Henrique Granadeiro, ex-líder da Portugal Telecom, tinha escapado ao julgamento com a decisão instrutória, mas a Relação de Lisboa pronunciou-o por cinco crimes. Granadeiro alegou uma inconstitucionalidade no acórdão, mas sem êxito.
Por duas vezes, Henrique Granadeiro tentou anular a pronúncia para julgamento por cinco crimes no processo Operação Marquês; por duas vezes, o Tribunal Constitucional (TC) rejeitou os argumentos da defesa do ex-gestor da Portugal Telecom (PT). Henrique Granadeiro vai mesmo ter de responder em julgamento por um crime de corrupção, dois de branqueamento de capitais e dois de fraude fiscal qualificada, conforme ditou a pronúncia de 25 de janeiro de 2024 da Relação de Lisboa.
Segundo apurou o Observador, a defesa de Henrique Granadeiro começou por recorrer contra a decisão de o levar a tribunal, mas os conselheiros do Palácio Ratton emitiram uma decisão sumária de não tomar conhecimento do objeto do recurso.
Na base dessa decisão sumária esteve o facto de Granadeiro não ter suscitado na Relação de Lisboa a alegada inconstitucionalidade da norma segundo a qual “o Tribunal, ou a autoridade judiciária competente, está legalmente dispensado de ponderar se os factos com que o arguido não foi confrontado eram ou não factos essenciais para a sua defesa e para a acusação”.
Ou seja, para que o TC pudesse analisar essa suposta inconstitucionalidade, ela teria de já ter sido invocada antes junto da Relação de Lisboa, pelo que não foi admitido “por ilegitimidade do recorrente”.
Granadeiro critica o Constitucional na reclamação para a conferência
O antigo chairman da PT não desistiu perante a primeira rejeição e apresentou no dia 16 de abril de 2024 uma reclamação para a Conferência da 3.ª Secção do TC, assegurando que a inconstitucionalidade já tinha sido levantada e que agora isso era feito de forma mais explícita. A defesa invocou mesmo que não era um caso de se julgar “alhos” e ser confrontado com “bugalhos” no processo.
“O rigor cirúrgico descontextualizado e afastado do fim a que se destina transformar-se-ia numa criticável obsessão pelo formalismo vazio”, criticou a defesa de Granadeiro.
A decisão do TC não tardou muito a chegar, com o indeferimento da reclamação no passado dia 5 de junho. “É no requerimento de interposição do recurso que se delimita o respetivo objeto em termos definitivos e irremediáveis, não sendo consentida qualquer modificação”, lê-se no acórdão assinado pelos conselheiros Afonso Patrão (relator), Carlos Medeiros de Carvalho e José João Abrantes.
Resta concluir, como se decidiu na decisão reclamada, que em momento algum o tribunal a quo foi confrontado com a questão de inconstitucionalidade”, lê-se no acórdão.
O acórdão transitou em julgado no dia 21 de junho e o processo já tinha sido devolvido à Relação a 8 de abril, devido ao efeito devolutivo aplicado ao recurso.
Contudo, tal como os restantes 17 arguidos pronunciados — por um total de 118 crimes — pelas desembargadoras Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues em janeiro, Henrique Granadeiro só pode começar a ser julgado quando acabar a litigância do ex-primeiro-ministro José Sócrates (e do seu primo, José Paulo Pinto de Sousa). Os recursos, reclamações e incidentes do ex-primeiro-ministro têm atrasado a tramitação dos autos para julgamento.
Operação Marquês. José Sócrates está apenas a um recurso do início do julgamento
No entanto, como o Observador explicou aqui, o julgamento da Operação Marquês estará à distância de um recurso do seu arranque na primeira instância, após o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ter imposto a admissão de um recurso do primo de Sócrates inicialmente recusado.
Os oito crimes que passaram a zero e depois a cinco
Henrique Granadeiro foi acusado pelo Ministério Público (MP) em outubro de 2017 da alegada prática de oito crimes: um de corrupção passiva, um de peculato, um de abuso de confiança, dois de branqueamento de capitais e três de fraude fiscal qualificada. Para o MP, o antigo gestor da PT (tal como Zeinal Bava) teria recebido pagamentos entre 2006 e 2010 para agir de acordo com os interesses de Ricardo Salgado e do BES, que era então um dos maiores acionistas da empresa de telecomunicações.
Porém, a recusa em aplicar o conceito de funcionário a Henrique Granadeiro, por ser gestor de uma empresa privada como a PT e não de uma empresa pública, foi essencial para afastar a acusação do crime de corrupção passiva na decisão instrutória assinada pelo juiz Ivo Rosa a 9 de abril de 2021. Com esse entendimento, caíram também os crimes de branqueamento de capitais e fraude fiscal (além das imputações de peculato e abuso de confiança). Em suma, não sobrou nenhum dos oito crimes imputados a Granadeiro.
