O sentimento de insegurança de quem percorre as ruas do bairro do Zambujal existe porque “há uma ideia prévia sobre o assunto, mas nas condições certas desaparece”, defende Mário Linhares, presidente da Associação Ad Gentes, em entrevista à Rádio Observador no programa “A História do Dia”. Diz que o caso da morte de Odair Moniz e os desacatos e vandalismo que lhe sucederam “surpreenderam até os próprios moradores“. “Todas as pessoas com quem converso estão tristes em relação ao que aconteceu, tristes com a imagem que passa para fora, mas também muito conscientes de que isto está a acontecer porque existem cicatrizes muito profundas que não ficaram bem saradas”, acrescenta.

O presidente da associação, que começou a fazer voluntariado no bairro da Amadora há vários anos, desmente os rumores de que naquela localidade não possam entrar táxis, carteiros ou serviços de entrega devido à falta de segurança. “No sítio onde almoço no bairro, o sítio que tem a melhor tosta mista de Lisboa, é onde o carteiro que distribui as cartas almoça também e nós costumamos cruzar-nos várias vezes pelo bairro”, relata, garantindo que táxis e autocarros entram no bairro.

“Há uns anos os autocarros não circulavam dentro do bairro e foi uma grande conquista fazer com que tal acontecesse”, recorda, notando a presença de comércio local frequentado por não moradores: “Mercearias, cabeleireiros, e até o estofador mais conhecido de Lisboa.”

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Não tem dúvidas de que se trata de um “ambiente familiar muito forte” e diz mesmo que a “polícia costuma tomar o pequeno-almoço no bairro” e relata ocasiões em que as forças de autoridade colaboraram com a associação, “sem colete à prova de bala”, para dar assistência a projetos que estavam a ser desenvolvidos.

Centenas de pessoas e balões brancos na despedida de Odair Moniz

“A ideia que temos hoje é que a relação [entre polícias e moradores] é super tensa e nada saudável e não é assim. Não há o nós e o eles e a polícia conhece bem o bairro, aliás, a esquadra da polícia é à entrada do bairro. Claro que agora existe uma relação muito tensa com um grupo muito específico, mas não com a maioria dos moradores”, defende Mário Linhares.

“Há um sentimento de tristeza grande por isto estar a acontecer, isto é o sentimento mais geral, ‘que pena isto estar a acontecer aqui onde vivemos'”, relata o presidente da associação com base nos testemunhos de moradores nos últimos dias.

“Basta um pequeno grupo querer manifestar-se e querer mostrar a sua voz deste modo, que não é o modo correto, para que facilmente se olhe para um todo a partir da parte“. acrescenta, lembrando que  enquanto não for esclarecido tudo o que se passou “vai permanecer o sentimento de injustiça que está recalcado noutras histórias” que se contam pelo bairro, algumas com mais de 10 anos, que nunca viram a investigação concluída. É a partir deste sentimento de impunidade, que, descreve, “as pessoas se sentem invisíveis, esquecidas, quase como cidadãos de segunda e é isto que faz com que de repente se perca a noção e se tomem ações que não são as corretas”.

Como é viver no bairro do Zambujal, Amadora?

Não sei se em algumas zonas de Lisboa não estamos mais em ilhas do que as pessoas que estão naquele bairro” 

“Nos últimos censos que foram feitos, temos uma estatística que pode ser um pouco enganadora porque diz que 60% da população não é ativa, mas o bairro caracteriza-se por ter uma população idosa muito elevada — são pessoas reformadas que não contam para a população ativa — e tem muitas crianças e jovens em idade escolar”, informa o presidente da Associação Ad Gentes, notando que dentro dos tais 60%, “na verdade só 8% é que são desempregados, o que significa que as pessoas que não trabalham são de facto uma minoria”.

Sobre as condições de vida dos moradores do bairro, Mário Linhares afirma que a “maior parte das habitações do bairro são habitação social”. “As pessoas concorrem para ter uma casa, a renda é económica e a maioria das pessoas tem subsistência de ordenado mínimo. Não se vê propriamente sinais de luxo dentro do bairro”, descreve, revelando que também é nestas situações que se “vê um grande espírito de entreajuda”.  “Quando alguém precisa de alguma coisa pede ao vizinho”, garante. E afirma mesmo: “Não sei se em algumas zonas de Lisboa, no nosso apartamento, não estamos mais em ilhas do que as pessoas que estão naquele bairro“.

“Estas notícias dão um ar muito enganador ao bairro, mas também é verdade que quando nós lá entramos  sozinhos podemos ficar com uma impressão de insegurança, porque o bairro tem um problema de limpeza”, acrescenta, atribuindo o excesso de lixo e sujidade daquelas ruas a “alguma falta de literacia ambiental” e à “falta de limpeza regular por parte das entidades que deveriam fazê-lo”.

O tal sentimento de insegurança, associado ao aspeto das ruas, desaparece, no entender do presidente da associação, “quando se circula no bairro com alguém que já o conheça”, descrevendo as visitas que já promoveu junto de estudantes de arquitetura e empresas, por exemplo.

Bairro estava “numa fase muito boa” e a abrir-se para fora nos últimos anos antes da morte de Odair Moniz

“Os tempos mais difíceis do Bairro do Zambujal já passaram, estava numa fase muito boa, com muitos bons sinais e com muitas pessoas a conhecerem o bairro por bons motivos e eu espero que isso volte rapidamente”, garante Mário Linhares à Rádio Observador.

“Nos primeiros anos de bairro, nos anos 70 e 80, a vida era muito feliz, as pessoas davam-se todas muito bem e fazia-se uma vida de bairro com todas as pessoas muito entusiasmadas por terem uma casa. Depois há uma fase difícil nos anos 90 com drogas muito fortes. O que sabíamos que acontecia no Casal Ventoso acontecia ali também e isso marcou muitos jovens, alguns porque morreram e outros que viram os amigos a morrer e disseram que não queriam aquilo para eles”, afirma.

Descreve ainda as “relações muito pacíficas” entre as três principais comunidades — portugueses, cabo-verdianos e ciganos. “Pode às vezes haver um desentendimento de uma família com outra família, mas são situações muito pontuais”, admite o presidente da Ad Gentes.

“O bairro quando foi construído era mesmo uma ilha porque não havia mesmo nada à volta. Alfragide não existia. Com a transformação da estrada que ligava Sintra a Lisboa, que se transformou no IC19, o bairro ficou nessa encruzilhada e muitas pessoas passam por ali para ir ao IKEA ou ao Alegro de Alfragide, mas não há razões para ir ao Bairro do Zambujal, exceto para quem vive lá ou para quem precisa de ir à Agência Portuguesa do Ambiente que se localiza lá”, descreve ainda.

“Para uma pessoa que não tem nenhuma ligação familiar, é difícil arranjar razões para ir lá e é por esse motivo que estamos a tentara abrir as portas do bairro”, afirma Mário Linhares, que refere, por exemplo, os projetos de arte urbana criados para atrair pessoas à localidade.