No mesmo dia duas conferências de imprensa (e mais uma declaração partidária). As duas com ministras do governo de Pedro Sanchez. As duas com um denominador comum: as denúncias de assédio sexual de Íñigo Errejón, figura de destaque da esquerda espanhola, co-fundador do Podemos, líder parlamentar da Sumar, plataforma das esquerdas progressistas, um dos parceiros do PSOE que viabilizam o atual governo de Espanha.

Uma das conferências de imprensa teve à frente dos jornalistas a número dois do governo de Pedro Sanchez, Yolanda Díaz, cabeça da Sumar, ministra do Trabalho. Quatro dias depois de se tornarem conhecidas as acusações de assédio sexual contra Errejón, que saiu rapidamente da cena política, abandonando todos os cargos, a vice-primeira-ministra veio finalmente a terreiro admitir que sim, que soube em 2023 de uma denúncia apresentada no então Twitter. 

Contou, primeiro aos deputados e depois aos jornalistas, que a sua equipa a informou de um tweet que alertava para uma possível agressão sexual por parte de Errejón num festival de música em Castellón em 2023. E que terá avisado o Podemos e falado com o Más Madrid, partido fundado por Errejón, “Como disseram as colegas do Más Madrid, é verdade que abriram uma investigação e que mais tarde disseram à minha equipa que esta investigação tinha sido encerrada”. Díaz garante que a sua equipa a informou que a autora do tweet o tinha removido algum tempo depois. E nunca confrontou  Errejón. 

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Assegurou ainda que “se soubesse que Errejón era um alegado agressor sexual, não havia forma” de ter integrado a lista da Sumar. “Entre a impunidade e qualquer crise política, escolho a segunda, custe o que custar e caia quem cair.”, garantiu Díaz, citada pelo El País. “O nosso compromisso será o de reconstruir essa confiança dia após dia, trabalhando e prestando contas”, acrescentou a líder do Sumar que, depois dos maus resultados nas eleições europeias se afastou da direção, delegando a chefia numa comissão até ao congresso do grupo em dezembro.

“O que temos de fazer agora é defender as vítimas, acompanhá-las, e tudo o que as mulheres quiserem que façamos, nós faremos”, garantiu Díaz. “Se eu tivesse a mínima suspeita de que Errejón ou qualquer outra pessoa era um alegado agressor sexual, teria agido como agi esta semana, prontamente e sem burocracias”, insistiu.

Todos falaram com todos e ninguém investigou a sério

A versão de Yolanda Díaz não condiz, no entanto, com a do Podemos. Pablo Fernández, secretário de Organização e porta-voz do partido  — que Errejón fundou em 2014 juntamente com Pablo Iglesias, Juan Carlos Monedero, Carolina Bescansa e Luis Alegre —, disse, também nesta segunda-feira, que levaram ao conhecimento da vice-presidente Yolanda Díaz, a thread do Twitter de uma jovem que acusou Íñigo Errejón, no verão de 2023, de agressão sexual.

Tanto mais que na altura, um dos mais emblemáticos políticos da esquerda espanhola, paladino dos direitos femininos, corria em quarto nas listas da Sumar, por Madrid. O que Fernández não conta foi qual a resposta de Yolanda Díaz ao mesmo tempo que garante que enquanto Errejón esteve no Podemos não tiveram conhecimento de nenhum caso. Pese embora, lembra o El Espanol, haver já uma denúncia em 2015.

Então, se Podemos diz que falou com Sumar, e Sumar diz que falou com Podemos e com Más Madrid, o que diz este partido?  Más Madrid lamenta não ter feito o que devia e agido mais cedo.

Foi antes de Yolanda Díaz falar com os jornalistas, que decorreu a outra conferência de imprensa, a do Más Madrid, e com uma particularidade: entre as três porta-vozes do partido regional fundado por Errejón, que depois teve o correspondente a nível nacional, Más Pais, estava não só a ministra da Saúde de Sanchez, Monica Garcia, e Manuela Bergerot, representante regional do partido, como Rita Maestre , ex-namorada do agora ex-deputado da Sumar.

As três reconheceram, esta segunda-feira, que a estrutura partidária tomou conhecimento de um episódio de assédio sexual (o mesmo referido por Díaz) relatado nas redes sociais logo após a sua ocorrência e admitiram que não o investigar em profundidade foi “um erro”. Íñigo Errejón terá tocado na cintura e no rabo de uma mulher sem o seu consentimento no tal festival de Castellón, em junho de 2023.

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A direção do partido encontra-se sob uma forte onda de suspeição por não ter atuado antes da demissão de Errejón quando já havia denúncias há vários meses. Sobre se sabiam ou não do comportamento reiterado do correligionário, as três mulheres, citadas pelo El País, afirmaram: “Pensávamos que tinha outro tipo de problemas pessoais”. E acabaram por se justificar: “Tentámos ajudá-lo em várias ocasiões e sempre acreditámos que a sua situação pessoal podia melhorar. Mas ninguém, repito, ninguém, nenhum militante, nenhum funcionário, nenhum trabalhador do Más Madrid sabia das terríveis acusações, denúncias de agressão, abuso e violência sexual de que temos tido conhecimento nos últimos dias”.

A direção do Más Madrid reconhece que agiu “insuficientemente”, mas assegura que todos os envolvidos até agora conhecidos já foram responsabilizados politicamente. Na sexta-feira, a ex-chefe de gabinete de Errejón, Loreto Arenillas, deixou o partido depois de ter, alegadamente, mediado, “à revelia do partido”, um acordo com uma alegada vítima para que esta não denunciasse o deputado. Entretanto, Arenillas ainda não entregou o certificado de deputada regional e anunciou que vai recorrer da decisão, defendendo que a direção teve conhecimento do sucedido “um dia depois” de um post publicado no Twitter no qual era apontado o comportamento de Errejón.

