No debate de terça-feira à noite, Donald Trump insistiu nas falsas acusações da sua campanha de que imigrantes haitianos em Springfield, no Ohio, estavam a comer os animais de estimação dos habitantes locais. O momento gerou debate sobre a retórica anti-imigração utilizada pelo candidato republicano e colocou em xeque a comunidade haitiana na cidade, que diz agora temer pela sua segurança, relata a Reuters.

“Temos de ter cuidado. As coisas estão a ficar fora de controlo, a forma como as pessoas nos tratam, fazem comentários maus sobre nós”, disse Viles Dorsainvil, de 38 anos, à Reuters, dando voz ao medo de outros membros da comunidade, que, segundo o relato de Dorsainvil,  estão a receber ameaças por telefone. Algumas famílias impediram mesmo os filhos de ir à escola e outros estão a ser vítimas de ataques em frente às suas próprias casas, relataram.

A situação preocupante já mereceu a atenção no Haiti. Leslie Voltaire, membro do conselho presidencial de transição do país, criticou as declarações de Donald Trump, classificando-as como uma representação “preocupante, infundada e inaceitável” da comunidade haitiana. “Esta retórica visa injustamente uma comunidade que sempre contribuiu de forma significativa na sociedade americana através do seu trabalho árduo. Estas narrativas arriscam dividir e pôr em perigo comunidades que já são vulneráveis. É crucial promover a unidade, o respeito mútuo e a longa parceria histórica entre os Estados Unidos e o Haiti”, escreveu Voltaire no X.

O tema surgiu durante uma reunião aberta da autarquia de Springfield, em que um habitante da cidade acusou os imigrantes haitianos na cidade de matarem patos no parque para comer, nota a BBC. As declarações infundadas espalharam-se pelas redes sociais até chegarem à campanha republicana através de JD Vance, na passada segunda-feira. O candidato a vice partilhou os relatos nas redes sociais para justificar as suas críticas às políticas migratórias e fronteiriças da administração Biden-Harris.

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“Há meses, levantei a questão de os imigrantes ilegais haitianos escoarem os serviços e causarem caos em Springfield, Ohio. Relatos mostram agora que as pessoas tiveram os seus animais de estimação raptados e comidos por pessoas que não deviam estar neste país. Onde está a nossa czar das fronteiras?”, escreveu JD Vance no X. Nas páginas republicanas, foram publicadas imagens geradas por Inteligência Artificial em que se vê Donald Trump a abraçar animais, com a legenda “protejam os nossos patos e gatinhos no Ohio”.

Tal como declararam à ABC, as autoridades locais esclareceram à BBC que os relatos eram infundados e que nunca tinham “lidado com nenhuma queixa sobre imigrantes haitianos”. No dia seguinte, Vance recorreu novamente ao X para reconhecer que os rumores sobre os animais de estimação eram falsos, mas que, ainda assim, os imigrantes haitianos eram um perigo para a comunidade, utilizando como exemplo a história de uma criança que foi morta por um homem do Haiti.

Também isso mereceu uma reação, no caso da família da própria vida. Aiden Clark tinha 11 anos e foi morto num atropelamento a caminho da escola em Springfield no ano passado. Esta quarta-feira, o seu pai fez uma declaração pública, repudiando a manipulação da tragédia. “Usar o Aiden como um instrumento político é repreensível, para dizer o mínimo. [JD Vance e Donald Trump] utilizaram o nome do meu filho e a sua morte para ganhos políticos. Isto precisa de parar”, afirmou, citado pelo Washington Post. “O meu filho não foi assassinado. Ele foi morto acidentalmente por um imigrante do Haiti. A tragédia é sentida em toda a comunidade. Mas não mudem isto para o ódio“, apelou.

Apesar de tudo, Trump não hesitou em levar o tema ao debate com Kamala Harris. “Em Springfield, eles estão a comer cães. Eles estão a comer gatos. Eles estão a comer os animais de estimação das pessoas que vivem lá”, afirmou Donald Trump, quando tentava ilustrar os “perigos” da larga comunidade imigrante nos Estados Unidos, especificamente a proveniente do Haiti no Estado do Midwest.

Kamala Harris riu-se do seu comentário e classificou-o de exagerado. O moderador David Muir notou a falsidade das acusações de Trump, afirmando que a ABC tinha contactado as autoridades de Springfield que negaram a existência de “relatos credíveis”. O candidato republicano insistiu que tinha visto relatos “na televisão“.

A comunidade imigrante em questão é uma das mais significativas para o crescimento económico na região. Até agosto de 2024, 205.00 haitianos tinham entrado nos Estados Unidos, ao abrigo de acordos criados pela administração Biden, informa a mesma Reuters.

Estes acordos — como o Estatuto de Proteção Temporária que facilita a entrada de haitianos em contextos pobres ou de violência — foram sentidos particularmente no Midwest: 15.000 haitianos chegaram à região e os dados mostram que ao fim de 50 anos de estagnação, verificou-se um inegável crescimento económico, graças principalmente às indústrias e fábricas de material agrícola sediadas em Springfield que abastecem as regiões vizinhas.