Os 189 crimes da Operação Marquês passaram a 17. Quem vai afinal julgamento e por quais?
Para a Relação de Lisboa, o entendimento foi, porém, muito diferente. Em poucas páginas, as desembargadoras Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues desmontaram a tese de Ivo Rosa. Lembraram que a PT não era uma empresa privada qualquer, mas uma companhia concessionária de serviço público (e onde o Estado detinha uma golden share) e que o relevo social dessa circunstância justificava equiparar os gestores ao estatuto de funcionário numa perspetiva penal.
Com efeito, a qualidade de “funcionário” é um elemento tipo do crime de corrupção passiva (e de peculato), sem a qual não pode ser imputado a um arguido. E as desembargadoras recorreram até à ironia para sustentar o conceito de funcionário de Granadeiro (e Bava) no acórdão proferido em janeiro.
A dada altura, na leitura do processo, é necessário um esforço no sentido de ter presente que os arguidos Zeinal Bava e Henrique Granadeiro são funcionários da PT. Com a sua conduta parecem depender do BES”
O resultado dessa decisão? Henrique Granadeiro passou a ter de responder em julgamento no processo Operação Marquês por cinco crimes: um de corrupção, dois de branqueamento (ambos em coautoria com Ricardo Salgado) e dois de fraude fiscal relativamente ao IRS dos anos 2011 e 2012.
Uma suspeita de 20 milhões de euros e o lado “chique” de ter conta na Suíça
A investigação do MP, liderada pelo procurador Rosário Teixeira, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), apurou que Granadeiro terá supostamente recebido cerca de 20 milhões de euros através da Espírito Santo Enterprises, apontada como o “saco azul” do Grupo Espírito Santo.
A justificar o pagamento dessas verbas, por indicação de Ricardo Salgado, estaria a oposição do gestor à compra da PT na oferta pública de aquisição lançada em 2006 pela Sonae, que acabaria por fracassar no início de 2007. O dinheiro terá sido ainda entregue para favorecer os interesses do BES nos negócios da operadora, nomeadamente com a venda da brasileira Vivo e a compra da Oi.
A defesa de Granadeiro nos interrogatórios: o gestor achava “chique” ter conta na Suíça
Interrogado pelo MP ainda durante a fase de inquérito, Henrique Granadeiro chegou a explicar a conta por onde passaram estas verbas dizendo que, na altura, “era chique ter uma conta na Suíça”.
As magistradas da Relação de Lisboa não partilharam essa visão e defenderam que “não foi inocente a preferência por sediar estas contas bancárias na Suíça”.
Segundo o acórdão de janeiro de 2024, “a proteção do sigilo bancário estava envolta numa blindagem legal dificilmente comparável, e era conhecida por isso mesmo, transmitindo uma segurança extra aos arguidos“. Ou seja, havia razões para recuperar a imputação de branqueamento e, consequentemente, de fraude fiscal.
Em março de 2017, Henrique Granadeiro viu a Justiça arrestar os valiosos terrenos da Herdade do Vale do Rico Homem, propriedade de uma empresa por si detida maioritariamente, que produz uma marca de vinho com o mesmo nome da quinta. Isto aconteceu depois de Ricardo Salgado e do próprio Granadeiro terem afirmado nos autos da Operação Marquês que a sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises tinha adquirido uma parte da sociedade que detém aquela quinta vinícola.
Herdade do Vale do Rico Homem de Henrique Granadeiro arrestada pela Justiça
Ricardo Salgado justificou os cerca de 25,7 milhões de euros transferidos entre 2007 e 2012 pela Espírito Santo (ES) Enterprises para a conta suíça de Henrique Granadeiro com serviços que o ex-presidente da Portugal Telecom tinha prestado ao GES na área agrícola e também com a aquisição de uma parte da empresa que detém a Herdade do Vale do Rico Homem — uma das várias explorações vinícolas detidas por Henrique Granadeiro.
Tendo a origem alegadamente ilícita de tais fundos — o MP imputa a Granadeiro um crime de corrupção e dois crimes de fraude fiscal qualificada e dois crimes de branqueamento de capitais à conta desse pressuposto —, o procurador Rosário Teixeira avançou para a promoção da apreensão da Herdade do Vale do Rico Homem, tendo o juiz de instrução Carlos Alexandre validado a mesma.
Granadeiro diz que vendeu parte da Herdade do Rico Homem ao ‘saco azul’ do GES por 15,7 milhões