“O misógino que voltava normalmente a casa após agredir mulher de 20 anos em hotel”

Na conferência de imprensa do Más Madrid, Rita Maestre, que foi namorada do alegado agressor, não se alongou em considerações pessoais. Já o tinha feito na véspera. A relação terminou há quase uma década, mas a proximidade política e as informações que chegam a público sobre as acusações de assédio sexual — em alguns casos contemporâneos da ligação amorosa dos dois — deixaram Maestre “devastada”. Diz sentir-se “profundamente enganada” por uma “pessoa de aparência normal” e um “bom namorado”, que era ao mesmo tempo “um misógino que regressou a casa normalmente depois de ter agredido uma mulher de 20 anos num hotel“.

Num extenso comunicado publicado pela política nas suas redes sociais, lê-se: “Como todos sabem, Íñigo Errejón e eu éramos um casal há vários anos e, embora já estivéssemos afastados há muito tempo, tudo o que veio a público esta semana impressiona-me e sobretudo choca-me”. Maestre assume que só agora está a descobrir que “alguns dos episódios de comportamento misógino e de violência relatados pelas vítimas” aconteceram quando o agressor ainda era seu companheiro.

A porta-voz do Más Madrid admite que o perfil de Íñigo Errejón, acusado até agora por nove mulheres de atos machistas e de assédio sexual, “não é novidade”. “O feminismo ensinou-nos há muito tempo que os agressores que se costumam apresentar como seres monstruosos excecionais são um pai, um irmão, um colega de trabalho ou o seu ex-companheiro”, considera, assumindo que uma vez que estes atos fizeram também parte da sua vida, torna-se “impossível não falar a partir daí”.

Errejón e Maestre mantiveram uma relação amorosa por cerca de cinco anos. Segundo o El Espanol, depois de a relação terminar a porta-voz do Más casou-se com o escritor Manuel Guedán, em 2018. Mas os dois continuaram a agitar as bandeiras do Más em conjunto. Recentemente, em 2023, fizeram campanha lado a lado para as eleições regionais e municipais de Espanha.

“Não participei nem tenho conhecimento de qualquer encobrimento de qualquer agressão ou ação violenta. Em vez disso, sinto-me profundamente enganada, e esse engano é devastador“, escreveu Rita Maestre, em resposta às primeiras suspeitas de encobrimento que sobre si foram lançadas mal os primeiros casos foram revelados. “Agora o importante é a dor das vítimas, que têm de se sentir respeitadas e acompanhadas. O importante é erradicar o comportamento sexista e a agressão da política e da sociedade. Custe o que custar e quem tiver de cair cai“, acrescentou.

“Encorajo também qualquer mulher que tenha sofrido agressões ou assédio a utilizar redes de apoio feministas para avançar, e reflito honestamente: pode não haver tarefa política feminista mais importante do que estar disponível. Nada será capaz de amordaçar esta onda de dignidade. É mais uma das lições da força do feminismo. Eu, claro, vou dar tudo de mim”, assegurou.

Entre os vários políticos que têm vindo a público demarcar-se e condenar os alegados atos de Errejón, esteve também o chefe do governo espanhol, já que a defesa dos direitos das mulheres é uma das bandeiras do programa do executivo.

“O governo está a trabalhar para uma Espanha feminista, onde as mulheres tenham os mesmos direitos, as mesmas oportunidades e a mesma liberdade e segurança que os homens”, escreveu Pedro Sánchez na rede social X, sobre a acusação e a demissão de Íñigo Errejón.

A queixa formal da atriz Elisa Mouliaá que levou à demissão do deputado

O escândalo que está a abalar a esquerda espanhola estalou na semana passada quando Elisa Mouliaá, atriz e apresentadora de televisão espanhola, revelou ter sido vítima de assédio sexual por parte do deputado há cerca de três anos. Apresentou queixa formal na passada quinta-feira e, nesse mesmo dia, o político apresentou a demissão, depois de uma investigação interna do próprio partido, paralela à das autoridades que, segundo escreve o El País, já remeteram o testemunho de Errejón ao tribunal competente.

De acordo com a queixa da atriz e apresentadora tudo aconteceu numa noite de setembro de 2021. Elisa foi à apresentação de um livro que Errejón tinha lançado. No final, convidou o político de 40 anos para ir a uma festa num apartamento em Madrid. Já no edifício, no elevador, o político terá agarrado a atriz e apresentadora “com força pela cintura” e, sem o seu consentimento, terá “introduzido a língua na sua boca de forma violenta, deixando-a sem fôlego”. O assédio decorreu durante o resto da noite, com o deputado a tentar iniciar relações sexuais com a atriz múltiplas vezes, sem que esta se mostrasse recetiva. A situação terminou, já em casa de Errejón, com Elisa Mouliaá a confrontar o político com o quão “desconfortável” estava perante a situação.

No mesmo dia em que a atriz avançou com a queixa às autoridades, Íñigo Errejón anunciou que se tinha demitido de líder do grupo parlamentar e que ia também deixar a vida política após 10 anos a brilhar nos palcos partidários. Num comunicado publicado nas redes sociais, o político reconhece ter cometido “erros” e admite que “atingiu o limite da contradição entre caráter e pessoa”. “Termino a etapa mais importante da minha vida”, lê-se na publicação. Além disso, sem o reconhecer claramente, Errejón dá ainda a entender que teve um comportamento “tóxico” e patriarcal.