, e apeteceu-me sempre ir a todos. Uma vez, tive a sorte de lá apanhar uma Colomba, um prodígio de fermentação, em tudo semelhante ao panetone, com massa levíssima e recheio húmido de chocolate e avelã. Noutra vez, bati palmas ao Tiramisù (7€), montado num copo, cada camada bem definida, mascarpone leve, tudo firme mas cremoso, o álcool e o açúcar no ponto mínimo.

O tiramisù é outra pérola italiana que o chato do professor (júri no campeonato do mundo da especialidade) insiste que foi inventada anteontem. Por mim, respondo-lhe com Agostinho da Silva, que se referia a Espinosa como o único filósofo português. Quando o corrigiam, dizendo que o pensador era holandês e que portuguesa era a senhora sua mãe, o Silva retorquia: se uma gata tiver as crias dentro de um forno, que lhe chamamos – gatos ou biscoitos? Ora, eu estou mais ou menos assim na questão da comida italiana: interessa-me menos quando e onde a ideia foi parida e mais o génio que a pariu. E isto roça o genial.

Hei-de voltar. Ciao.

Arnaldo Valente é homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.